sábado, 30 de janeiro de 2010


Convite aos meus seguidores.

Queridos seguidores deste blogue,



no começo de 2010 foi lançado o blogue coletivo de literatura O BULE.

O BULE é um espaço de apresentação, divulgação e discussão de ideias em torno da literatura, das palavras, da escrita. Somos 6 colunistas com um único propósito – fazer/comer/tomar/beber/discutir/divulgar literatura.
Estará também aberto àqueles que quiserem divulgar seus textos e publicações. Aos que preferirem apenas saborear as palavras, além das postagens, O BULE fará frequentemente sorteios de livros entre os seguidores.

3 livros, até agora, já foram sorteados em pouco mais de 20 dias de blogue. Sendo assim, aproveite para também se tornar seguidor d'O BULE e participar dos próximos sorteios. (Obviamente este convite se faz desnecessário para os que já são seguidores do blogue.)


Abraços.

sexta-feira, 29 de janeiro de 2010



UM, entre o sagrado e o profano.

                               Ronaldo Costa Fernandes

Há poucas personagens – o padre, Ana e Ariadne, a mãe – que vivem num espaço reduzido: o espaço discursivo do narrador. Neste pequeno romance, Geraldo Lima transfere um pouco – somente um pouco – do instrumento dramático com que está acostumado a trabalhar e instaura num espaço exíguo, a mente do personagem, a sua existência atormentada.
            Há algo de Bentinho nas relações religiosas e nos ciúmes, mas a lembrança de Bentinho de Dom Casmurro, de Machado de Assis, não é para mostrar influências. É  que mostra Geraldo Lima ligado às grandes linhas do romance brasileiro. E acredito que isso não é pouca coisa.
            Vejamos: reconhecemos em Dostoiévski o atormentado e religioso mundo russo, nos escritores alemães a tendência a discutir grandes conflitos e o drama entre corpo e alma, nos norte-americanos as frases curtas, a ação vertiginosa e o mundo buliçoso do progresso, mesmo em romances passados no interior (um dos personagens de Faulkner, nos anos 20, roceiro, aplica na Bolsa de Nova York, logo não é a mesma roça do nosso Vidas Secas). Incluir-se no rol da aventura estilística e temática do romance brasileiro, um feito louvável.
            O longo monólogo do narrador não tem uma linha reta nem uma história também linear – talvez não tenha nem mesmo uma grande história, porque o narrador está preocupado é com a própria emoção e repercussões de seus atos. E nisso Geraldo Lima, com sua escrita elegante, mas não fora de época, investe na psique do personagem e na sua angústia existencial.
            A epifania do início não pode ser comparada com a epifania de Clarice Lispector. Em Clarice, a epifania vem de momentos ordinários e inesperados como ver, do bonde, um cego na rua. A epifania de Geraldo mistura duas epifanias: a de Clarice e a de James Joyce, mais ortodoxa e religiosa. Durante todo o texto perpassa a ideia de Deus e de manifestações espirituais. A busca do narrador alterna ora o corpo da amada, ora a experiência mística. Contudo, o mais importante é a maneira como ele a digere e transmite ao leitor e o que é dito em relação a essas experiências.
            Geraldo Lima domina todos os meios de seu ofício e mostra aqui em Um – título por deveras singular – sua concepção de mundo e sua permanência num mundo de volubilidade e mecanicismo crescente. Mostra que a literatura brasiliense já tem sua cara e que pode se apresentar no cenário nacional sem ter vergonha ou ser julgada como provinciana.
            Geraldo Lima, em Um, também brinca com o sagrado e o profano. Místico, epifânico, erótico e mundano, o personagem se agita entre consciências contraditórias e multifacetadas. Esse narrar desgarrado e confessional – todo narrar parece ser uma procura de uma resposta que o próprio narrador nem mesmo conhece – leva a uma literatura de cunho inquisitivo, cujo inquirido é o próprio narrador. Outro traço característico é o olhar. Um é a narrativa da contemplação: de Deus, dos corpos femininos, da lua, da vida. Uma literatura menos de ação e mais de contemplação. Poderia dizer também reflexão, mas o correto talvez seja uma literatura de inação, em que o narrador-personagem se inquieta, narra o passado e seus conflitos e observa a vida, como a grande epifania a ser-lhe revelada.
            Este livro mostra que a literatura de Geraldo Lima vem crescendo em qualidade e tom. Do conto ao romance, o autor aprimora sua arte narrativa, seu repertório estilístico e aponta para uma construção de um percurso que não devemos perder de vista com o risco de não alcançar a trajetória de um bom autor.


            Ronaldo Costa Fernandes é autor de Concerto para flauta e martelo (romance, Ed. Raven; finalista do Jabuti de 98),  O Morto solidário (romance, Ed. Raven; Prêmio de Casa de las Américas), Terratreme (poesia; Prêmio Bolsa Brasília de Produção Literária da FCDF), Manual de tortura (contos, Ed. Esquina da Palavra),  A máquina das mãos (poesia, 7Letras), entre outros.

(Esta resenha foi publicada nas revistas eletrônicas Nós - fora dos eixos, Germina, Verdes Trigos, Verbo21, e no Jornal Opção, em Goiânia.)

segunda-feira, 25 de janeiro de 2010




 FÉRIAS COM PIPAS    

                                                                          GERALDO LIMA

            O céu coalhado de pipas dá-lhe a certeza de que a meninada já  se desligou completamente do ambiente escolar, tendo passado ou não de série.  Só ele, pelo visto, após uma semana em férias, ainda não se libertou do jugo da rotina de trabalho: pega-se, vez ou outra, pensando em preparar a aula do dia seguinte, em preencher diários ou em corrigir provas. Uma semana, e ele ainda não conseguiu esvaziar a mente.
        Não se considera um viciado em trabalho, um “workaholic”, como se diz em inglês. Muito pelo contrário: sempre aguardou, com ânsia, que as ideias do sociólogo italiano Domenico de Masi, sobre o “ócio criativo”, fossem colocadas em prática logo. O futuro em que nós, seres humanos, escravos do estresse, teríamos mais tempo livre para o lazer. Vida, para ele, era a de Dorival Caymmi que, enquanto viveu, passou boas horas deitado na rede compondo, cantando ou simplesmente curtindo preguiça.
        É o que costuma pensar, mas, na prática, vive atolado em tarefas. Mesmo agora, longe do ambiente de trabalho, lista uma infinidade de coisinhas que pretende fazer durante as férias. Queria mesmo é ficar horas e horas sentado no sofá apenas contemplando, através do vidro da sacada, a movimentação na calçada ou o voo das andorinhas ao entardecer. Nenhuma responsabilidade, nenhuma tarefa, nenhum objetivo nesse momento senão este: deixar-se ficar ali, os olhos passeando livres no longe. Inação total. Nada que sirva à chamada vida produtiva.
        Sabe, também, que o ideal é viajar durante as férias. Sem isso, a pessoa não relaxa. E ele se agarra a esta palavra mágica: relaxar! O que ele não conseguiu ainda, após uma semana liberto, é relaxar-se. E agora tem a explicação para o problema que o aflige: ficar em casa, durante as férias, é prolongar a rotina de trabalho do ano inteiro, obviamente que com outras obrigações. São tantos os reparos a serem feitos (a torneira pingando no banheiro, a porta do armário escangalhada há meses, as persianas que não fecham mais... ) que um mês é pouco. Só longe de casa é possível arejar a mente, desligar-se da rotina. Como viajar está fora de cogitação, sente-se condenado a retornar das férias ainda mais cansado.
        Na tentativa de se libertar, caminha e observa as pipas com cores e motivos variados planando no alto: pássaros de papel seda presos às mãos da infância. Lembra-se de que nunca soube empinar muito bem uma pipa, tampouco fazê-la: dependia sempre dos amigos para isso. Será que hoje a molecada ainda diz “empinar pipa”?  O grande barato de tudo era sempre cortar a linha de outra pipa (cerol poderoso ceifando a alegria do adversário) e mergulhar no vazio para apará-la. Pena e júbilo se misturam num momento como esse. Solta no espaço, sem o amparo da linha e das mãos que a manipulam, a pipa tomba num balé confuso,  enroscando-se em si mesma, indo numa direção incerta, até que outras mãos, numa luta feroz pelo prêmio, a peguem ainda em plena queda. Isso ele vê ainda agora, quando um bando de meninos passa afoito ao seu lado, cruza imprudentemente a pista e some atrás dos prédios.

quinta-feira, 14 de janeiro de 2010






        Na minha infância, em Pernambuco, era muito comum ouvir expressões como "abecedário, ABC do Cangaço, etc.   Ao final da adolescência, morando em Brasília, foi a vez do contato com o ABC DA LITERATURA, de Ezra Pound, para quem a poesia está mais próxima da música e das artes visuais que da literatura. É nesse território  por onde transita Paulo Siqueira, que nos seus experimentos passa pelo desenho, a pintura, a fotografia e pela continuidade da velha tradição poética — os versos.                              .         
        Quando se pensa em abecedário, imagina-se uma leitura recortada de A a Z sobre um  ou vários temas.  No caso desta obra, embora isso também ocorra, o poeta convida  para que a palavra saia do dicionário e venha dançar no lago do olho, dentro da orelha,  na ponta da língua do leitor, ou, como diria  Décio Pignatari, “antes da poesia concreta: versos são versos. Com a poesia concreta: versos não são mais versos. Depois da poesia concreta: versos são versos. Só que a dois dedos da página, do olho e do ouvido. E da história".         
         Paulo Siqueira apanha os dados de Mallarmé para relançá-los na outra borda do grande sertão da linguagem, fazendo desta obra uma travessia feita com rigor. Caberá ao leitor-performer desvendar estas páginas-telas, dançar com os signos, jaguncear,  riobaldear-se, vicentir-se, errar, zerar-se,  diluir-se.  Aqui o leitor  encontrará momentos de sublime radicalidade do signo, como no poema “nuvem”, onde as dimensões semântica, sonora e gráfica irradiam ambiências sobre a brancura da página, numa sintaxe espaco-temporal, ou como quando o poeta nos presenteia com o poema zen-corisco: “isca: cai / n’água / inoc / ente / como / um peixe”.
         Haroldo de Campos já nos falava  sobre essa experiência necessária do "beco-sem-saída, (...) que é a única (experiência) fecunda para o poeta consciente de seu fazer, que sabe que só através desse momento de negatividade pode surgir, a cada extremo passo, a possibilidade de um novo lance”.         
O resto é silício.
E que os negros ocupem
os espaços  brancos.

Paulo Kauim é poeta e autor de demorô (Thesaurus Editora, 2009)  http://paulokauim.blogs.sapo.pt
Sobre Vicente de Paulo Siqueira:
É professor e escritor. Autor de O tao da coisa ( poesia, Da Anta Casa Editora, 1995), Lâmina (contos, LGE Editora, 2004) e abecedário (poesia, LGE Editora, 2009).  http://atelieleve.blogspot.com 

DOIS POEMAS DO LIVRO abecedário:

eclesiastes

vê as meninas sob o sol
o belo como é velho
o poema nascer entre
escombros e dor
a cidade como é vã
as vans como passam
de manhã e de tarde
que nada existe
como se pensa
e como é bom
o sol sobre todos
como voam as manhãs para o azul

o não

ele não tem  feição
é redondo e seco
uma fruta seca
uma tarde
agreste no nome
o não parece o escuro
face dos disfarces do sim
palavra
onde a palavra
se fecha em si para dizer

domingo, 10 de janeiro de 2010



Dança ( ou Almodóvar)
                                        
                                                                         Geraldo Lima

Ambos movendo-se no círculo de fogo, devorados pelo desejo. Dois estranhos, quase. Ravel inundando a sala, os corpos. Um minuto antes, pensara em fugir; mas agora, presa ao ímã do olhar, deixava-se arrastar até o olho do furacão. Parecia tão manso, outra espécie de homem; súbito, porém, crispou os lábios, e a mão cortou o ar, dilacerando o encanto. 

quinta-feira, 7 de janeiro de 2010



             DEMÊNCIA

                                                                 GERALDO LIMA

            Do umbigo do tempo até este presente, despraticando a circunspecção da linguagem, obscurecendo-a luminosamente,  discursando para o nada. Sem um interlocutor à altura da sua retórica fantástica,  seu exercício de semear o incomunicável, seu despir-se de todos.
            Dizem no bojo do máximo espanto: alimenta-se da carne das palavras, umas com o estranho poder de eternizá-lo. Creio nesse mistério também: o modo como o tempo o tem poupado reforça a crença. Petrificou-se. Divinizou-se. Aere perennius. Não adoece, não envelhece, não carece de ninguém. A solidão é, portanto,  sua trincheira absoluta. Onde o real ergue muros, lá ele principia, sem limites.
            Sempre consigo mesmo, inacessível. Desavença constante com algo que inexiste. Aparentemente.  Basta entender que, o que para ele existe, existe imenso. Olhos comuns assim, dados ao mínimo, nada penetram, nada discernem.
            Dizem, no entanto, ávidos de clareza:  espíritos mandam nele.