terça-feira, 28 de agosto de 2012

Gritos


 Por Geraldo Lima

De repente o tempo fechou dentro do salão. Vi um brilho de metal luzir sob a luz da lâmpada e dezenas de pessoas precipitarem-se em direção à porta. A porta, como era de se esperar, tornou-se estreita demais para tantos corpos, para tanto desespero. Consegui vazar pela janela e sumi dentro do breu. Parei uns quinhentos metros depois, sem ar nos pulmões e coragem para avançar no escuro. Então fechei os olhos e tapei os ouvidos para não ouvir nada, nem o tinir do aço nem o estalido  das armas de fogo. Mas na mente, sem que eu pudesse  interromper, a cena continuou a desenrolar-se violenta e gangrenada.


(Texto publicado, originalmente, no Jornal Opção, em Goiânia, e no site O BULE)

sábado, 25 de agosto de 2012

Filho do raio


Por Aimé Césaire

E sem que ela tenha se dignado a seduzir  os carcereiros
em seu corpete se desintegrou um buquê de colibris
em suas orelhas germinaram rebentos  de atóis
ela me fala uma língua tão doce que a princípio eu
não compreendo mas com o tempo adivinho que ela
me afirma
que a primavera  chegou à  contracorrente
que toda sede está saciada que o outono se  
conciliou conosco
que as estrelas na rua floriram em pleno meio-dia e
muito baixo suspendem seus frutos 

(Tradução: Geraldo Lima) 
 

quinta-feira, 23 de agosto de 2012

Chuvas



Por Aimé Césaire

Chuva que nos seus mais repreensíveis transbordamentos
não deixa
esquecer que as meninas do Chiriqui tiram de repente
de seu corpete noturno uma lâmpada feita de vaga-lumes
comoventes
Chuva capaz de tudo exceto de lavar o sangue que escorre
nos dedos dos assassinos dos povos surpreendidos sob
as altas florestas da inocência


(Tradução: Geraldo Lima)



(Aimé Césaire foi poeta, dramaturgo, ensaísta e político da negritude. Além de ser um dos mais importantes poetas surrealistas no mundo inteiro, inclusive no dizer do líder deste movimento, Breton, Aimé Césaire foi, juntamente ao Presidente do Senegal, Léopold Sédar Senghor, o ideólogo do conceito de negritude, sendo a sua obra marcada pela defesa de suas raízes africanas.) Wikipédia

domingo, 19 de agosto de 2012

Outro horizonte


Por Aimé Césaire

Noite chagada fendida
noite arvoredo telegráfico plantado no oceano
por minuciosos amores de cetáceos
noite fechada
maceração esplêndida
onde com todas suas forças com todas suas feras se recolhe
o músculo violeta do acônito napel de nosso sol

(Tradução: Geraldo Lima)

sábado, 18 de agosto de 2012

Sílvia


Pintura de Guignard
Por Geraldo Lima

Quando a amiga disse que a viu saindo de uma churrascaria com o marido, numa sexta-feira à noite, Sílvia estranhou, mas não deu muita importância ao fato. Vez ou outra ela e o marido iam mesmo a restaurantes e churrascarias, e dia desses eles tinham ido acompanhados dos filhos. Deve ter sido nesse dia. Mas quando a amiga acrescentou que ela e o marido estavam com a corda toda, pois os vira entrando num motel, numa sexta-feira à tarde, se não lhe falhava a memória, aí então Sílvia estremeceu, sentiu uma pontada no peito, e a amiga percebeu na hora que ela havia mudado de cor.

– Tem certeza que era eu e meu marido?, perguntou engasgada, como se de repente  lhe faltasse ar nos pulmões.

A outra disse que sim, que não tinha dúvidas: eram eles sim, a menos que  tivessem  sósias. 

Sílvia sentiu a sola dos pés e a palma das mãos gelarem como se o sangue estivesse vazando todo do seu corpo. Resistiu à vertigem e manteve-se de pé.  Um raio pareceu ter lhe atravessado o cérebro, abrindo uma clareira enorme  – no mesmo instante, a imagem da irmã gêmea univitelina tomou-lhe a mente de assalto.