quarta-feira, 25 de março de 2020

Uma narrativa que nos arrasta para junto do personagem



 Por Geraldo Lima

O tema do retorno à casa paterna, ou ao antigo lar, perpassa a história da literatura desde os seus primórdios. Começa na Odisseia, poema épico de Homero, com o herói grego Odisseu retornando [ou tentando retornar] ao seu lar em Ítaca, após dez anos de guerra contra os troianos. Séculos depois, aparece no livro sagrado dos cristãos, mais especificamente no Evangelho de Lucas, na Parábola do Filho Pródigo [Lucas 15:12-32]; depois, em nossa era, já na moderna literatura brasileira, é tema tratado com vertiginoso lirismo no romance Lavoura arcaica, de Raduan Nassar, e, com realismo cravado de sarcasmo, no romance Allegro ma non tropo, da escritora brasiliense Paulliny Tort. Agora, apresenta-se como a espinha dorsal que sustenta os dois eixos temporais, presente e passado, no belo romance de estreia de Carlos Eduardo Pereira, Enquanto os dentes [Todavia, 2017, 93 páginas], que, para coroar o seu êxito, já é semifinalista do Prêmio Oceanos 2018 e finalista do Prêmio São Paulo de Literatura 2018, na categoria melhor livro do ano de romance – autor estreante com mais de 40 anos.

Para efeito de comparação, ou de contraponto a outras obras de abordagem temática semelhante ao romance de Carlos Eduardo Pereira, fiquemos, a princípio, com a Parábola do Filho Pródigo e com o romance Lavoura arcaica, obras que tratam, ainda que de modo diferente, sobre o retorno do filho à casa paterna.

No texto do evangelista Lucas, o filho decide, por si mesmo, retornar à casa dos pais após dissipar todo o dinheiro que lhe foi dado assim que partiu para viver a vida ao seu modo e sem regramento. Retorna, portanto, falido e em busca do perdão paterno. Por um lance de sorte ou por ação divina, é recebido com festa pelos pais, ainda que contrariando o primogênito, que ficara e labutara ao lado do pai o tempo todo. Já no livro de Raduan Nassar, o filho fujão, assim André é mencionado, retorna à casa dos pais sob a guarda do irmão mais velho, Pedro, que cumpria o dever de levá-lo de volta. Não retorna, portanto, de livre e espontânea vontade. Não traz, também, nenhum sinal de conquista material resultante dessa fuga e desse enfrentamento do mundo fora dos domínios da casa comandada pela severa disciplina religiosa do pai. Se fugiu para se livrar do que o atormentava, o desejo reprimido pela irmã, retorna ainda mais tomado por ele e em completa possessão. No texto bíblico, o filho pródigo encontra acolhida e compreensão por parte dos pais; no romance de Raduan, o retorno de André será marcado pelo confronto ao poder conservador do patriarca e pela tragédia que atinge a família. No romance Enquanto os dentes, o protagonista Antônio, que havia deixado a casa dos pais há 20 anos, logo após abandonar a Escola Nacional da Armada, para onde fora mandado com o objetivo de se formar oficial da Marinha, retorna completamente falido financeiramente, limitado no seu poder de locomoção e sem a certeza de que irá encontrar uma acolhida favorável, já que terá diante de si a figura conservadora e autoritária do pai militar. Da mãe, religiosa, resignada e obediente às vontades do marido, pode-se esperar ainda algum afeto e boa acolhida, mas nada está garantido claramente. Nesse sentido, ainda que apresente um angustiante final em aberto, é com o romance Lavoura arcaica, de Raduan Nassar, que o seu livro guarda maior parentesco quanto ao destino do protagonista, que, para desgosto do pai, é homossexual e artista.

A TEMÁTICA E SUA ABRANGÊNCIA

Obviamente que o romance Enquanto os dentes não aborda apenas o tema do retorno do filho pródigo à casa paterna. Esse é só consequência do estado físico limitado e da debilidade financeira em que o protagonista se encontra. Outros temas de suma importância estão presentes, entre eles a questão da homossexualidade, da construção de uma identidade individual, da mobilidade urbana para pessoas deficientes, o uso da memória como fio condutor da narrativa etc.

Essa homossexualidade, que Antônio procura não demonstrar ostensivamente, se manifestou desde cedo, o que lhe criava problemas com o pai conservador, como da vez em que, tentando reproduzir, junto a um grupo de garotos na rua, o modo entusiasmado com que o pai falava do piloto Nelson Piquet, “aquele, sim, que era um macho de verdade. Brigão, mulherengo e bom piloto” [pág. 13], acaba se excedendo nos trejeitos e virando motivo de chacota de todos ali. [Talvez por isso, na vida adulta, tenha se tornado reservado e discreto, tanto no modo de se vestir quanto no de portar-se.] Além de ser castigado fisicamente pelo pai, como dessa vez, passa a ser também motivo de desgosto para ele. “Lembra da cara do Comandante, incapaz de disfarçar o desgosto pelo filho que não se virava muito bem com aquelas questões” [pág. 33]. Aí se referindo ao universo da navegação e da sua relação problemática com o mar, logo ele que, segundo os desejos do pai, devia servir à Marinha brasileira.  No ambiente da Escola da Armada, como era de se prever, ele também se sentirá oprimido e será motivo de piada em relação à sua sexualidade e ao seu modo de ser. “Ele era um cara educado demais...” [pág. 51]. Só quando abandona esses dois ambientes, a casa dos pais e a Escola, é que se sentirá livre de fato e poderá dar vazão à sua verdadeira personalidade, que terá na arte um meio de expressão.

A sua identidade individual se forjou nesses ambientes hostis, que o obrigaram a criar estratégias de sobrevivência, ora se mostrando dócil e fraco, ora rebelde e forte. Se parece ser um cara correto, amigável, hospitaleiro, houve momento, no entanto, em que foi capaz de dedurar um companheiro de Escola por pura vingança, por ele lhe ter causado uma punição. “Menos por ter ficado na Escola impedido e mais por um desejo de se vingar, na semana seguinte, na capela, acabou contando em confissão ao padre do fundo falso no armário onde Nascimento vez ou outra escondia uns papelotes de cocaína trazidos para ele, com certa frequência, por um terceiro sargento lotado no paiol” [pág. 63]. O ser reservado, contido, também o manterá fora do olhar vigilante e condenador dos outros. De certo modo, parece não estar no mundo para levantar bandeiras, sejam de que natureza for. 

No momento em que a narrativa se inicia, Antônio já está na rua, seguindo em direção ao terminal das barcas. É a partir desse ponto que vamos segui-lo em sua trajetória até se aproximar da casa dos pais. Essa chegada, aliás, vai sendo protelada por ele, ao tomar pequenos desvios e ao demorar em alguns lugares. Assim, percebemos o quanto é difícil e angustiante para ele empreender essa jornada. Nesse percurso, que é narrado no presente e dura apenas algumas horas de uma sexta-feira, ele encontra pequenos obstáculos que dificultam sua locomoção, os quais ele vence sozinho ou com a ajuda de terceiros. Sem fazer disso um dramalhão, o autor vai expondo as dificuldades por que passam os cadeirantes, assim como mostra, também, o que já há de acessibilidade nas ruas. De modo muito sutil, o livro funciona como um manual de como lidar com pessoas em situação de cadeirante, evitando tomá-las por incapazes de se virarem sozinhas. Nesse trajeto, Antônio encontra alguns antigos conhecidos, que, juntamente com o narrador, têm a função de nos revelar passagens da sua vida, na infância ou na Escola, ligadas à sua homossexualidade. É aí que vemos o quanto de pressão ele sofreu enquanto esteve nesses ambientes marcados pela disciplina severa e o conservadorismo. Essa sua pequena odisseia, ainda que sem os grandes incidentes da homérica, mostra-se grandiosa pelo esforço empreendido por ele, tanto para se deslocar no espaço físico, nem sempre adequado para a sua condição de deficiente, quanto no de manter-se equilibrado psicologicamente, embora a situação lhe seja desfavorável.

É do entrelaçar de passado e presente, do buscar na memória elementos que nos permitem enxergar o personagem em sua inteireza, ainda que de modo gradativo, que se compõe a estrutura do romance de Carlos Eduardo Pereira. Enquanto Antônio se desloca no presente, em sua cadeira de rodas, o passado vai sendo recuperado aos poucos, ora dividindo espaço com o presente num mesmo parágrafo, ora compondo sozinho um parágrafo ou mais. O narrador onisciente nos dá conta, nesse ir e vir, do presente ao passado, dos aspectos que formaram ou deformaram a personalidade do protagonista.

SUTILEZAS ADOTADAS PELO AUTOR NA COMPOSIÇÃO DO TEXTO

Carlos Eduardo Pereira, nesse seu livro de estreia, dá mostras de ser já autor veterano, tal a habilidade com que tece a narrativa, costurando passado e presente, num enredo não-linear, sem, no entanto, torná-lo confuso. O narrador em 3ª pessoa, que parece estar colado ao personagem como se fosse alguém que empurrasse a sua cadeira de rodas, é também um achado. Ele nos faz estar ali também, seguindo Antônio de perto no seu retorno à casa dos pais. “Antônio sempre achou esta praça interessante” (pág. 6), diz o narrador a certa altura, como se a apontasse com o dedo.  Um elemento que poderia deixar o texto chato e pesado [as minuciosas descrições de espaços e objetos, como a do terminal das barcas e a da cadeira de rodas] é desenvolvido com leveza e agilidade, sem travar o escoar das ações.  Mas, em contraponto a isso, temos, em relação à caracterização do protagonista, e de outros personagens, uma outra estratégia, ou seja, a da apresentação indireta do personagem.  Assim, sabemos bastante e de uma vez só sobre como funciona o terminal das barcas, como é constituída a barca, sobre a engrenagem da cadeira de rodas importada da Alemanha, mas muito pouco sobre Antônio assim logo de início. O autor dilui, ao longo da narrativa, as informações que compõem o caráter, os aspectos físicos e psicológicos do protagonista. Desse modo, só aos poucos vamos tendo acesso aos elementos de caracterização que nos permitem montar integralmente a sua figura. Só vamos saber, por exemplo, da cor da pele de Antônio na página 39: “... e Antônio tecnicamente é mulato, já que o Comandante é branco e a mãe é preta”. [A questão racial, como poderia parecer aqui, não será tema desenvolvido pelo autor. O personagem não vivencia, em relação a esse aspecto, nenhum caso de discriminação.]  Da homossexualidade de Antônio vamos nos inteirando aos poucos também, ainda que o narrador vá deixando pistas que apontam para essa orientação sexual. Ou seja, não é dito ao leitor, logo de início, que o protagonista é homossexual, que teve esse ou aquele caso. O leitor vai pegando cada uma dessas informações e vai montando a história e o retrato do personagem. Isso obriga-o a manter uma atenção maior caso queira, de fato, ter uma ideia precisa sobre a natureza dos personagens. 

Enquanto os dentes é romance de narrativa fluida, sem excessos, que nos cativa desde o início, não nos permitindo abandonar o personagem enquanto ele retorna fracassado para o antigo lar. É essa história de tentativa de se firmar no mundo e de fracasso ao final, que Carlos Eduardo nos apresenta com rigor técnico e estética refinada, sem deixar, no entanto, que o leitor, ao término da leitura, abstenha-se da reflexão crítica sobre o destino do ser humano.   

[Resenha publicada, originalmente, no caderno de cultura do JORNAL OPÇÃO