quinta-feira, 26 de dezembro de 2019

Romance de Cinthia Kriemler nos convida ao mergulho nos abismos da alma humana


Por Geraldo Lima

Todos os Abismos convidam para um mergulho, romance de Cinthia Kriemler publicado pela Editora Patuá em 2017, não é um livro de leitura fácil. Não que apresente, em relação à linguagem ou à construção frasal, maiores dificuldades para a fruição da leitura. O texto é costurado, na sua grande extensão, com frases curtas, diretas, sem malabarismos verbais. Nada de linguagem poética, tudo muito seco, sem rodeios, calcado num realismo brutal.  Como um soco. É isso: a narrativa adotada por Cinthia quer, na verdade, funcionar como um soco que desperte a consciência do leitor! A narrativa quer, enfim, arrastar sem titubeios esse leitor para dentro da zona nebulosa e trágica da protagonista.

É aí que a coisa se complica, que a leitura torna-se uma prova de fogo, exigindo do leitor ou da leitora nervos de aço, estômago para digerir situações de violência das quais temos conhecimento, muitas das vezes, apenas pelos jornais ou por conversas de terceiros. Essas narrativas, sem nos forçar a um mergulho profundo no tormento mental e no dia a dia da personagem, mantêm-nos ainda numa posição bastante confortável. E é essa posição de conforto que a narrativa de Cinthia nos tira. E aqui chegamos a mais uma das razões de ser da literatura: levar-nos até o mais fundo da alma humana. 

Cinthia Kriemler, nascida no Rio de Janeiro mas residindo em Brasília desde 1969, já está no seu quinto livro publicado, sendo que o quarto, Na escuridão não existe cor-de-rosa (contos, Editora Patuá, 2015), foi semifinalista do Prêmio Oceanos 2016. Todos os abismos convidam para um mergulho é seu primeiro romance.

Narrado em primeira pessoa pela protagonista Beatriz, uma assistente social com sérios problemas pessoais, o romance nos apresenta, sem suavizar o discurso, a realidade sombria e trágica de mulheres e crianças que sofrem violência doméstica e abusos sexuais. Além desse contexto social em que Beatriz atua como profissional, numa casa abrigo, temos acesso também ao universo das suas relações pessoais e afetivas, com todos os conflitos que lhe atormentam a alma: a perda da filha para a depressão, a relação ambígua com o ex-marido Bernardo, os atritos com a mãe e o irmão e os encontros sexuais estéreis com estranhos. 


A narrativa ocorre, na maior parte do tempo, no presente, um presente asfixiante e que não deixa brechas para o ingresso num futuro de redenção e paz. Quando se descola desse tempo presente, a narrativa descortina aos nossos olhos a vida pregressa da narradora-personagem, com seu passado traumático, e a causa de seu lento e progressivo mergulho no abismo do vício, tanto das drogas quanto do sexo. Essa estratégia de narrativa adotada por Cinthia não permite ao leitor o distanciamento que uma narrativa no tempo passado poderia propiciar, com a ideia de que tudo são fatos passados. O tormento da personagem Beatriz é algo que acontece agora, neste exato momento, diante dos olhos do leitor ou da leitora, enquanto a narrativa se desenrola. “Nem eu sei de onde vem esta raiva. Eu não sou assim.  Nunca me exaltei desse jeito. Tenho que respirar fundo. Daqui a uns minutos vou conversar com esse sujeito anormal” (pág. 44).  

Beatriz não é do tipo que podemos alçar facilmente à categoria de heroína. É, antes de tudo, uma anti-heroína. Incumbida de salvar vidas humanas, ela própria precisa ser salva das ruínas em que sua vida pessoal está soterrada. Sua compulsão sexual leva-a aos mais degradantes ambientes, dos quais retorna ainda mais insatisfeita.  É também uma representante da classe média com suas fissuras e vazios. Uma mulher branca, com livre trânsito na sociedade, mas que sempre vai dar num beco sem saída ao fraquejar e ceder ao vício.  Muito pouco nela nos desperta simpatia. A sua existência paradoxal nos atordoa, levando-nos da compaixão à raiva em poucos segundos. Como pode alguém, cuja função é resgatar pessoas soterradas nos escombros da violência, descer às vezes tão baixo em busca de satisfação para um desejo que é só válvula de escape? “Bunker. É a única palavra no néon vulgar iluminando a porta de entrada para o inferno. Os degraus estreitos, sujos, convenientes. Barro, cuspe, vômito, bebidas. Uma gosma permanente que mais nenhuma água limpa. (...) Um cigarro. A mão que acende o cigarro. Grande, suada. O corpo roçando o meu. Por trás. O cheiro de bebida, de maconha” (pág. 109). Mas aí, lembrando-nos da sua infância traumática, marcada por abusos, do remorso que lhe corrói a consciência pelo que aconteceu à filha Laura, do quão desgastante é a lida com o sofrimento alheio [sem a expectativa, às vezes, de obter sucesso], da própria complexidade da existência humana e de que não devemos esquecer  “a variedade do mundo humano e de sua vida psíquica”, como nos alertou Freud no seu O mal-estar na cultura, então, lembrando-nos disso tudo, conseguimos vislumbrar uma Beatriz humana, retratada em plena vertigem da sua queda.

E é por apresentar “o poder de comunicar umas almas com as outras”, como queria Lima Barreto para a literatura, e por nos convidar a esse mergulho em águas tão tormentosas, em que a vida humana borbulha intensa e inquietante, tirando-nos da zona de conforto, que vale a pena ler esse primeiro romance de Cinthia Kriemler.    

[Texto publicado, originalmente, no JORNAL OPÇÃO e no SUPLEMENTO LITERÁRIO DE MINAS GERAIS]

sexta-feira, 20 de dezembro de 2019

Participação na Jornada Literária do Distrito Federal 2019 - Gama












                                                           
                                                                 [fotos: Cícero Bezerra]
                          [Organização/realização da Jornada Marilda Bezerra e João Bosco Bezerra Bonfim]

segunda-feira, 22 de abril de 2019

A vida como uma busca infindável



Por Geraldo Lima

Allegro ma non troppo (editora Oito e Meio, 2016) é o primeiro romance da escritora e jornalista brasiliense Paulliny Gualbert Tort, que até então só se aventurara no conto, com participação em antologias e publicações em revistas e sites.

A história contada no livro é ambientada, na sua maior parte, em Brasília e arredores, mas leva o leitor também ao ambiente exótico e cativante da Chapada dos Veadeiros, em Goiás. É narrativa ágil e de grande movimentação, que não deixa o leitor cair em pasmaceira. Aborda, em linhas gerais, o tema da busca pelo filho desgarrado. Outros temas, no entanto, estão presentes, como o conflito familiar, a incapacidade de se ligar afetivamente a alguém, a busca por um sentido verdadeiro para a vida etc. Não escapa também à escrita em tom mordaz de Paulliny um retrato crítico e esmaecido do modo de vida da classe média, principalmente a que habita nas entrequadras do Plano Piloto.

O diálogo com outras narrativas, dos tempos bíblicos aos atuais.

Estreia de sucesso na narrativa mais longa, esse primeiro romance de Paulliny Tort foi semifinalista do Prêmio Oceanos 2017, um dos mais prestigiados prêmios literários a contemplar autores de língua portuguesa. Sem dúvida, esse feito a coloca como uma das escritoras contemporâneas que despontam como grande promessa de que a escrita feminina (ou a literatura feita por mulheres) firma-se de fato em terras tupiniquins. E esse acontecimento literário torna-se mais instigante ainda quando constatamos que o romance de Paulliny traz como narrador em primeira pessoa um homem, o protagonista Daniel. Ou seja, a jovem autora, a partir do olhar masculino, desenvolve um tema que nos foi apresentado, pela primeira vez, no Evangelho de Lucas. Trata-se da famosa Parábola do Filho Pródigo [Lucas 15:12 – 32].Mas vamos ao que aproxima a narrativa romanesca da jovem escritora brasiliense da narrativa bíblica, na qual Jesus expõe seus ensinamentos, e o que as distancia ao mesmo tempo.

Em ambas as histórias, há a figura do filho que decide, num determinado momento da vida, deixar a casa dos pais e sair pelo mundo.  Na narrativa do evangelista Lucas, é o filho mais moço que parte após receber do pai a sua parte da herança. Na de Paulliny, é o filho mais velho (João) que parte, dois anos antes da morte do pai, um Senador da República com o qual tinha uma convivência conflituosa.[Aqui, é a mãe que se angustia com a partida e posterior sumiço do filho.] Como é do conhecimento dos leitores do Novo Testamento, o filho mais novo dissipa em farras o que recebeu como herança e, em dificuldade financeira, retorna para a casa paterna em busca de perdão e trabalho.  O antagonismo se dá, nesse caso, em relação ao filho mais velho, que, tendo ficado o tempo todo ao lado do pai, ajudando-o na lida diária, sente-se injustiçado ao vê-lo receber o filho pródigo com festa. Na história criada por Paulliny, há também esse antagonismo entre os irmãos João e Daniel, que vai sendo exposto ao longo da narrativa e se acentua mais fortemente ao final. Será possível uma reconciliação entre eles? E que mistérios prendem tão fortemente a mãe ao filho mais velho? No texto bíblico, entendemos que a explicação comovente e sábia do pai tenha sido aceita pelo filho indignado.

Há ainda, como elemento complicador desse estranhamento entre os dois irmãos do romance Allegro ma non tropo, o fato de Daniel sentir-se menos acolhido pelo olhar dos outros por ser fisicamente diferente do irmão. Nas palavras de Daniel, o fato de o irmão se parecer fisicamente com a mãe, loira, alta, bonita, torna-o privilegiado e acima de qualquer suspeita, enquanto ele, moreno e franzino, que se diz parecer com ninguém, figura-se suspeito, por exemplo, ante o olhar dos porteiros. “O porteiro, novo no prédio, não me deixou subir sem ser anunciado. Duvidou que eu fosse filho da madame.” Nesse trecho, Paulliny deixa entrever um problema que afeta sobremaneira a população negra no Brasil: a vigilância mais acirrada sobre o indivíduo negro, seja o de pele mais escura, seja o de pele um pouco mais clara. Entrar em lugares mais sofisticados, de classe média ou rica, só pelo elevador de serviço ou depois de passar por severa revista. Embora a autora use a palavra “moreno” para caracterizar a cor da pele de Daniel (caracterização rejeitada, hoje, por boa parte da população afrodescendente), é nessa linha da questão racial que a narrativa adentra.Mas, na realidade, sem ir além dessa insinuação de discriminação racial, mesmo porque o foco da sua narrativa é outro: a busca pelo filho desgarrado. E é nesse ponto que sua história envolvendo esse tipo de busca, ou de tema, nos leva a outra história, esta pertencente à moderna literatura brasileira. Trata-se do maravilhoso livro Lavoura arcaica, de Raduan Nassar.

No livro de Paulliny, é o irmão mais novo, Daniel, o incumbido pela mãe de procurar pelo irmão mais velho que partiu sem indicar paradeiro. No de Raduan Nassar, cabe ao irmão mais velho, Pedro, trazer de volta à casa paterna o filho fujão (é como fuga que é vista a partida de André). Em ambas as histórias, os protagonistas são os narradores, mas cada um imprime um tom próprio ao seu discurso: poético e extremado em André (Lavoura Arcaica), prosaico e irônico em Daniel (Allegro ma non tropo). No entanto, o sentido de possessão, de embate violento no campo da moral, dos costumes familiares, o uso da linguagem poética em estado puro, vibrante, presentes no romance Lavoura arcaica, não fazem parte da configuração narrativa de Allegro ma non troppo.A narrativa de Paulliny não busca a densidade psicológica ou trágica que podemos observar na obra de Raduan. É narrativa mais fluida, que dá conta da movimentação do protagonista na busca pelo irmão, em Alto Paraíso, cidade mística situada na Chapada dos Veadeiros, em Goiás, ou nos arredores de Brasília. É, em suma, narrativa que prima pelo tom de oralidade.

Outros pontos de contato ou de afastamento entre os dois livro podem ser apontados: se em Lavoura arcaica há o elemento religioso defendido com severidade e força pelo pai, em Allegro ma non troppo aparece o elemento místico, que é visto pelo narrador-personagem com reserva e ironia. Aliás, esse é o principal elemento que Daniel aponta como motivo de afastamento entre ele e o irmão: João enverada, cada vez mais, pelos caminhos do misticismo, enquanto ele vai sendo tragado pelo ceticismo. As duas histórias são dramas familiares que ilustram bem a grande dificuldade de convivência entre as pessoas quando tomadas por ideias extremas e apaixonadas. O sentido de liberdade e de busca pela própria essência, mesmo que isso se dê de forma enviesada e incompreensível para os demais, está presente tanto no livro de Raduan quanto no de Paulliny. Mas a proximidade entre as duas obras acaba aí.

 A ligação com a música e alguns aspectos da vida do protagonista

Allegro ma non tropo [do italiano, significa “rápido, mas não muito”] é uma expressão do universo da música clássica e, segundo a Wikipédia, “é um andamento utilizado para indicar ao músico que a execução deve ser moderadamente rápida. Em geral, o movimento allegro é executado com pulsão rápida e expressão leve e alegre”. No caso do livro de Paulliny, podemos observar que a narrativa segue um ritmo ágil, acelerado, mas sem a pressa exagerada que resulta num atropelo de cenas desconexas. [A referência à música, tanto a erudita quanto a popular, é uma constante ao longa da história.]


Embora o tema seja pesado [o conflito familiar e existencial do protagonista, um músico erudito em busca de afirmação profissional e compreensão dos problemas afetivos], o uso da ironia quebra em parte essa sisudez e mantém a história num andamento mais leve, o que permite, através do olhar do narrador-personagem, que outros elementos ao redor sejam mostrados. É assim que, através dum olhar mais descolado do seu mundo interior, Daniel, em sua jornada de busca pelo irmão, apresenta ao leitor o universo místico da cidade de Alto Paraíso, com seus tipos excêntricos, as cachoeiras que atraem tantos turistas ao vilarejo de São Jorge [também na Chapada dos Veadeiros, a 300 km de Brasília] e os arredores da Capital, até então desconhecidos para ele.Porém, os tipos que aparecem nesses lugares marcados pelo misticismo [tipos geralmente em busca de autoconhecimento ou de um sentido pleno para a vida] nem sempre são vistos com olhar complacente por Daniel, que, não raro, destila aí sua verve irônica e contaminada pelo ceticismo. “O Devananda usava um turbante branco enrolado na cabeça. Parecia indiano, mas não era. Tinha sotaque de cearense, o que sabotava toda a sua elaborada aparência de guru das montanhas.” É essa descrença, que o faz desconfiar dos discursos pretensamente místicos, religiosos, e sua incapacidade de se ligar mais fortemente a alguém que caracterizam mais fundamente a sua vida. A sua relação instável e insegura com as mulheres é também um contraponto com a forte personalidade do irmão, um notório conquistador e amante contumaz.

O seu caso com Marina é bem emblemático: ela se entrega, declarando-se apaixonado por ele, mas, no momento de ele se entregar também, recua, justificando seu ato insensível: “Devia estar sentindo ao mesmo tempo muita raiva e muita vergonha. Quase a puxei de volta para dizer que a amava, mas fiquei com medo. Com medo de que ela acreditasse e ficasse e eu não conseguisse mais afastá-la de mim. Eu não queria uma Marina para sempre”.

Paulliny se revela uma excelente criadora de personagens. Em Alto Paraíso, por exemplo, o protagonista se envolve com uma série de personagens estranhos e cativantes ao mesmo tempo. E é com pesar que vemos esses personagens sumirem da história, já que, em sua busca pelo irmão, Daniel vai e volta ao seu ponto de origem, perdendo contato com essas pessoas no mínimo interessantes, como Berta, a simpática jovem descendente de alemães, Gabriela, a garçonete mulata, exuberante e, aparentemente, inacessível, e Ronald, com sua figura jovem já detonada pela vida extravagante que leva, mas cheio de afeto.Todos esses personagens, cada um a seu modo, em função de sua inquietude, mereceriam uma história à parte. Todos, de certa maneira, são indivíduos que escaparam dos limites da casa dos pais e se jogaram no mundo em busca de sentidos outros para a vida.

[Texto publicado, originalmente, no Correio das Artes e na revista Diversos Afins]