domingo, 28 de novembro de 2021

Um olhar sem idealismo sobre a luta armada


 Por Geraldo Lima

 

A Ditadura Militar, que se estendeu de 1964 a 1985, já rendeu, na literatura brasileira, livros nas mais diversas áreas, da poesia ao ensaio. Dentre os mais recentes livros de ficção que abordam esse período tenebroso da nossa história, encontra-se o romance Noites Simultâneas [Bagaço, 2017, 173 páginas], do jornalista e escritor Maurício Melo Júnior.

O livro, que não teve o devido destaque no ano de sua publicação, conta a história de um indivíduo que, tendo como projeto de vida apenas formar-se em Medicina e, posteriormente, cuidar da fazenda dos pais, vê-se, de repente, envolvido com a luta armada. “O moço não se apega às revoltas, nunca leu ou viveu política, mergulha a existência em certa capa de ingenuidade e alienação...” [pág. 13]. A cena em que ele se vê envolvido numa manifestação de protesto, no momento em que vai atravessar uma ponte, lembra um pouco a cena do filme Tempos Modernos em que Carlitos, de uma hora pra outra, involuntariamente, começa a marchar à frente de uma manifestação de trabalhadores e acaba sendo tomado como seu líder. O protagonista de Noites Simultâneas, até então um pacato jovem vindo do interior, sem ligação alguma com as manifestações políticas que agitam o país, vê-se em meio à repressão policial aos manifestantes e, ajudado por uma moça, com a qual vai se envolver ideológica e amorosamente, consegue escapar. A partir desse instante, começará a fazer parte de uma organização guerrilheira e seu projeto de vida muda radicalmente. E tudo vai acontecendo assim, de um modo bem frenético, numa narrativa que não se detém muito em detalhes descritivos, seja do espaço externo, seja do mundo interior das personagens. O foco, neste caso, é a ação, é o desejo de captar o clima tenso e buliçoso da agitação política dos Anos de Chumbo.

Uma estratégia narrativa empregada por Maurício Melo Júnior, para caracterizar bem a imagem daquele período de lutas clandestinas contra o regime, é referir-se aos personagens não pelo nome próprio, mas, sim, pela sua profissão, pelo gênero, pelo seu papel no movimento de guerrilha etc. Assim, o protagonista é apresentado, inicialmente, como “o moço”, depois, como “o prisioneiro”, e, por último, como “o aposentado”. É como se essa espécie de codinome tivesse a função de criar um certo distanciamento, como no teatro épico de Brecht, para evitar que os aspectos puramente emocionais nos afastem da visão histórica. Ainda assim, é possível perceber, em certas ações do protagonista, diante do esfacelamento das forças revolucionárias, uma natureza nebulosa e capaz de fraquezas imperdoáveis. A partir de então, sua trajetória de vida torna-se incompatível com aquele momento de adesão radical ao movimento de guerrilha, com aquela travessia da ponte que funciona, simbolicamente, como elemento de ligação entre seu estado anterior de alienação e sua posterior tomada de consciência política.  É ele mesmo que confessa: “Era a vida que eu queria, mas sempre fui fraco, covarde, medíocre” [pág. 145]. Sabemos que, na vida real, não pouco foram os que traíram também a causa, sob tortura ou não. Noites simultâneas é, de certa maneira, um romance que escancara essa ferida, essa mácula presente no ideário revolucionário que combateu a ditadura em nosso país.

A narrativa, que se dá em terceira pessoa, acompanha ágil o ir e vir do protagonista num espaço geográfico que também não é nomeado, apenas sugerido nos seus elementos naturais, arquitetônicos, urbanísticos etc. No início da história, por exemplo, deduzimos que a ação se dá numa cidade litorânea ao nos depararmos com esta afirmação: “...a greve só não interrompe o vento atirado pelo mar...” [pág. 12]. Seria Recife?  E assim vai até o final. O que sabemos é que o protagonista percorre um longo espaço, através do qual vai mudando, também, seu modo de pensar e de agir. Às vezes, está mesmo é em fuga, tentando livrar-se do passado, de “Uma vida de nódoas, mágoas, segredos” [pág. 145]. Mas, como deduz a certa altura da vida, “O passado é uma pedra coberta de limo, impossível limpar” [pág. 166]. Resta-lhe, ao final, a tentativa de se contrapor [num texto que parece ecoar apenas para si mesmo] à presença heroica da antiga namorada, dos tempos de guerrilha, que, fiel aos antigos ideais, pode se dirigir às novas gerações e falar sobre o seu passado de luta revolucionária.     


[Resenha publicada, originalmente, no JORNAL OPÇÃO ]