Por Geraldo Lima
A Ditadura
Militar, que se estendeu de 1964 a 1985, já rendeu, na literatura brasileira,
livros nas mais diversas áreas, da poesia ao ensaio. Dentre os mais recentes
livros de ficção que abordam esse período tenebroso da nossa história,
encontra-se o romance Noites Simultâneas [Bagaço,
2017, 173 páginas], do jornalista e escritor Maurício Melo Júnior.
O livro, que não
teve o devido destaque no ano de sua publicação, conta a história de um
indivíduo que, tendo como projeto de vida apenas formar-se em Medicina e, posteriormente,
cuidar da fazenda dos pais, vê-se, de repente, envolvido com a luta armada. “O
moço não se apega às revoltas, nunca leu ou viveu política, mergulha a
existência em certa capa de ingenuidade e alienação...” [pág. 13]. A cena em
que ele se vê envolvido numa manifestação de protesto, no momento em que vai
atravessar uma ponte, lembra um pouco a cena do filme Tempos Modernos em que Carlitos, de uma hora pra outra, involuntariamente,
começa a marchar à frente de uma manifestação de trabalhadores e acaba sendo
tomado como seu líder. O protagonista de Noites
Simultâneas, até então um pacato jovem vindo do interior, sem ligação
alguma com as manifestações políticas que agitam o país, vê-se em meio à
repressão policial aos manifestantes e, ajudado por uma moça, com a qual vai se
envolver ideológica e amorosamente, consegue escapar. A partir desse instante,
começará a fazer parte de uma organização guerrilheira e seu projeto de vida
muda radicalmente. E tudo vai acontecendo assim, de um modo bem frenético, numa
narrativa que não se detém muito em detalhes descritivos, seja do espaço
externo, seja do mundo interior das personagens. O foco, neste caso, é a ação, é
o desejo de captar o clima tenso e buliçoso da agitação política dos Anos de Chumbo.
Uma estratégia
narrativa empregada por Maurício Melo Júnior, para caracterizar bem a imagem
daquele período de lutas clandestinas contra o regime, é referir-se aos
personagens não pelo nome próprio, mas, sim, pela sua profissão, pelo gênero,
pelo seu papel no movimento de guerrilha etc. Assim, o protagonista é
apresentado, inicialmente, como “o moço”, depois, como “o prisioneiro”, e, por
último, como “o aposentado”. É como se essa espécie de codinome tivesse a
função de criar um certo distanciamento, como no teatro épico de Brecht, para
evitar que os aspectos puramente emocionais nos afastem da visão histórica. Ainda
assim, é possível perceber, em certas ações do protagonista, diante do
esfacelamento das forças revolucionárias, uma natureza nebulosa e capaz de
fraquezas imperdoáveis. A partir de então, sua trajetória de vida torna-se
incompatível com aquele momento de adesão radical ao movimento de guerrilha,
com aquela travessia da ponte que funciona, simbolicamente, como elemento de
ligação entre seu estado anterior de alienação e sua posterior tomada de
consciência política. É ele mesmo que
confessa: “Era a vida que eu queria, mas sempre fui fraco, covarde, medíocre”
[pág. 145]. Sabemos que, na vida real, não pouco foram os que traíram também a
causa, sob tortura ou não. Noites
simultâneas é, de certa maneira, um romance que escancara essa ferida, essa
mácula presente no ideário revolucionário que combateu a ditadura em nosso
país.
A narrativa, que
se dá em terceira pessoa, acompanha ágil o ir e vir do protagonista num espaço
geográfico que também não é nomeado, apenas sugerido nos seus elementos
naturais, arquitetônicos, urbanísticos etc. No início da história, por exemplo,
deduzimos que a ação se dá numa cidade litorânea ao nos depararmos com esta
afirmação: “...a greve só não interrompe o vento atirado pelo mar...” [pág.
12]. Seria Recife? E assim vai até o
final. O que sabemos é que o protagonista percorre um longo espaço, através do
qual vai mudando, também, seu modo de pensar e de agir. Às vezes, está mesmo é
em fuga, tentando livrar-se do passado, de “Uma vida de nódoas, mágoas,
segredos” [pág. 145]. Mas, como deduz a certa altura da vida, “O passado é uma
pedra coberta de limo, impossível limpar” [pág. 166]. Resta-lhe, ao final, a
tentativa de se contrapor [num texto que parece ecoar apenas para si mesmo] à
presença heroica da antiga namorada, dos tempos de guerrilha, que, fiel aos
antigos ideais, pode se dirigir às novas gerações e falar sobre o seu passado
de luta revolucionária.
[Resenha publicada, originalmente, no JORNAL OPÇÃO ]