Por Geraldo Lima
Brasília tem servido de cenário ou
tema para obras de gêneros literários diversos, mostrando, com isso, sua
importância como centro do Poder e, ao mesmo tempo, como cidade que vai, aos
poucos, criando sua própria identidade cultural. Quase sempre a vemos retratada
já como centro urbano consolidado, em pleno desenvolvimento, exibindo tanto sua
beleza arquitetônica, seu inusitado plano urbanístico, quanto os problemas
sociais que a cercam ou espalham-se em seu interior. Vê-la retratada ainda
durante a sua construção, ora com olhar de encanto, ora com olhar de crítica
severa, é coisa rara de se ver. Em As
margens do paraíso [romance, Cepe Editora, 2019, 269 páginas], o escritor
Lima Trindade, nascido em Brasília e vivendo atualmente em Salvador, cumpre
esse papel e nos transporta para o cenário de avenidas empoeiradas, canteiros
de obras sob o comando de empreiteiras e empresas públicas, alojamentos precários,
escritórios, boates e zonas de baixo meretrício, numa Brasília que marcha para
ser inaugurada, impreterivelmente, no dia 21 de abril de 1960.
Antes, porém, de fazer com que a vida
de seus protagonistas – três jovens brancos de diferentes camadas sociais –
convirja para esse cenário épico da construção da nova capital do país, ele
apresenta cada um deles em sua respectiva cidade: Juazeiro, Anápolis e Rio de
Janeiro. É nessas localidades, distantes umas das outras, que vemos como se deu
a formação intelectual e afetiva desses jovens e de como os ecos da construção
de Brasília chegavam até eles.
A ESTRUTURA DO ROMANCE E A VIDA DOS
PERSONAGENS
Como há dois momentos importantes
marcando a vida dos protagonistas Leda, Rubem e Zaqueu, Lima Trindade optou,
acertadamente, por dividir o livro em duas partes.
Na primeira, a narrativa é feita em
1ª pessoa e cada capítulo recebe o nome do narrador-personagem [Leda, Rubem,
Zaqueu], assemelhando-se, nesse aspecto, ao romance Enquanto agonizo, de Faulkner. Desse modo, ficamos sabendo das
frustrações, desejos e aspirações de cada protagonista, quase sempre em confronto
com o meio em que vive. Leda sofre ao ser explorada na casa do padrinho, em
Juazeiro, enquanto sonha com os artistas do rádio e do cinema. Aos poucos, o
desejo que sente pelo padrinho vai complicando sua vida, a ponto de levá-la a
um desfecho trágico. Rubem, ao mesmo
tempo em que se anima com a ascensão no emprego, frustra-se na vida amorosa, e
isso será decisivo para que mude radicalmente seu projeto de vida longe dos
bares e praias do Rio. Zaqueu, filho de pais ricos, pertencentes à elite anapolina,
rebela-se e nega-se a continuar os estudos. O pai, que o leva ao prostíbulo
para que se inicie na vida sexual, é o mesmo com o qual tem duros embates.
Todos eles, impactados por acontecimentos trágicos, como é o caso de Leda e
Zaqueu, ou frustrantes, no caso de Rubem, vão amadurecer e ganhar,
praticamente, uma nova personalidade no universo agitado e tenso da capital que
se ergue em pleno cerrado.
Na segunda, ainda que haja dois
capítulos curtos, que recebem também o nome do narrador-personagem [Mauro] e
com narrativa em 1ª pessoa, vai predominar a narrativa em 3ª pessoa no longo
capítulo intitulado “Brasília”. No novo
cenário de cidade em construção, de busca de novos horizontes, de adaptações ao
novo ambiente, o narrador onisciente cumprirá bem a função de nos apresentar os
personagens com maior riqueza de detalhes, tanto física quanto psicológica.
Assim, ficará bem clara a mudança de caráter de Zaqueu e de estilo de vida de
Rubem, e isso terá papel fundamental no desfecho da história. O uso do narrador
onisciente permitirá, também, que o autor nos forneça um panorama das
atividades desenvolvidas na construção da capital, envolvendo desde as
empreiteiras até os prostíbulos na Cidade Livre, os quais, de certo modo,
ganham relevo nesta narrativa de Lima Trindade. Aliás, o sexo tem um grande
destaque nessa história, chegando a influenciar no seu andamento. Assim,
podemos perceber que é nos prostíbulos e boates da Cidade Livre que ocorrerá
boa parte dos encontros dos personagens. “Zaqueu estivera em outros bordéis da
Cidade Livre antes. Divertira-se, bebera e, afora o prazer que desfrutara nos
braços femininos, descobriu ser nesses espaços que as oportunidades de negócios
se apresentavam com maior frequência. Não quaisquer negócios. Mas justamente os
mais lucrativos. Assim como não se apresentavam em quaisquer bordéis” [página
180].
É interessante observar também que a
construção frasal muda de uma parte para outra. Na primeira, ouvimos a voz de
cada protagonista narrando, no presente, seu cotidiano e os conflitos nele
inseridos, e sempre num ritmo mais acelerado, entrecortado, devido ao uso sistemático
de frases curtas. Esse procedimento está bem de acordo com a estratégia
narrativa adotada pelo autor para esse momento da história. Já na segunda, sob
a ótica do narrador onisciente, com amplitude de olhar, as frases longas imprimem
à narrativa, que se dá no passado, um ritmo mais lento e possibilitam um maior
detalhamento do espaço, dos estados psicológicos e das características físicas
dos vários personagens que aí transitam.
PESQUISA HISTÓRICA E IMAGINAÇÃO
As margens do paraíso é fruto de apurada pesquisa histórica realizada por Lima em cada
localidade em que ocorrem os fatos narrados. Durante sua leitura, deparamo-nos
com personagens reais envolvidos na construção de Brasília, como é o caso do
político Israel Pinheiro e do escritor e também engenheiro Samuel Rawet, e com
fatos do conhecimento de todos hoje em dia, como o massacre no alojamento da
Pacheco Fernandes. No livro, já com a interferência da imaginação do autor,
assistimos a esse triste episódio acontecer em outro lugar: “Meia hora depois,
dois caminhões repletos de soldados da GEB ultrapassaram a fronteira dos
portões da Estevão Muniz e estacionaram na parte dianteira do alojamento de
solteiros, onde havia a maior concentração de operários da empreiteira” [página
258]. Em Juazeiro, Anápolis e Rio de Janeiro, percebe-se o cuidado do autor em
apresentar ambientes e situações culturais pertinentes ao momento histórico em
que os personagens vivem. Vemos já a presença de mulheres com discurso e
postura feminista, jovens articulando ações de esquerda no ambiente estudantil,
uma juventude influenciada pelas novidades no campo da música e da moda etc.
Assim, a trama deste primeiro romance
de Lima Trindade envolve um elemento ficcional, em que a imaginação do autor
molda e move as ações dos personagens, até se cruzarem no cenário da construção
de Brasília, e um elemento histórico, que serve tanto como cenário, ou pano de
fundo, quanto como elemento fundamental no desenvolvimento da história e do seu
desfecho.
Lima Trindade, nesta sua obra, além
de nos apresentar de modo intenso a trajetória de três jovens brasileiros na
década de 1950, nos transporta a um momento singular da história do nosso país,
em que se sonhou verdadeiramente grande. Porém, ele não se furta ao dever de apontar
os sérios problemas que essa empreitada, levada a cabo por Juscelino Kubitschek,
produziu, como, por exemplo, a exploração da mão de obra dos candangos pelas
empreiteiras. Em As margens do paraíso,
como o título mesmo sugere, de modo irônico, já anunciam-se os graves problemas
sociais que ainda hoje cercam o Plano Piloto e dão conta do fracasso do sonho de
JK, Oscar Niemeyer e Lúcio Costa.
[Resenha publicada, originalmente, na revista digital Diversos Afins]