Publiquei Baque em 2004, pela LGE Editora. É um livro composto por seis contos (Pus, Baque, Limbo, Adaga, Ermo e Vigília) que expõem, de forma dramática, a precariedade da existência humana. Na apresentação do livro, o escritor Ronaldo Cagiano escreveu: “Da mesma forma, os seis contos de ‘Baque’ comunicam-se pela semelhança de universos, sempre carregados de dificuldades, angústias humanas e desertos existenciais, que moldam os dramas e tensões, formando um candente painel em que seus personagens vivem situações-limite, no limbo, numa espécie de underground, entre um baque e outro”.
Quem se interessar pelo livro, pode adquiri-lo pelo site da editora www.lgeeditora.com.br ou em outras lojas virtuais.
Eis um dos seus contos.
PUS
Por Geraldo Lima
E a ideia é essa mesma, ele resmunga, enquanto tenta se erguer sob o sol implacável de agosto. A ideia é esta mesma, quase grita já de pé, as pernas bambas: apodrecer diante de todos como uma fruta no lixo da feira ou um cão morto na beira da estrada!
No oco da mente ainda resistem vestígios de um tempo do qual ele até sente nostalgia, mesmo que persista a sensação de nem tê-lo vivido verdadeiramente. Talvez tenha sido só mesmo um desejo, um plano abortado em meio aos atropelos do dia-a-dia. Há, no entanto, essa imagem rota de um eu perdido na borrasca cotidiana.
Então é isto: aquele que ele imagina que perdeu há tempos, ah, esse parece mesmo perdido para sempre. E se está perdido, se a máquina do mundo o triturou completamente, então, este que ele adotou, este corpo-molambo em que vive agora, não merece cuidado algum. Que apodreça sobre o altar do mundo! Que desça então sobre ele a fúria de um deus sem piedade alguma!
Precisa buscar uma sombra, talvez o toldo de uma loja ou uma parada de ônibus. Sente uma vontade imensa de desabar num sono profundo, sem volta, para dentro de uma noite infinita. Já não tem mais forças para arrastar o corpo enfermo. Cambaleante, atravessa a rua e, aos tropeções, chega até uma árvore. A sombra é mínima, mas nela cabe muito bem o seu corpo magro.
É de se admirar que, depois de tanto tempo, ainda sinta dor de cabeça. Que o seu corpo não esteja anestesiado. Que ele ainda se disponha a pensar, a refletir. Não, não, não quer mais pensar. O seu esforço é esse mesmo: apagar a lucidez. Turvar a mente. Deixá-la à deriva. O objetivo é um só: se aniquilar diante das câmeras, dos olhares indiferentes ou chocados das pessoas. Da pressa cotidiana. O intuito é que um belo dia alguém, vendo-o passar pelo outro lado da rua, diga, aquele cara ali já foi alguém na vida... agora, veja só que molambo!
Quer verdadeiramente suscitar esse tipo de indagação sem resposta, esse espanto que mais angustia quem ousa sair de si para entender o outro. Quem procura explicações precisas, esclarecedoras para o profundo mistério da vida, — se é que a vida tem algum mistério. Talvez haja tão-somente uma ou duas explicações para a vida, mas há quem queira sempre saber mais, e mais, e mais. A causa de tudo. O antídoto. A cura. Não, jamais chegarão ao cerne do que chamariam mistério, ainda que mergulhem num indagar incessante, por que abandonou aquele roteiro que parecia ir dar num final feliz? As coisas não estavam funcionando bem? Mas, de repente, deu para falar assim, amargo, contrário a tudo. Há dias não vai ao trabalho. Há dias não toma nem banho! Dizem mesmo que está apodrecendo. Moscas o acompanham em festa. O lixo é seu restaurante. À noite, o mundo o acolhe como um anjo perdido.
Agora mesmo, não faz dez minutos, voltou do banheiro da rodoviária suando frio, escorando-se nas paredes. Sentou-se no meio-fio e deixou-se ficar assim, a cabeça amparada pela mão esquerda, pesada, latejando, como se alguém a estivesse partindo ao meio com uma serra. Foi quando se ergueu e pôs-se em marcha em busca de um lugar fresco para descansar. Sorte ter encontrado essa sombra, esse lugar tranquilo fora do trajeto das pessoas. Acha-se tão sem forças, sem alma, que o inseto que escala o seu pé esquerdo não deve encontrar resistência alguma até chegar à borda da sua boca escancarada. Os muros do seu corpo estão demolidos. Qualquer invasor chega e invade o seu território sem encontrar resistência. É como costumam dizer: está entregue às moscas.
Há sérias complicações que denunciam a falência do seu ser. O organismo já dá sinais de corrosão, de completa debilidade: vez ou outra, o que engole volta à tona num jato violento e azedo. No corpo, várias escoriações traçam mapas de ruínas e desertos. Há muito perdeu o senso de direção e equilíbrio: costuma vir tombando ora no asfalto ora na terra.
Há tempos anda sem rumo pelas veias da cidade. Um tronco podre levado pela enchente. Um ramo seco varrido pelo vento. Pelos terrenos baldios, pelas esquinas, pelas calçadas, sem bússola, sem mapa. Cada manhã um roteiro diferente. Um sem-destino. Um sem-que-fazer todos os dias. Um vagabundo para os que ainda labutam, para os que retomam a rotina todas as segundas-feiras. Não fosse a precariedade da sua existência, o depender ainda da caridade dos outros, poderia até dizer numa última tentativa de se firmar no mundo: sou livre, sou livre. Mas, com certa amargura, conclui, só mesmo a morte liberta.
O inseto está a três dedos da sua boca: chegou à ponta do queixo e tenta vencer o emaranhado de pelos. Se não mudar a sua rota, logo, logo cairá nesse buraco úmido e fétido. Talvez, num movimento reflexo, o homem feche a boca violentamente e o esmague. Mas pode ser que a sorte o ajude: um sono profundo, que não deve tardar, apagará os últimos vestígios de energia que move esse ser.
Sob a sombra mínima da árvore, a boca aberta, o olhar esbarrando com o céu de folhas verdes, o homem experimenta a tosca sensação de completo abandono, de não fazer parte de nada, de não existir mais.
Belo conto, Geraldo, Obrigado por compartilhar!
ResponderExcluirForte Abraço!
seu blog é muito bom e seus trabalhos são ótimos.
ResponderExcluirum ótimo final de semana.