sábado, 18 de julho de 2020

Um crime e as feridas do nosso passado histórico



Por Geraldo Lima

O romance policial e o romance histórico sempre foram alvo do desprezo da crítica e da academia, apesar do enorme sucesso que sempre alcançaram junto ao público. Desde Edgar Allan Poe, pai da narrativa policial, e de Sir Walter Scott, tido como o criador do romance histórico, esses gêneros ficcionais têm se mantido de pé, e parece que vão continuar assim, visto que o número de autores e autoras que se dedicam a eles só tem crescido, fora e dentro do nosso país.

Agora, quando falamos do romance histórico-policial, temos uma outra realidade, porque aí a operação de construir uma estrutura narrativa que une os dois estilos, o policial e o histórico, torna-se mais complexa e arriscada.  No caso desse gênero literário, a estrutura narrativa apresenta uma trama policial, ligada, geralmente, à investigação de um crime, e, também, um registro histórico, juntando personagens reais e fictícios. Costurar essas duas realidades calcadas na imaginação e no fato histórico, num ritmo que prenda a atenção do leitor, é que demanda do escritor ou da escritora uma habilidade extra. A jornalista e escritora Eliana Alves Cruz encarou o desafio e trouxe a público o seu romance O crime do Cais do Valongo [Editora Malê, 2018], fruto de exaustiva pesquisa histórica e força imaginativa.

O crime do Cais do Valongo é um romance histórico-policial, já que sua narrativa parte da investigação de um crime e se soma às informações históricas referentes ao contexto em que ele se dá. O crime, no caso, refere-se ao assassinato do rico comerciante Bernardo Lourenço Viana, noticiado na Gazeta do Rio de Janeiro à época. Já o registro histórico apresenta o Rio de Janeiro da primeira metade do século XIX, com a Família Real já residindo no Brasil, e, de maneira mais minuciosa, os arredores do Cais do Valongo, local de desembarque de africanos escravizados e onde se dá a morte do comerciante Bernardo Lourenço.

Porém, uma outra narrativa, de caráter mais subjetivo, se instaura a partir das memórias da africana escravizada Muana Lómuè, protagonista, juntamente com o mestiço Nuno Alcântara Moutinho, da história escrita por Eliana Alves. Essa narrativa abarca desde sua vida na aldeia natal, em Moçambique, junto à sua família, até sua chegada ao Cais do Valongo, num tumbeiro, e sua posterior destinação à casa do comerciante Bernardo Lourenço.  Essa narrativa, resultante do relato de Muana ao inglês Mr. Toole, que se diz contrário à escravidão, aproxima o leitor da cultura africana, com seus mitos e sua diversidade étnica, e, também, da triste realidade do processo de escravização do povo africano, do qual a protagonista não escapa.

Essa proximidade com os aspectos íntimos da personagem Muana, o seu encantamento com o mundo ao redor, com a sua cultura, o seu despertar para o amor etc.,  fará com que a destruição dos laços afetivos e culturais que sustentam a sua existência nos deixe profundamente impactados. Daí nos encantarmos com a figura feminina forte, resiliente, que não só sobrevive à tragédia que abate sobre seu povo, como vai se fortalecer intelectualmente e aprender a driblar os limites que a sua condição de escravizada lhe impõe.  “Na Gazeta Rio de Janeiro, o Justino estendia sua mão para receber o papel, mas não conseguia decifrar nada do que estava escrito nele e pensava que eu era sem letras como ele e quase todos os outros. Muito senhor também não sabia. Mais um motivo para esconder muito bem escondido meu segredo...” [pág. 23]. Muana vai utilizar seu domínio da leitura para se antecipar, inclusive, aos fatos, mostrando o quanto o conhecimento das letras pode ser uma arma poderosa: “O Nathaniel, coitado, quase foi parar nos infernos, se eu não entendesse o que o senhor escrevia” [pág. 19].  Além disso, ela detém um poder que a alça acima da maioria dos mortais: fala com os mortos, com o espírito dos ancestrais. E esse é um outro detalhe importante nesse romance de Eliana: a sua narrativa mescla, com sucesso, o olhar focado no elemento histórico, fidedigno, e os voos da imaginação atrelada ao mistério e ao fantástico com raízes fincadas no universo mítico-religioso da cultura africana.

A história é toda narrada em primeira pessoa: por Nuno Alcântara Moutinho, que conta sobre a investigação do crime cometido nas proximidades do Cais do Valongo, onde reside e pretende abrir um negócio, e por Muana Lómuè, que relata sobre os fatos envolvendo o cotidiano na residência do comerciante assassinado e a trajetória dela da África até o Brasil. Esses relatos de Muana, além de nos fornecerem uma imagem potente da África e de seus ancestrais, servirão também para nos esclarecer sobre a autoria do assassinato do seu senhor. É através do seu olhar afiado que teremos uma visão mais crítica sobre as condições de sobrevivência dos negros escravizados. Nuno Moutinho, que não é propriamente um detetive, mas faz bem o tipo do detetive de romance noir [beberrão, namorador e afeito a encrencas várias], por sua condição de mestiço, mulato, tem um trânsito mais livre naquele contexto social, daí poder nos apresentar, de modo até irônico, uma imagem mais direta das relações de poder que sustentavam a sociedade brasileira naquele momento histórico.

E sobre o ritmo da narrativa, que salta da investigação sobre o crime para os relatos de Muana? Talvez, para o leitor mais afeito à questão policialesca, essa quebra, que às vezes se estende um pouco mais no rememorar da africana, possa ser um problema, aborrecendo-o. Mas, atendo-se às intenções da autora, de nos oferecer um retrato mais amplo sobre a protagonista e a história do seu povo, ao trazer até nós um pouco da história e da cultura africana, é possível seguir a leitura, aguardando, para cada início de capítulo, a retomada do processo de investigação feito pelo Intendente-Geral da Polícia e acompanhado de perto por Nuno Moutinho. E olha que a autora guarda, aqui, uma surpresa sobre a autoria desse crime!

O crime do cais do Valongo é, portanto, leitura imprescindível para nos aproximar, através da imaginação estética e da pesquisa histórica, de parte do nosso passado, ao mesmo tempo em que amplia o leque da produção literária levada a cabo pelos autores e pelas autoras negras deste país tão excludente.


[Resenha publicada, originalmente, no JORNAL OPÇÃO]

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