segunda-feira, 7 de dezembro de 2020

Duelos: ou o descortinar da tragédia cotidiana que nos assombra



Por Geraldo Lima

 

Eltânia André, mineira de Cataguases, estreou na literatura com o livro de contos Meu nome agora é Jaque [Rona Editora, 2007]. Esse livro reúne várias histórias contadas por um único narrador [um contador de causos, podemos dizer assim], o Tizé, que, aposentado, passa a se denominar Jaque [“Já que estou aqui no mundo, vou viver plenamente cada dia”, pág.146]. São histórias que se passam no interior e são contadas num tom leve e bem-humorado. No seu segundo livro, Manhãs adiadas [contos, dobra literatura, 2012], a autora dá uma guinada no tom narrativo: as histórias, narradas por vozes diversas, são densas e desvelam o cotidiano de vidas humanas marcadas pela desilusão e pela falta de perspectiva. Assenta-lhes bem o verso do poeta Manuel Bandeira no poema Pneumatórax: “A vida inteira que poderia ter sido e que não foi”. Agora, em Duelos [contos, Editora Patuá, 2018], Eltânia nos apresenta uma série de histórias em que adensa mais ainda o tom narrativo, expondo com lirismo e, às vezes, com secura, o desencanto da vida contemporânea num Brasil sitiado pela violência e pela mercantilização da vida humana.  

O livro já abre com um conto impactante, intitulado Uma das mil e uma noites, no qual a autora apresenta um recorte aterrador do Brasil atual: a violência contra homossexuais perpetrada por indivíduos de tendência fascista. “Um dos pontapés atingiu o crânio. Outro quebrou uma costela. O chute na cara. Bicha” (pág. 9). É esse espírito de extermínio, que contaminou a alma de parte do nosso povo, solapando o conceito de cordialidade do brasileiro, criado pelo historiador Sérgio Buarque de Holanda, que esse conto expõe com crueza. É tão forte e apavorante a cena descrita que, a certa altura, o autor interrompe a sua criação, enojado: “...o sujeito ia partir para o ato – eu asfixiado, sem planejamento, retiro os dedos do teclado num átimo de lucidez, tentando estabelecer em que mundo dormitava meu pesadelo” (pág. 13). Podemos vê-lo, sufocado, premido pela necessidade de mostrar ao mundo essa atrocidade e, ao mesmo tempo, tomado pela sensação de impotência ante o terror: “Salve a Wanderléa, porra! Resignado, entendo que nunca pude salvar ninguém. Apenas indignar-me. Sinto náuseas. Não me reestabeleço. Os personagens assaltam-me, pedem para que a literatura seja vida e sopre neles o espírito que os moverá” (pág. 13). A metalinguagem aqui não se apresenta como mero artifício, mas, sim, como meio para expor os limites da criação literária e o papel do escritor diante do horror que nos sitia: “Estamos sitiados. Peço desculpas àquele poeta que sussurrou pela rede seu apelo por histórias mais líricas, poéticas e ternas – que também me rodeiam –, contudo elas hão de esperar, porque o mundo é esse caos obsessivo e possesso ladrando nos quintais” (pág.14).

Frente à ameaça de perda das liberdades democráticas e da escalada da violência, o escritor brasileiro parece se encontrar de novo diante da questão que Luís Costa Lima tentou responder no seu livro Por que Literatura? (Editora Vozes, 1969). Expondo sempre a importância de se valorizar a questão estética e nos alertando para o risco da simplificação da linguagem em busca de uma comunicação direta, ele escreve num dos ensaios que compõem o livro: “A tarefa da literatura continuará a ser, agora como antes, a de atingir e a de trazer na palavra a raiz das coisas onde se deposita a raiz do homem” (pág. 38). Imerso nesse dilema e nessa crise, o autor/personagem/narrador do conto de Eltânia se socorre das palavras de Ortega y Gasset [“eu sou eu e minha circunstância”], sabendo que não poderá jamais fechar os olhos para o mundo ao seu redor. “Ainda há para contar pelo menos outras mil histórias que não recolhi na Pérsia distante de Sherazade” (págs. 14 e 15). O como contar essas histórias, sem prejuízo do fator literário, é a questão que se impõe agora, e isso, como podemos ver nos demais contos de Duelos, Eltânia faz com perícia e extrema sensibilidade.

 

EXPERIMENTALISMO, BELEZA ESTÉTICA E TEMÁTICA RELEVANTE

 

Em pelo menos quatro dos contos de Duelos, Eltânia explora o aspecto experimental da narrativa. São eles: Uma das mil e uma noites, Enquanto lia Faulkner, Matança de passarinhos e Teatro a céu aberto.

Em Uma das mil e uma noites, como já destaquei, há o corte abrupto da narrativa, no momento em que se intensifica a violência contra o personagem homossexual, para dar voz ao autor que, diante da gravidade da situação, sente-se incapaz de seguir adiante com a história que está contando. Só o narrar, no plano da imaginação, não lhe basta mais. A realidade que o cerca é brutal demais e precisa ser denunciada. “Então, entendo finalmente que eu preciso falar do nosso assombro, preciso falar da violência” (pág. 13). Nesse instante, o narrativo e o argumentativo se mesclam para dar conta da necessidade de desabafo do autor. No conto Enquanto lia Faulkner, temos uma narrativa em várias vozes: a do moribundo, a do irmão, a da esposa e a de outros parentes que estão ao lado do leito de morte do protagonista. É uma cena bastante teatral. São blocos de narrativa, de monólogo, de fluxo de consciência, que se justapõem para nos revelar o universo de hipocrisia e superficialidade das relações familiares no meio burguês. O título e a própria estrutura do texto fazem referência, como se pode notar, ao maravilhoso romance de William Faulkner, Enquanto agonizo. Matança de Passarinhos, que nos mostra o inseguro e tenso mundo de um grupo de crianças vivendo em meio a tiroteios na periferia, mais especificamente no trajeto escola-casa, estrutura-se como um texto-coral, ou narrativa-coral, em que as vozes, tensionadas pelo risco de morte iminente, se sucedem num falar exaltado e sem prévia indicação. Desse modo, temos uma visão precisa da situação caótica e violenta em que vivem essas crianças, que são abatidas como se fossem passarinhos.  Teatro a céu aberto, como o título aponta, tem muito a ver com teatro mesmo: a estrutura do texto é o de uma peça teatral. O diálogo, embate ou duelo, dá-se entre o Narrador e Romeu, e mais uma vez discute-se aqui a questão literária ou o real poder da literatura. “Há a pergunta com a resposta implícita: a literatura muda o mundo?”, indaga o Narrador a Romeu (pág. 110). O Narrador, neste caso, tem o poder de demiurgo e pode decidir sobre o destino do personagem, no caso, Romeu, este uma clara referência ao personagem de Shakespeare. Metalinguagem e mistura de gêneros literários fazem-se presentes também neste texto, dando conta da grande habilidade da autora de transitar entre as várias camadas da criação estética.

Compondo ainda o volume, temos dois contos de extrema beleza estética e força literária. São narrativas em que a densidade poética da linguagem e a presença de frases, geralmente curtas, tornam o conteúdo ainda mais expressivo e impactante. O primeiro, Águas de dezembro, nos introduz no ambiente de pobreza, assolado todos os anos pela fúria da natureza [no caso, as cheias do rio], no qual uma mulher, marcada pela passagem do tempo e pela tragédia, tem ainda disposição para “garimpar sombras nessas águas-barcas do Lava-pés, riozinho da vida que corre em nós” (pág. 69). O segundo é Barreira liberada, que nos fala de um amor lésbico e da angústia da espera. Aos poucos, vamos conhecendo a personalidade complicada da protagonista e sua busca por um viver intenso. “Fui embora, batendo a porta. Mais uma que fecho” (pág. 96). E olhem só a beleza desta imagem: “Macia sua pele, seu perdão” (pág. 96).  É, para mim, uma das narrativas ficcionais mais belas escritas em língua portuguesa. Merece estar em qualquer antologia dos melhores contos do século XXI. Desse modo, devemos prestar mais atenção à produção literária da mineira Eltânia André, que vem dando mostras de estar, cada vez mais, afiada no trato com a linguagem literária e com aflorada sensibilidade para captar as angústias do ser humano e retratar criticamente as mazelas sociais do nosso país. linguagem e a presença de frases, geralmente curtas, tornam o conteúdo ainda mais expressivo e impactante. O primeiro, Águas de dezembro, nos introduz no ambiente de pobreza, assolado todos os anos pela fúria da natureza [no caso, as cheias do rio], no qual uma mulher, marcada pela passagem do tempo e pela tragédia, tem ainda disposição para “garimpar sombras nessas águas-barcas do Lava-pés, riozinho da vida que corre em nós” (pág. 69). O segundo é Barreira liberada, que nos fala de um amor lésbico e da angústia da espera. Aos poucos, vamos conhecendo a personalidade complicada da protagonista e sua busca por um viver intenso. “Fui embora, batendo a porta. Mais uma que fecho” (pág. 96). E olhem só a beleza desta imagem: “Macia sua pele, seu perdão” (pág. 96).  É, para mim, uma das narrativas ficcionais mais belas escritas em língua portuguesa. Merece estar em qualquer antologia dos melhores contos do século XXI. Desse modo, devemos prestar mais atenção à produção literária da mineira Eltânia André, que vem dando mostras de estar, cada vez mais, afiada no trato com a linguagem literária e com aflorada sensibilidade para captar as angústias do ser humano e retratar criticamente as mazelas sociais do nosso país.


[Resenha publicada, originalmente, no Correio Braziliense e no Suplemento Literário de Minas Gerais]

Nenhum comentário:

Postar um comentário