sexta-feira, 19 de fevereiro de 2010

              LUX
                                                          
                                             Geraldo Lima
                           “Nevermore” — Edgar Allan Poe.

            A casa estava um abandono só.  Helena, que durante oito anos governara a casa e a vida dele, havia partido há cinco meses.  Desde então, o desleixo havia tomado posse de cada cômodo. Reinava sobre todos os móveis, ocultando-os sob uma densa camada de poeira.  A empregada, alegando saudades da família e da terra natal,  seguira os passos da patroa uma semana depois, deixando-o entregue aos próprios devaneios.  À própria sorte. Aos desígnios dos deuses.
            Precisava se reerguer, se recompor, se reencontrar, mas adiava sempre.  A imagem de Helena era ainda muito viva em sua memória.  Reinava absoluta.

            Era dezembro. Dava pra ouvir a chuva rala e contínua molhando o mundo. Encharcando a noite. Esvaziando as ruas. Um ar sombrio e agourento envolveu a sala, intensificando a angústia. Lasso e melancólico. Fraco e sonolento.  Pensou que uma droga qualquer poderia inflá-lo de euforia. De uma vida artificial, mas intensa. A ânsia maior, no entanto: apagar de vez o mundo diante dos olhos.
            Há tempos não ligava o televisor. Há tempos não tinha mais paciência para ver nada.  Para ler nada. Há tempos se fechara para  o mistério. Chegara à conclusão de que não havia clima para o sobrenatural, para o além-mundo, para o inexplicável em sua vida: tudo, tudo era muito cotidiano, concreto, real.

            Não era ainda meia-noite. Não era.  Súbito, porém, uma nesga de luz vazou a parede. Vazou e veio vindo, avivando-se, espargindo-se. Um laser? Um espírito de luz? Um anjo do Senhor? Um ET? O ser de Helena materializando-se num holograma?
            A princípio, até ironizou: Que filhote de Spielberg cria tal efeito?
Luz intensa, irradiando-se por toda a sala. Ondulante, magnética.
Que merda é essa?!, berrou por fim.
            Viu-a, inexplicavelmente, começar a apagar o contorno das coisas. Um ácido poderoso corroendo as bordas até atingir o miolo, a essência. Uma borracha apagando os vestígios humanos. Primeiro, o televisor; depois, o sofá; em seguida, a mesa de centro com tampo de vidro, enfim, o que encontrava pela frente. Esgotado o que estava no chão, partiu para o alto. Devorou, sem dó nem piedade, uma reprodução de Kandinsky  e uma de Dali. Restara, por enquanto, o branco da parede. Restara, embaixo, ele, a cadeira em que estava sentado e o vazio. 
Densa, voraz, como se projetada por um holofote de dois mil watts. Fosse apenas uma brincadeira, já o assustava. Mais assustado ficou ainda ao tentar se erguer: imobilizado, como que atado à cadeira de balanço. Procurou, aflito, as algemas, as cordas, as correntes, aquilo que o imobilizava, mas nada encontrou. O mistério crescia, assombrava-o ainda mais.

             A luz, por toda parte: entre maravilhosa e aterradora. Inominável. Inominável.
            Deus?!
            Ansioso, aguardando a resposta do Eterno. Apavorado, temendo o toque da língua ácida. A luz, no entanto, apenas dançou ao seu redor, um balé mágico, envolvente, indo do azul ao quase lilás. E continuava no seu lento processo de supressão da matéria.  
            O ser de luz envolveu-o, enfim, num abraço vago, luminoso, – quente, quente como os abraços de Helena nos primeiros anos. Ele vendo, inerte e aterrorizado, escaparem-lhe as formas do corpo. Vivo, vivo e sendo engolido pelo inexplicável. Queria poder gritar, expressar o seu terror. Impossível: as palavras, abundantes outrora, já não existiam mais. Tampouco, o pronunciável.
  
(Texto publicado, originalmente, na revista Portal Solaris.)

7 comentários:

  1. Maravilha esse seu trabalho, parabens. Indicarei nas minhas páginas, aguarde.
    Abração
    Luiz Alberto Machado
    Escritor, compositor musical e radialista
    www.luizalbertomachado.com.br
    http://twitter.com/lalbertomachado

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  2. Obrigado, Luiz Alberto, pelo comentário e pela indicação do blog nas suas páginas, que são muito boas. Vamos nos visitar sempre.
    Um abração.

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  3. Gostei, Geraldo. Um texto que nos corrói de tanta imaginação.

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  4. Obrigado, Hélverton. Ainda vou postar aqui textos do Paraíso Profano.
    Um abração.

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  5. Paraíso Profano. Ahjo que é da minha época né Geraldo?
    Abçs amigão

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  6. Bom, Ginho, no caso o Paraíso Profano é o livro do Hélverton.

    Um abração.

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