Por Geraldo Lima
“Ardo
em desejo na tarde que arde”
(Manuel Bandeira)
o
elevador I
uma voz vindo dalguma cavidade no
elevador nos informa: quinto andar! voz
de mulher, suave, sensual.
saltamos: o corredor se oferecendo aos nossos olhos, finito,
breve. atrás, outra vez a voz do elevador: sobe!
avançamos em linha reta.
o corredor
já disse: o corredor se oferecendo às
nossas vistas, finito, breve. dito está também: avançamos.
narrando assim, dou até a impressão de
estarmos engajados nalguma missão de resgate ou qualquer coisa parecida, bem ao
estilo dos filmes norte-americanos. uma perseguição implacável por entre os
corredores do shopping. coisa muito simples, porém, a que tínhamos por objetivo: ir ao dentista somente.
o corredor percorrido quase até o
final: piso de cerâmica 20 X 30, cinza;
do teto, o brilho suave das lâmpadas
fluorescentes espargido sobre nós; capachos junto às portas, e, porque abertas,
passamos bisbilhotando o interior das
salas: mogno e cerejeira escancarados;
pernas, às vezes. pernas brancas, quase sempre. quase marfim.
mulheres vindo e indo, chusma de calças
justas, saia de pouco pano, mínimo algodão, microcetim, excesso de curvas e
lombadas no entanto. olhos irrequietos nas órbitas, meu Deus!
o consultório I
aqui também o mogno, mais escuro no entanto nas cadeiras chinesas,
contrastando com o branco do teto e das paredes. com o branco da maioria das
pessoas aqui. portas de vidro jateado
por onde, no espaço mínimo das pétalas, os olhos penetram e perscrutam lá
dentro: o dentista aparece e logo some.
ah, e o barulhinho do aparelho torturando um dente, e esse chiado do
ventilador girando lento dum lado pro
outro, arejando o ambiente, brisa artificial solapando o calor, só assim suportável.
somos seis aqui neste recinto. mínimo
espaço. cada um evitando esbarrar com o olhar do outro, desviando os olhos para
o teto, para a porta, para a revista, para o nada. seis pessoas e três cadeiras
apenas.
consultório II
agora, o melhor de tudo, o que torna a
vida plenamente suportável: a secretária de pernas remodeladas pela meia fina,
sentadinha por trás da mesa, atenta, atenciosa, tentadora. a voz dela, quando
diz para algum paciente, — Sua vez, senhora — é como a voz do elevador: sensual,
delicada, com uma leve cobertura de manha, de dengo.
mas não estou olhando insistentemente
para ela, como é de se imaginar, ainda que
seja esse o meu maior desejo: o
temor não permite, as boas maneiras também — tenho a impressão de que todos,
agora, estão me vigiando.
o elevador II
outra
vez a voz sensual — desce! elevador nº 2, torre B, lotado neste momento. dedos
avançam rumo aos botões, programando o seu destino. a mulher à minha frente
recolhe a bolsa, espreme-a contra a barriga. todos vigiando seus pertences.
homens brancos, de terno e gravata, donos de tudo. então, estamos sozinhos
nesta arena, descendo, descendo.
o térreo
embaixo outra vez, e o movimento
intenso de pernas e seios, lábios e nádegas, olhos e braços, sexo e idéias, vestes
e pudor, transe, trânsito. completamente absorvido por esse cancã, avanço.
avançamos, mas você não vê o que vejo.
e é só o que vejo nesse caminhar, nesse
escoar por entre objetos vários. se disser : maluco, aceito. se bradar:
canalha! me curvo penitente.
mínimas retas, excesso de curvas,
quinas de lojas. quase saindo e vejo ainda as pernas da secretária, sua cor
quase negra, como se lá estivesse, como se de lá não pudesse sair nunca mais.
o estacionamento
levo o meu filho pela mão, ele, o paciente,
impaciente também. ziguezagueamos pardos
por entre os automóveis, até onde, supomos, o nosso se encontra ainda estacionado.
se ele me perguntar, durante esse trajeto, por que me acho tão silencioso, mais a mudez se entranhará em mim: coisas indizíveis às
vezes se instalam em nós, varrendo da garganta o sentido das palavras. peso moral ou cerco das imagens, intransponível, quem pode
revelar?
pai e filho sob o sol intenso desse
Saara urbano, dessa África miscigenada. unidos assim, avançamos, vigiados
pelo olhar quase atento do guardador de
carros, pardo também.
aqui estamos, filho, no descampado, mas talvez fosse melhor dizer numa quase-confissão: por mais que me
concentre, ainda não estou aqui cem por cento.
Esplêndido, Geraldo! Parabéns!
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