Por
Geraldo Lima
Não há mais sol nas
vidraças, e as secretárias já retornam para casa após retocar a maquiagem. Vêm
pela calçada, deslumbrando os homens estacionados nos bares e lanchonetes.
Passam — e o perfume permanece atiçando os instintos.
Sem a passagem delas, a
tarde estaria incompleta, despida do rugido amoroso do ruge, do grito rubro dos
batons, das insinuações vermelhas dos esmaltes, dos “aromas nítidos e
envolventes”; e as bolsas felizes: sedutora geometria; ainda os pezinhos no
casulo de fino couro, de camurça — abruptos seios, ancas virulentas, nádegas
imponentes... Nunca as teremos, mas de qualquer forma é muito bom observá-las
coordenando os movimentos graciosos; é alentador poder ao menos desejá-las na
mais infinita distância; é um lenitivo para o coração imaginar cenas dignas de
Hollywood com elas, ou com uma delas: há sempre uma preferida, não é verdade?
Meu Deus, eu disse cenas dignas de Hollywood? Não, não é bem assim que acontece
no limbo de cada um aqui: sei que impera o sexo explícito!
As que vêm realçadas
dentro duma saia justa: as mais cobiçadas — passam e suas cordilheiras carnosas
permanecem ondeando na memória. “Nada mais clássico que uma saia justa. Nada
mais moderno que esta saia justa. O clássico revisitado ganha ares e
personalidade contemporâneos.” Ó, vasto
mar dos desejos, permita que o meu barco navegue saciado em suas límpidas
águas! (Peço-lhes desculpas por esses arroubos passadistas: um dos nossos
aqui se diz poeta e, depois de ingerir algumas cervejas, põe-se a psicografar
esses versos do século dezenove, e haja guardanapo! Na verdade, ele é um poeta
estacionado na garagem do tempo, criou teia de aranha na imaginação e... mas
não é isso que importa agora.) — O que importa agora? Os seios de uma delas à
mostra, sazonados.
Meu Deus!
O fato é que as
secretárias (nem todas são secretárias, sabemos disso, mas imaginá-las assim
excita ainda mais, compreende? Detalhes do tipo: de que maneira incendiária
cruzam as pernas; o que é proposital e o que é apenas displicência humana; a
infinita bondade de seu perfume... Coisas assim seqüestram nossos
pensamentos, e nem sempre nos achamos aqui, ou atrás das mesas abarrotadas de papéis inúteis; ou ainda nos
surpreendem enquanto digitamos no computador...), o fato é que as secretárias
desfazem o cinza da paisagem a esta hora da tarde. Tardinha. Tarde inflada de
desejos. As secretárias... que mais importa senão vê-las, revê-las, revesti-las
com o ordinário tecido dos nossos olhos? — Vida boba. — Mas ao menos isso, meu camarada.
Elas nunca nos viram.
Nunca nos verão. E Deus sabe disso. Deus sabe de toda crueldade e
indiferença possíveis nos homens, mesmo nessas belas aprisionando a tarde em
torno de seus artifícios. Nós, no entanto, já as perdoamos. Somos infinitamente
bons? Não. Elas é que são bonitas e reduzem o que poderia crescer de ira e
indignação em nós a quase nada. Ou a nada. Conseguem nos desarmar apenas
passando a alguns metros de nossos radares, às léguas dos canteiros de nossas
mãos, onde brotam flores generosas. Mas há tempos decidimos: pouco importa a
indiferença, o desprezo, a imponência, o escárnio delas para com a nossa ínfima
presença nesse quadrilátero de concreto cravado na Capital da República; elas
existirem e passarem por aqui quase sempre, ou sempre, se possível, é tudo o
que nos basta. Nos contentamos com tão pouco porque nada temos. Vê-las é tudo.
Quando uma delas some por
alguns dias, ou por vários dias, ou mesmo para sempre, ficamos preocupados, nos
entristecemos de verdade. Pensamos: ora, ela deve estar doente. Quem sabe saiu
de férias? São humanas, não são? Lá se vai uma semana. Três. Findou-se o mês, e
ela ainda não retornou. Não retornará. É como perder uma namorada: dói lá no
fundo. Já passei por isso. E o pior é ter de começar tudo de novo: escolher uma
outra, dar-lhe um nome...
A banca de revistas do
lado já se encontra em completo repouso. O inferninho de automóveis se
converteu ao quase-silêncio, ao quase-nada, e já é possível conversar sem ser
preciso encostar o ouvido à boca do outro. Aliado a esse quase-silêncio,
deflagra-se o golpe da solidão, e é por isso que normalmente nos refugiamos
aqui nos bares e lanchonetes. Se é sexta-feira, não retornamos tão cedo para
casa. Somos os retardatários. Não há mesmo motivo mais sério que nos arraste
daqui, tipo: família reunida, filho fumegando com quarenta graus de febre,
compras para o fim de semana, aniversário do filho do vizinho, apanhar as
crianças no colégio etc. etc. etc. Somos livres? — Um dar
de ombros responde a isso? — Cada um sabe o que faz da própria vida. De
qualquer forma, isso não é motivo para se deflagrar uma discussão infindável.
Este é o fato relevante: a noite nos tem engolido aqui, passando a
língua turva em nosso íntimo desbotado. Mas ainda não é bem isso que
importa agora.
Posso imaginar que já
estejam a perguntar impacientes: Quem são esses tipos, tipinhos, sujeitinhos
ordinários entregues à farra de desfiar a carne lodosa dos comentários
lúbricos? Esses que, apenas observando belas mulheres retornando suadas para
casa, chegam ao êxtase. — Suadas, mas perfumadas! Que idiota poderia pensar que
elas sairiam à rua sem se produzirem? Pois
bem: quem somos? quantos somos? por que somos? como somos? desde quando somos?
Perguntas, perguntas. Daremos voltas e voltas e voltas, ainda assim não
conseguiremos nos explicar, nos
revelar por inteiro, mesmo sendo uma imprudência. — Uma impudência. Assim, de supetão, sem meias palavras,
a seco, posso lhes dizer que nada somos, ou que não somos nada, me parece mais
enfático. Tipos comuns, quase sempre rondando as imediações do zero, vacilando
na borda do abismo do zero absoluto. Um zero à esquerda. Um zero ainda mais à
esquerda. Estacionamos. Ficamos. “O tempo passa/ e eu sem ninguém.” Músicas
assim têm nos traduzido muito bem: a baixa qualidade comovendo a baixa
qualidade.
Sejamos mais objetivos ao
narrar: este aqui do meu lado direito é o Gérson, o irônico, que acorda a
alegria com a gargalhada de negro sem banzo. Um que consome seus dias no
ambiente repetitivo de um banco. Este outro aqui é o nosso Olavo Bilac; ele
dribla o tédio das repartições públicas compondo sonetos. Um que caminha
tranqüilo para o nada. E eu? Sou este terno de linho cinza, surrado, com
o cheiro horrível dos putrefatos.
Algumas particularidades:
De
Gérson: a) um lugar-comum: gosta de loiras, sendo negro;
assim sendo... b) a estampa: quase sempre de branco.
De
Alberto, o poeta: a) conhece muito bem a obra de Camões:
escreve imitando o mestre; b) sendo branco, é branco.
Do
narrador: bem, seguem as reticências...
Já não temos mais a encantadora visão das
nossas secretárias: as belas já não ornam mais a tarde com o colorido de suas
vestes, não inebriam mais os narizes do Setor Comercial Sul com a essência
floral de seus perfumes, nem nos arrancam mais suspiros com o balé do rio do
andar, transbordando sensualismo pelas margens do corpo. — Mesmo porque já não
é mais tarde. Isto é a noite!
E de repente, eis-nos
metidos num seminário de lamentações baratas.
1º painel. Lamentações de
Gérson: sua ex-esposa anda querendo esfolá-lo, tirar-lhe toda a grana, a paz, a
cervejinha dos fins de semana. Um inferno. Mulher impiedosa, cretina.
2º painel. Nosso Camões,
alagado pelo álcool, já tropeça na língua, sacaneia as palavras chutando-lhes
as partes íntimas. O ritmo agora é de solavancos. Poetas bêbados são muito
engraçados: querem recitar Deus e o mundo.
3º painel. E eu já naquela
vontade louca de abrir o cadeado do coração, jorrar feito uma torneira aberta
no limite. Falar de mim. Permitam que eu fale de mim, da minha vidinha fodida
de advogado que nunca saiu do jugo dos outros, dando ainda uma merda de
assistência jurídica a uma empresa montada para foder a alma dos trabalhadores.
Olhe, faz assim: deixa ele entrar na justiça, você sabe, essa coisa é morosa, a
lei... ah, a Lei! É por isso que eu não sou nada, meus amigos, sou um tipo
ressentido, nada esperto. Espertos são aqueles caras lá na empresa,
enriquecendo enquanto esfolam os outros. É melhor parar por aqui: lamentações,
lamentações. Alguém poderia contar uma piada?
Lembro-me de ter dito que
há sempre uma preferida, que no meio da constelação nós selecionamos sempre uma
estrela, Mintaka, Alnilam, Alnitak, e
aí entra uma série de fatores: um deles é o brilho diferente que ela sobre nós
emite. É o arrebatamento. Pois eis a minha. Vou rebobinar o filme até o exato
momento em que ela passava por aqui. Ei-la então! Eis a minha eleita! a
mais gostosa de todas com seu corpinho leve, a cintura modelada para caber
todinha no círculo das mãos. E hoje ela veio ainda mais irresistível, trajando
um macaquinho de linho azul-celeste; uma fileira de botões dourados parte
do vale dos seios e desce até a mina do umbigo. A deusa Ginástica não permite
nenhum estrago no corpo da minha pequena. E ela está passando. Veja como move
os quadris, com que delicadeza segura a bolsa com alças de pérolas
(falsas?) e pingentes, a elegância com que transporta o corpinho de
boneca. Sintam, sintam a influência do seu desodorante perfumado para o corpo
inteiro. Nunca me aproximei dela (sei que nunca vou me aproximar), mas posso imaginar a arte de suas unhas
esculpidas para encantar, côncavas, evidentes, finas navalhas tingidas de
sangue. A pele macia, revitalizada por mil cosméticos: creme revitalizador,
máscara energética, loção tônica, creme fluído de limpeza, óleo energético
concentrado. O deus Cosmético. Passou. Minha predileta acaba de passar. — Está
indo para os braços do namorado, ou do esposo, ou do amante. Todas, mais cedo
ou mais tarde, vão para os braços de alguém: um grande felizardo. E nós aqui
cobiçando todas elas, a sua carne doce.
Nunca um de nós aqui se levantou para
abordá-las na calçada: isso seria um contra-senso, quebraria as regras do jogo.
— O máximo que alguém poderia fazer é ir apanhar cavalheirescamente o lencinho
bordado em ouro que uma delas (propositadamente?) deixasse cair. — Mas isso
jamais aconteceu, nem acontecerá: em que século você pensa que estamos? — Por que é impossível que uma delas,
numa bela tarde de verão, lance em nosso rumo o mais irresistível dos olhares
e, como que tocada pela flecha do deus do amor, sinta arder no peito o incêndio
da paixão? — Porque a modernidade, meu camarada, não permite esse tipo de
fantasia. É preciso cair na real. Não estamos mais no século de José de Alencar.
A vida moderna é uma bosta. —Ah, sinto nostalgia de um tempo que não
vivi.
Não temos a menor chance.
E elas continuam a passar ao largo. Um lago quilométrico, profundíssimo, nos
separa. Passam a salvo dos nossos desejos: os mais ínfimos? os mais intensos?
Isso não iria comovê-las: são tão felizes. Por que não seriam felizes?
Todas as coisas de que precisam estão estampadas nas revistas de moda, de
fofocas, de fotonovelas. A minha predileta, por exemplo, saboreia o perfil do
galã da novela das oito. Por que seriam infelizes? São amadas, cobiçadas... —
Vamos estuprá-las sempre com os nossos olhares duros.
Eis a prova de que já
tomamos todas, doses e doses de conhaque. Cessou a delicadeza, a elegância.
Agora é a escrotice geral. Está na hora, meus amigos, de levar nossos corpos
daqui. Olhe só como termina a nossa farra: daqui vamos rolando por aí, batendo
na porta de todas as espeluncas, ou então vamos acabar nos braços duma dessas
putas que fazem ponto perto dos hotéis. — Podres! Já bebemos demais. Acabou a delicadeza, a ternura. Aqui a
lei das trevas, oscilações do todo como se a vida tivesse escoado para essas
bandas seus restos mortais.
Ao inferno, meus amigos!
Eis o fim. O fim da noite.
O nosso fim. O fim do fim. E nossas belas? Com quem estarão agora? No quarto de
algum motel vendo filme de sacanagem, fazendo sacanagem? Talvez estejam em
casa, a família reunida em torno do televisor. Mas pode ser que não seja assim.
E quem as beija de leve neste instante? Com que ternura (a mesma com que eu a
beijaria?), com que ternura ele a morde, engolindo os seus mamilos, arrancando
gemidos da sua carne, e desliza a língua até o remanso do umbigo, penetra a
espessa vegetação negra ao redor da bocetinha (que eu lamberia tão afoito: um
porco fuçando a terra úmida, repleta de odores). Ah, o seu perfume para o corpo
todo, a loção para dourar pêlos, pôr neles também a cor do ouro, “auri sacra
fames”, a cobiça do sexo. O creme para amaciar as mãos (meu corpo nunca pediu
tanta amabilidade, posto que rude, acostumado mesmo com a aspereza da solidão),
as cutículas bem feitas: inimitáveis dobras ao redor das unhas. Unhas são
farpas de amor e ódio. O creme antitranspirante para as axilas “aplicar uma
fina camada uniformemente nas axilas” sabonete neutro de óleos vegetais e
glicerina amêndoas xampu natural de abacaxi, de maçã verde creme para os lábios
e contorno da boca o batom vestindo os lábios (lábios que eu morderia
loucamente como se fossem morangos maduros) e o vestido tubo em crepe vermelho
com um provocante decote em V nas costas caindo por terra a visão mais linda
deste mundo! a calcinha em renda com lycra branca e meia fina da cor da pele
modelando ainda mais as pernas as coxas (ah, as coxas!) meu Deus vou
enlouquecer essa proximidade tanta entrei por completo no mundo dela suas
revistas eu indo à banca timidamente para comprá-las bijuterias envolvendo o
pescoço pulseiras douradas brincos brincos as esmeraldas incrustadas nos anéis
nos meus olhos a visão mais linda deste mundo e os sapatinhos de salto alto sobre
o tapete, perto da cama...
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