Por Anderson Fonseca
Há romances
que são um tratado teológico como Ulisses de James Joyce ou O Castigo
de Dostoievski, a tentativa que se nota em romances do gênero é conciliar o bem
e o mal mascarados em personagens ou diálogos típicos a tratar do assunto.
O romance
Um, de Geraldo Lima, pode ser classificado como teológico, embora não
fosse intenção do autor.
O
personagem central do romance, Paulo, mesmo nome do personagem bíblico, é um
ex-seminarista que se encontra dividido entre duas mulheres, Ana e Ariadne. Tal
como o personagem da Bíblia, Paulo se põe a questionar sua fé, justamente
porque ambas as mulheres se tornam a presença invisível do conflito do bem e do
mal na carne e apesar do desejo ser aceito por ele, apesar do pecado ser às
vezes apresentado como uma vontade inexpurgável, Paulo, ainda sim, anseia o Bem
como forma de libertação de sua condição limítrofe. Este Bem é a visão de Deus
que aparece no inicio – episódio que também faz referência à conversão de Saulo
à fé cristã e a mudança do seu nome para Paulo -; a visão, mesmo posta em
dúvida (pois como – se pergunta Paulo – Deus o escolheria para revelar sua
natureza imutável?) é palco da busca religiosa (o religare do
narrador-personagem com a fé).
Cada uma
das mulheres desempenha um papel central nessa busca de conciliação de Paulo
com a religião. Ana, assim como a personagem bíblica de mesmo nome, aparece no
romance sorrindo. O sorriso de Ana é o palco de abertura para o conflito de
Paulo. No inicio, quando lemos a obra, imaginamos que ela representasse o
caminho para graça divina de que necessita Paulo. E, no entanto, enganamo-nos,
Ana, na verdade, é a carne, o pecado, o mal do qual Paulo deseja fugir,
enquanto Ariadne, a outra mulher de sua vida, é – como o mito – o fio que o
conduz de volta ao estado de graça. Em Ana, Paulo vive a tentação do pecado, e
em Ariadne, a oportunidade de reencontrar-se e conciliar-se com Deus.
Mas o
centro de seu tormento é a incerteza sobre a revelação divina. Como Deus o
escolheria para revelar-se – pergunta-se o personagem – se ele é um pecador? E
tal como o livro de Jó, em que um acontecimento desencadeia um discurso
teológico em defesa da justiça de Deus, o romance de Geraldo Lima – a partir do
aparecimento de Deus para Paulo no seu apartamento – desencadeia um discurso
sobre a relação entre fé e razão, entre o humanismo e teocentrismo, e a
metafisica do bem e mal. Talvez o autor, seguindo a filosofia agostiniana,
tenha elaborado seu argumento, numa tentativa arriscada de provar que o homem
pode reencontrar sua humanidade abraçando a fé. Mas, quanto a isso, é um risco
maior ainda fundar este argumento, visto que o homem, desde o renascimento,
encontrou sua humanidade na idealização de si mesmo.
O romance
de Geraldo Lima encontra-se deslocado em uma sociedade mergulhada num discurso
ateísta. E o romance não aponta nenhum caminho para retornar a fé, nem
pretende, nem sugere, age como o romance deve ser: um emaranhado de discursos
que povoam nossa mente de leitor lançando-nos em diferentes abismos. Como
escreveu o salmista, “quando olho o abismo o abismo me olha”, olhar o romance Um,
é ver-se perdido numa teia de incertezas que permeiam nosso século. Superar a
dúvida e encontrar a fé, eis o caminho. Mas Paulo opta por outro, nem a fé nem
a razão, senão a si mesmo. A resposta que ele encontra é a resposta buscada
pelo homem: não deve o homem dividir-se entre RAZÃO X FÉ, ele mesmo é a
resposta. O romance termina, portanto, de forma nietzschiana, elevando o homem
acima do bem e do mal.
O que é o
homem senão vazio, aí está o achado de Geraldo Lima: ao afirmar-se acima da fé
e da razão, ao não escolher nem um, nem outro, Paulo encontra-se a si mesmo,
encontra seu deus interior, mas eis que este deus é vazio, um ser sem
“contorno” (LIMA, 2009, p.114), e no fim, ei-lo dividido novamente entre o
“desespero e o fascínio” (LIMA, 2009, p.115).
O dilema
central do romance: a divisão conflituosa do homem entre o céu e a terra, fé e
razão, é caracteristicamente barroca, o que leva-nos a chamar o romance Um,
de Geraldo Lima: romance barroco. As características desse estilo presente em
sua obra são: prosa lírica (a imagem de Ana como o pecado e Ariadne a graça
divina), e sacra (quando o narrador busca reconciliar-se com Deus depois de se
reconhecer como indigno).
Um, figura, pois, entre os romances de temática teológica
que mais souberam explorar o tema. A pergunta que me faço, ao acabar de ler o
romance, é: há diferença entre o sagrado e o profano num texto literário?
LIMA,
Geraldo. Um, LGE Editora, Brasília, 2009.
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