Por
Geraldo Lima
Devemos nos alegrar sempre com o
surgimento de um dramaturgo que consiga explicitar, de modo criativo e
contundente, as múltiplas facetas das relações humanas. E que o faça de tal modo que o espectador,
diante do palco, sinta-se instigado a refletir profundamente sobre si mesmo e
sobre o mundo em que habita, embora toda a ação dramatizada ali transcorra num
cenário e numa cultura bem diversa da sua. Arthur Miller, autor de algumas das
peças mais importantes da cultura ocidental, pode ser citado como um desses
dramaturgos fundamentais para entendermos a alma humana.
Arthur Asher Miller, filho de um
casal de imigrantes judeus polacos, nasceu em Nova Iorque, no ano de 1915, e
faleceu na cidade de Roxbury, estado de Connecticut, em 2005. Viveu, portanto, um longo período e pôde,
como dramaturgo, jornalista e cidadão norte-americano, vivenciar momentos
dramáticos da História humana e do seu país, como a Segunda Guerra Mundial e a
Crise de 29 (ou Grande Depressão).
Este último fato histórico teve impacto
direto na vida do autor de A morte de um
caixeiro-viajante porque afetou, diretamente, a vida financeira de sua
família: seu pai, empresário do ramo têxtil, viu-se falido e obrigado a mudar,
com a família, para o bairro do Brooklyn. Esse acontecimento dramático na vida
do autor vai ser retomado na peça Depois
da queda, mais precisamente no embate entre o protagonista Quentin e o seu pai
surpreendido pela bancarrota dos negócios. A peça é, na verdade, um acerto de contas do
autor com o seu passado, e esse confronto entre pai e filho, num momento de
crise financeira, representa o que Arthur Miller viveu na juventude, daí
Quentin poder ser tomado como seu alter ego. Desse modo, o teatro que ele vai
desenvolver refletirá, sobremaneira, a sua experiência de vida. Sem cair, obviamente, no mero registro
autobiográfico: a crítica feroz ao american
way-of-life e às injustiças sociais impostas pela competitividade
capitalista estão no cerne de boa parte de sua obra teatral. Um exemplo claro disso encontra-se na já
referida peça A morte de um
caixeiro-viajante (Death of a salesman), escrita em 1949 e pela qual ganhou
o prêmio Pulitzer.
Nessa obra, de uma carpintaria
dramatúrgica impressionante, o ambiente naturalista vai sendo envolvido pouco a
pouco pelo onírico e pelos efeitos delirantes da memória do protagonista, o
caixeiro-viajante Willy Loman. Miller retrata a queda desse homem, cujos
alicerces éticos e morais foram erguidos sobre a frágil segurança da mentira e
dos sonhos de grandeza, com rigor psicológico e olhar crítico. São “fraturas no sonho americano’, nas
palavras de Otavio Frias Filho, que vão sendo expostas nesse caso. Diante das
atitudes do protagonista, somos levados, pelo talento dramatúrgico de Arthur
Miller, a dupla reação: ora aderimos à sua causa, ora nos opomos a ele com
quase nojo. Aderimos à sua causa ao percebermos que ele está sendo engolido
pela máquina capitalista e sem se dar conta disso. Mas rejeitamos, com
veemência, o modo com que ele, na posição de pai e marido, vai, ao longo do
tempo, estragando os filhos e sujeitando a esposa ao seu comportamento
obsessivo, egoísta e estúpido. O conflito familiar que se instaura aí, com uma
força assustadora, é resultante dessa cultura forjada a partir das exigências
de um sistema econômico que leva alguns indivíduos a buscarem de forma
predatória o seu lugar ao sol. O fracasso de Willy Loman, como pai, marido e
caixeiro-viajante, expõe, assim, a fragilidade de um projeto de vida cujo valor
maior se encontra alicerçado na supremacia da aparência física sobre a do
conhecimento sistematizado – este último, representado pela figura vitoriosa do
jovem Bernard. São palavras de Willy dirigindo-se aos filhos Biff e Happy: “Foi
isso mesmo que eu quis dizer, o Bernard pode ter as melhores notas da escola,
entende, mas quando sair para o mundo, entende, vocês dois vão estar cinco
vezes na frente dele. Por isso é que eu
agradeço a Deus do céu vocês dois serem feito dois Adônis”. No entanto é ele, Bernard,
que, trilhando o caminho apontado pelo
sonho americano, triunfa como advogado.
Dentro do otimismo do sonho americano não há lugar para
fracassos, não há lugar, enfim, para indivíduos como Willy Loman. As palavras
da professora Daise Lilian Fonseca Dias, no seu artigo “O fracasso do sonho americano em A morte do
caixeiro-viajante de Arthur Miller”, iluminam mais ainda o que foi dito:
“Seu sonho fracassou porque estava centrado na
fantasia e em ideias tão vagas e contraditórias quanto as que seus antepassados
idealizaram e que até hoje impulsionam o homem americano para uma busca
frenética pelo sucesso econômico, sem, contudo, permitir a ideia de um fracasso”.
O teatro de Arthur Miller desnuda,
de forma corajosa, todas essas contradições presentes no arcabouço do tão
propalado sonho americano. Miller é,
ainda, nas palavras da professora da Universidade Federal de Campina Grande,
Daise Lilian Fonseca Dias, “o poeta da consciência
política”. Essa sua consciência política estava, de certo modo, ligada às
ideias comunistas. Por conta disso, em 1956, após ser denunciado pelo diretor de teatro e cineasta
Elia Kazan, viu-se intimado a depor perante o Comitê de Atividades
Antiamericanas do Congresso. Num gesto de extrema nobreza, recusou-se a apontar
colegas ao Comitê. Na peça Depois da
queda (After the fall), o autor enfoca, de maneira crítica, essa passagem
lamentável da História da democracia americana. E é sobre essa peça, a cuja
montagem tive a oportunidade e a felicidade de assistir em Brasília, no teatro
do CCBB (Centro Cultura do Banco do Brasil), que falo na resenha abaixo:
Um
Arthur Miller de encher os olhos
O bom
texto teatral, como qualquer obra de arte, é aquele que nos faz penetrar num
mundo vasto, do qual só podemos emergir outro. Uma obra assim nos permite
perceber as relações humanas nos seus mais diversos matizes, dos conflitos
amorosos ao embate político ou ideológico, da amizade mais sincera à traição
que sempre aniquila. Vemos o ser humano, nesse caso, em sua plenitude: capaz de
mesquinharias e de gestos heroicos. Tomando emprestado o discurso de Nietzsche,
humano, demasiado humano, é assim que o vemos. A sua alma vaza pelos poros.
Ali, no palco, na figura dos atores e das atrizes, a vida se descortina
assustadoramente bela e trágica diante de nós. É para fora do nosso eixo de
comodidade que somos arrastados todo o tempo. É nossa consciência que é
fustigada sem trégua.
Tudo isso
pode ser atribuído à peça que Arthur Miller escreveu após a morte da atriz
Marilyn Monroe, com quem foi casado de 1956 a 1961. Depois da queda, escrita em 1964, mostra, de modo impiedoso e, às
vezes, bem-humorado, o cenário político dos Estados Unidos durante a caça aos
comunistas (e aqui o autor dessacraliza também a visão romântica do intelectual
engajado), sua relação com a família e, obviamente, com o mito Merilyn Monroe.
Arthur Miller não fala diretamente da sua vida. É na figura de Quentin, um
advogado bem sucedido, e de Maggie, uma pop star depressiva, que ele traz à
tona o seu passado. É, claramente, uma obra autobiográfica, mas que vai
além do expor os percalços amorosos e familiares do autor.
Esta nova
montagem da peça do dramaturgo norte-americano, ganhador do Prêmio Pulitzer de
1949, tem tradução e direção de Felipe Vidal e conta com a participação de um
elenco afinado: Simone Spoladore, por exemplo, se sai muito bem no papel de
Maggie/Marilyn Monroe. Lucas Gouvêa (Quentin/Arthur Miller), com memória
invejável, leva sua fala ácida e caudalosa de ponta a ponta sem grandes
escorregões. Gostei, particularmente, da atuação da atriz Thais Tadesco (Holga,
Rose): sensível e ágil na passagem de uma personagem a outra. Repito: o elenco
é afinado. E é isso, aliado à qualidade magistral do texto, que faz com que o
espectador se mantenha ligado durante as três horas de duração do
espetáculo. A peça fez sua estreia nacional aqui em Brasília no dia 19 de
outubro de 2012, no CCBB (escrevo esta resenha no dia 10 de novembro, um dia
antes de ela encerrar sua temporada por estas bandas). Daqui, parte para uma
turnê nacional (só não sei se será apresentada apenas em teatros do CCBB).
Fiquem, portanto, bem atentos, pois este é um espetáculo teatral
imperdível.
(Este texto foi publicado, primeiramente, na revista eletrônica Diversos Afins )
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