Por Geraldo Lima
Ariano Suassuna, nascido na Paraíba
em 1927, faleceu recentemente, aos 87 anos de idade, em Recife. Boa parte da
sua vida foi dedicada ao teatro, à literatura e à defesa da cultura brasileira
contra a massificação. Em 1947, então com 20 anos de idade, escreveu a tragédia
Uma mulher vestida de sol, com a qual
conquistou o primeiro lugar no concurso de âmbito nacional promovido pelo
Teatro do Estudante de Pernambuco (TEP). À época, Hermilo Borba Filho, um dos
fundadores do TEP, escreveu: “Tenho a impressão de que o Nordeste encontrou em
Ariano Suassuna o seu poeta dramático mais capacitado para transformar em
termos de teatro os seus conflitos e suas tragédias”. E não estava enganado.
Porém, a comédia, mais do que a tragédia, é que lhe permitiria expor com
sagacidade e irreverência a alma do povo nordestino, sempre às voltas com as
complicações do meio ambiente e as desigualdades sociais.
O teatro de Ariano Suassuna
impressiona pela capacidade que o autor apresenta de mesclar o erudito e o
popular, seguindo, de forma coerente, as linhas mestras do Movimento Armorial,
cujo objetivo era “criar uma arte erudita a partir de elementos da cultura
popular do Nordeste brasileiro” (Wikipédia). Além disso, podemos perceber no seu texto
dramatúrgico a rica herança da cultura ibérica e do cristianismo, mais
precisamente aquele ligado à Igreja Católica. Suas raízes estão fincadas na tradição cuja fonte encontra-se lá nos
autos da Idade Média, no humanismo do teatro
de Gil Vicente e, no século XVII, no
teatro barroco de Calderón de La Barca. Tanto nos textos do autor português
quanto nos do autor espanhol o elemento popular e o religioso têm uma presença
muito forte.
Numa entrevista à Folha de São Paulo,
em 1991, Suassuna diz o seguinte a respeito das suas influências literárias: “Recebi
uma influência enorme de Cervantes e de vários autores espanhóis, inclusive de
Calderón de La Barca. Talvez até maior que a de Cervantes foi a de Calderón”. Esses autores são, na verdade, sua matriz
estética, e com eles o autor de O santo e
a porca mantém um diálogo constante. É, no entanto, na cultura popular
nordestina que Ariano Suassuna sedimenta as bases da sua dramaturgia. Dos
folhetos de cordel nascem algumas das suas peças, como é o caso d’O auto da Compadecida, que se originou,
segundo o autor, “da fusão de três folhetos de cordel: O enterro do cachorro, O cavalo que defecava dinheiro
(ambos de Leandro Gomes) e O
castigo da soberba (de Anselmo Vieira)”. Ocorre, nesse caso, não a
cópia, mas sim a recriação de textos da literatura popular nordestina, dando
origem a um texto teatral em que o popular e o erudito fundem-se de modo
brilhante.
A visada crítica sobre a realidade
brasileira, mais especificamente a realidade nordestina, com seus costumes
arraigados, frutos de uma sociedade oligárquica e de uma cultura popular marcada
pela religiosidade profunda, também colabora para tornar o texto do mestre
Ariano mais contundente. Caracterizados, essencialmente, pelo humor corrosivo e
farsesco, seus textos, através dessa crítica aos costumes e aos desvios de
conduta de indivíduos que ocupam uma posição hierárquica significativa na
sociedade, conseguem reverberar para além do riso momentâneo. Embora tratem de
questões locais, próximas ao ambiente em que o autor vive, a temática abordada neles é de caráter universal: a
avareza, a vaidade, a oposição vida/morte, a opressão, a corrupção, a esperteza
como meio de se livrar da opressão do mais forte etc. Faz valer, desse modo, o
que disse Tolstói: “Se queres
ser universal, começa por pintar a tua aldeia”.
No universo dramatúrgico de Ariano
Suassuna, a oposição entre Bem e Mal dá-se no embate entre o sertanejo
nordestino desprovido de riqueza material, mas senhor de uma esperteza
impressionante, beirando, às vezes, o picaresco (podemos citar como exemplos
João Grilo e Caroba), e o rico que o explora ou o oprime. Nesse embate, leva
sempre a melhor o tipo fraco, desprovido de riqueza material, mas esperto e que
conta, geralmente, com uma ajuda do além – uma espécie de deus ex
machina. Pode-se dizer que essa
esperteza é, de certa forma, o único recurso que o pobre possui para sobreviver
num mundo comandado por poderosos despidos de humanidade. Isso demonstra a
opção ideológica clara do autor a favor dos menos favorecidos.
Na Farsa da boa preguiça, por exemplo, o preguiçoso poeta Joaquim
Simão conta com a ajuda de um santo (Simão Pedro) para se contrapor ao poderio
econômico de Aderaldo Catacão e à tentativa de Fedegoso e Quebrapedra (dois
diabos) de levá-lo para o inferno. Num
primeiro momento, inclusive, o capitalista Aderaldo Catacão conta com a
simpatia de um anjo (Miguel Arcanjo), mas vai perdê-la ao final quando este
constata a extrema avareza do seu protegido: “Ah, é assim? Pois esse peste/vai
perder quem ainda lutava por ele!”. Junto
também com os dois enviados dos céus encontra-se Jesus Cristo (Manuel
Carpinteiro), que a tudo observa e avalia.
Essa relação direta dos seres celestiais com os seres terrenos,
empenhando-se, no caso, para influenciar no seu destino, aproxima-se claramente
do universo da mitologia grega, onde os deuses participavam diretamente do
destino (Moira) dos mortais. Na Ilíada e
na Odisseia temos os deuses (Zeus, Hera, Afrodite, Poseidon etc) confrontando-se
para proteger ou castigar heróis gregos ou troianos. Já nos textos de Ariano (e
dos autos medievais), marcados pela presença da mitologia cristã, anjos e
santos enfrentam demônios para evitar que os personagens sejam punidos com o
fogo do inferno.
Temos essa presença de seres
celestiais e de seres demoníacos intervindo também no destino dum grupo de
mortais n’O auto da Compadecida. Nesse texto, porém, a ação se dá já no mundo
dos mortos. João Grilo e os demais personagens estão mortos e precisam da ajuda
de Nossa Senhora (A Compadecida) e de Jesus Cristo (Manuel) para que não sejam
encaminhados ao inferno. Aqui, temos a aproximação com O auto da barca do inferno, de Gil Vicente, escrita em 1517.
Diferentemente da peça de Gil Vicente, em que a maioria dos mortos não escapa
ao fogo do inferno, na peça de Ariano, de 1955, com a argumentação precisa de
Nossa Senhora e de Jesus Cristo, livram-se todos do castigo. É um final típico
da comédia, como nos diz Renata Palllottini no seu livro Dramaturgia: a construção da personagem: “Seu desenlace é, via de
regra, feliz, otimista. O público sente-se solidário com o desenrolar da trama,
se descontrai com o desenlace, que lhe dá uma espécie de catarse que não é
catarse porque não implica piedade e terror, mas uma empatia cuidadosa, onde o riso
é às vezes de cumplicidade, outras vezes de superioridade”.
Na Farsa da boa preguiça, escrita em 1960, a intervenção celestial, para
evitar a vitória do diabo, dá-se no mundo dos vivos. Então, faz-se necessária a
descida desses seres celestiais ao mundo dos mortais. Nesse caso, os seres
celestiais precisam assumir a condição de um
mortal e andar entre os homens como um deles. Nessa condição de mortal,
pode ocorrer algum desvio ou conduta que fuja do que se espera de um anjo ou de
um santo. É o que ocorre com Simão Pedro: ele encontra um queijo que
pertenceria ao rico Aderaldo Catacão e decide ficar com ele. Ao final, temos os
três seres celestiais (Manuel Carpinteiro, ou seja, Jesus Cristo, Simão Pedro e
Miguel Arcanjo) disputando a posse do queijo num jogo. A proposta é feita desta
maneira por Manuel Carpinteiro: “Então vamos fazer o seguinte:/enquanto a
história do Rico e do Poeta continua,/a gente vai ali dormir um sono e
sonhar!/Quem tiver o sonho mais bonito/fica com o queijo todo, está bem?”. Depois, quando vão revelar os sonhos, Simão
Pedro confessa: “Então, sonâmbulo, como sempre fui,/acho que me
levantei,/porque quando acordei,/tinha comido o queijo:/só estas cascas
encontrei!”. E essa sua esperteza é ainda exaltada por Manuel Carpinteiro:
“quando escolhi este para Príncipe dos Apóstolos/e chefe da Igreja,/foi porque
sabia que o cabra era esperto!”. Aqui, poderíamos dizer que o texto de Ariano
se aproxima da Sátira Menipeia, pois ocorre o rebaixamento de um ser celestial,
fazendo-o comportar-se como um simples mortal afeito aos desvios de conduta.
Para Aristóteles, a comédia, em
contraposição à tragédia, “é a imitação de homens de qualidade inferior”. O universo
teatral criado por Ariano Suassuna, a partir de suas fontes populares e
eruditas, é marcado por tipos que se encaixam nessa definição do filósofo grego.
Seu olhar generoso, no entanto, faz com que seus personagens pertencentes à
camada menos favorecida da sociedade ganhem a simpatia do público por
investir-se de esperteza, graça e malícia – elementos capazes de fazê-los
sobrepor-se ao outro, que se impõe, geralmente, pela força física ou pelo poder econômico. É o caso das
personagens Caroba e Pinhão na peça O
santo e a porca, de 1957. O público pode até se opor ao modo interesseiro
com que ambos agem inicialmente, mas não tem como não simpatizar com eles ao
descobrir que são explorados vergonhosamente pelos patrões. É o que nos revela
a fala de Pinhão no Terceiro Ato: “Mas onde está o salário de todos estes anos
em que trabalhamos, eu, meu pai, meu avô, todos na terra de sua família, Seu
Eudoro? Onde está o salário da família de Caroba, na mesma terra, Seu Eudoro?
(...) Onde está o salário de Caroba durante o tempo em que trabalhou aqui, Seu
Euricão?”.
Caroba e Pinhão, assim como João
Grilo, possuem linguagem e esperteza que lhes permitem negociar, argumentar e
tramar em proveito próprio ou dos outros. E se podem fazer isso com tanta
desenvoltura, em relação à linguagem, é porque, nas peças de Suassuna, não há distinção
entre o nível de linguagem usado pelos patrões e o usado pelos empregados. Ou
seja, a correção gramatical é um elemento presente tanto na fala dos menos
favorecidos quanto na das elites econômicas. Menos que incorrer em
inverossimilhança, o que Ariano faz é armar os representantes das camadas mais
pobres da sociedade com o mesmo poder de comunicação dos que detêm o poder.
Dá-lhes a mesma “competência lingüística” dos seus opressores. Isso permite, então, que o embate verbal não
penda só para um lado, ou seja, dos representantes das forças econômicas. Seus
personagens, nesse caso, não sofrem da mesma angústia de um Fabiano, no romance
Vidas Secas, do também nordestino Graciliano Ramos. Por ser limitado em relação à linguagem, o
personagem de Graciliano não pode exprimir-se da maneira que gostaria e que
precisaria para se livrar da exploração e da opressão.
Por conta de toda essa riqueza estética e
convicção ideológica, o teatro criado por Ariano Suassuna nos encanta,
conscientiza, diverte e humaniza. Daí sua força inesgotável como obra de arte
capaz de nos manter atentos às complexidades da alma humana e às riquezas
culturais do nosso país.
(Este texto foi publicado, originalmente, na revista eletrônica Diversos Afins e no Jornal Opção.)
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