Por
Geraldo Lima
Georg Büchner nasceu em Goddelau,
Alemanha, em 17 de outubro de 1813, e, acometido de tifo, faleceu em Zurique,
Suíça, em 19 de fevereiro de 1837. Tinha apenas 23 anos de idade, mas já havia
defendido tese sobre o Sistema Nervoso dos Peixes, iniciado a carreira como
professor universitário na universidade de Zürich, escrito o drama de época A Morte de Danton, a comédia Leonce e Lena, o fragmento (ou esboço)
do drama Woyzeck, que iria
imortalizá-lo e influenciar outros dramaturgos mundo afora, e uma novela
inacabada: Lenz. Além disso, deixou
também o histórico de uma atividade política intensa, de crítica feroz à realidade
social do seu país, tendo amargado, por isso, alguns anos de exílio.
Fernando Marques nasceu no Rio de
Janeiro e, atualmente, reside em Brasília, Distrito Federal. É professor do
Departamento de Artes Cênicas da Universidade de Brasília, jornalista,
escritor, dramaturgo e compositor. É Doutor em Literatura Brasileira pela UnB
com a tese sobre teatro musical. Tem algumas obras publicadas, dentre elas Retratos de Mulher (poesia, Varanda), Contos Canhotos (contos, LGE), A Comicidade da Desilusão: O Humor nas
Tragédias Cariocas de Nelson Rodrigues (ensaio, Editora UnB/Ler Editora), o
livro-CD Últimos: Comédia Musical
(Perspectiva). Além disso, tem textos publicados em jornais e revistas
impressas e eletrônicas.
Dito isso, resta indagar: o que une
então esses dois artistas separados no tempo e no espaço? O que justifica o fato de serem colocados,
lado a lado, neste texto? Que ponto de contato há entre ambos, já que suas
obras são originárias de culturas e épocas bem diferentes?
A resposta, embora simples, demanda
uma explanação mais ampla, expondo afetos e meios que possibilitaram essa
aproximação entre o dramaturgo alemão e o brasileiro. Fernando Marques, num
lance ousado, empreendeu a árdua tarefa de adaptar em versos metrificados e
rimados a peça-fragmento Woyzeck de
Büchner.
A ideia de adaptar em verso
(“Reiteiro, afinal, não se tratar aqui de tradução em verso”, avisa logo o
autor) essa peça de Büchner surgiu em 1996 quanto Fernando participava,
compondo três canções, da sua montagem em Brasília, sob a direção de Túlio
Guimarães. Desse primeiro instante em que lhe brotou na mente a ideia-desejo
até a sua colocação em prática, com a primeira redação do texto em 1999, passaram-se
mais de dois anos. Zé (esse é o título da adaptação feita por Fernando Marques) passou
por uma última modificação em 2013 ao ser reeditado pela É Realizações Editora.
Todas as reescrituras que o texto sofreu ao longo desses anos foram feitas
tendo por base obras de referência sobre a peça do jovem autor alemão, como
“Büchner”, artigo de Anatol Rosenfeld publicado no livro Teatro Moderno (2. ed., São Paulo, Perspectiva, 1985), Georg Büchner e a Modenidade, livro de
Irene Aron (São Paulo, Annablume, 1993), entre outras. Em busca de rigor
técnico e fidelidade ao texto do autor de A
Morte de Danton, Fernando consultou ainda, para a revisão feita em 2003, as
três traduções integrais de Woyzeck
então disponíveis.
Vê-se, com isso, que a tarefa que
Fernando Marques se impôs não foi fácil e custou-lhe anos de leituras
comparativas e reelaborações na busca do texto mais próximo ao do dramaturgo
alemão. Há em todo esse percurso criativo um labor e uma seriedade que
resultaram num texto que traduz, de modo fiel e denso, a mesma realidade de
opressão e lirismo trágico que desnorteia e esmaga o personagem Franz Woyzeck.
Essa fidelidade, no caso, não
significa que o autor brasiliense tenha se esquivado de impor, em algumas
passagens, a sua marca pessoal. Em alguns casos, ele procurou, por exemplo,
tornar mais legíveis algumas passagens do original. Diz ele: “Do ponto de vista
da legibilidade, vale dizer que visei tornar mais claras certas passagens
caracteristicamente lacônicas ou obscuras do original”. Esse seu procedimento
vai, no entanto, de encontro à opinião de Sábato Magaldi, segundo o qual “O
hermetismo de certas passagens engrandece a peça com uma gama infindável de
sugestões”. Mas essa busca de maior legibilidade não adultera em nada o
texto-esboço de Büchner, pois não o despe do que Sábato Magaldi chama de
“descarnamento essencial” nem lhe tira o sentido de dramaticidade.
Embora mantenha o cenário original
da peça de Büchner, a Alemanha do século XIX, Fernando Marques faz algumas
intervenções bem próprias na tentativa de aproximar a realidade de Woyzeck da realidade brasileira. Podemos
citar, em primeiro lugar, o próprio título Zé
que o autor deu à sua adaptação. Sendo Woyzeck um zé-ninguém, um soldado raso
explorado e oprimido por todos, o título dado por Fernando mostra bem, do ponto
de vista da nossa cultura, esse apequenamento do protagonista diante da
realidade opressora. No texto “Recomposição Versificada”, publicado em Zé (São Paulo, É Realizações Editora,
2013), Valmir Santos afirma que “De fato, os milhões de miseráveis que
contracenam pelo país, embarcados no século XXI, enxergariam facilmente um
irmão no Zé büchneriano de Marques”. Ainda nesse processo de aproximação da
nossa realidade, há a referência hiperbólica ao Lago Paranoá numa das falas do
1º Aprendiz: “O mundo é bonito – ou parece,/mas vou chorar um Paranoá!”. E
pode-se ver ainda referência a Nelson Rodrigues num trecho como este, na fala do
Judeu: “Vai ter uma morte batata,/mesmo que não seja de graça”. Ao final,
Fernando faz um acréscimo ao texto original (em algumas versões a peça termina
com a cena “na floresta, junto ao rio”), acrescentando-lhe uma espécie de
“adendo ou epílogo”. Na fala do Velho, essa cena, cantada, reforça o caráter
provisório da nossa vida terrena: “No mundo não há consistência/Todos vamos
morrer/Sabemos muito bem/Vamos morrer/Sabemos bem”. Porém, enquanto o Velho
canta, expondo a precariedade da vida, a Criança dança ao som da sanfona, como
que apontando para o sentido de renovação e resistência dessa mesma vida.
Ainda que se possam apontar todas essas
marcas pessoais do autor na adaptação
do Woyzeck, ele expõe enfático os
limites da sua intervenção: “Com pequenas alterações, a história é a de
Büchner; minha contribuição se dá no plano dos versos e das quatro canções
incorporadas à peça”.
A peça Woyzeck e as variações
possíveis na sua estrutura dramática.
Na obra Georg Büchner – A Dramaturgia do Terror (São Paulo, Brasiliense,1983)
Fernando Peixoto informa que “Woyzeck é formado por 27 cenas curtas e em certa
medida autônomas (...). Cada instante vale por si mesmo, aprofundando uma
situação ou uma relação”. São cenas que se articulam de forma autônoma,
justapostas, como no teatro épico que será desenvolvido por Brecht. Já Sábato
Magaldi, no texto “Woyzeck, Büchner e a condição humana”, publicado no livro Büchner na Pena e na Cena (São Paulo,
Perspectiva, 2004, organização de J. Guinsburg e Ingrid D. Koudela), diz que
“Woyzeck compõe-se de vinte e cinco cenas, que não guardam unidade de lugar e
tempo”. Nesse mesmo livro, há uma versão composta por vinte e sete cenas,
iniciando-se com a cena “campo aberto. A cidade a distância. Woyzeck e Andres
cortam varas nas moitas”. Na sua adaptação em verso da peça de Büchner,
Fernando Marques optou pela versão com vinte e seis cenas, tendo ele tomado
como texto-base a tradução feita por João Marschner e publicada pela Ediouro. Nessa
versão, inicia-se com a cena “Quarto”, em que Woyzeck faz a barba do Capitão. Vale
lembrar ainda que Fernando cria um epílogo, finalizando a peça (se é que se
pode afirmar isso) com a cena do Velho e da Criança. Em algumas versões,
entende-se que Franz Woyzeck morre afogado. Pode-se dizer que teria se suicidado.
Noutras, ele continua vivo. Em Zé, o
trágico personagem de Büchner morre afogado, ou pelo menos é o que se pode depreender
da sua ação de ir cada vez mais para o meio do rio.
Todas essas variações são possíveis
porque o texto deixado por Büchner ficou inacabado e sem a indicação da
organização sequencial das cenas. Desse modo, cada encenador pode fazer o arranjo
que achar mais pertinente.
Woyzeck/Zé – dramaturgia universal.
Woyzeck é um caso único na história da
dramaturgia universal: inacabado, ainda um esboço, tornou-se, no entanto, um
texto capaz de influenciar dramaturgos como Bernard Shaw, Bertolt Brecht,
Beckett e Artaud. “Do naturalismo em diante, e mais especificamente do expressionismo,
desenvolve-se um processo ininterrupto de recepção da obra büchneriana que se
faz sentir sobremaneira no panorama literário e cultural da Alemanha”, declara
Irene Aron no texto “Georg Büchner e a Modernidade Extemporânea”, publicado em Büchner na Pena e na Cena (São Paulo,
Perspectiva, 2004, organização de J. Guinsburg e Ingrid D. Koudela). O alemão
Georg Büchner, embora tenha morrido tão jovem, tornou-se precursor do teatro
moderno ao conceber uma obra do porte de Woyzeck,
em que a crítica social mescla-se, perfeitamente, à indagação metafísica, ao
mesmo tempo em que rompe com a estrutura do teatro aristotélico, impondo a
necessidade de que se conceba um novo espaço cênico.
Segundo Fernando Peixoto, Woyzeck “constitui o instante histórico
em que o proletariado surge na qualidade de protagonista na dramaturgia universal”.
Nesse caso, ele assume o primeiro plano para viver o drama de uma existência
marcada pela exploração, pela miséria e pela humilhação. O soldado Woyzeck, por
exemplo, sofre sob o comando do Capitão, a quem presta pequenos serviços, é
usado por um médico inescrupuloso como cobaia num experimento inútil, além de
ser agredido e humilhado pelo Tambor-mor, amante da sua mulher. A Woyzeck resta
deixar-se dominar pelo ciúme ou pelo desejo de vingança, no caso, contra a
parte mais fraca ou tão desprotegida quanto ele, Marie, sua companheira.
No Zé de Fernando Marques, todo esse ambiente opressivo e dilacerante
continua a afligir o protagonista, só que agora expresso em versos metrificados,
ora em redondilha maior, ora em redondilha menor, ora em decassílabo, ora
misturando um e outro. “A métrica varia de cena para cena ou no interior de
cada uma delas, como se vai perceber (...)”, informa-nos o autor. A cena “O
quarto”, por exemplo, que abre a peça, é toda em redondilha menor. Diante do
estado sempre aflitivo do Capitão em relação à passagem do tempo ou ao que
fazer com o tempo que lhe sobra após concluída uma tarefa, esse ritmo acelerado
acentua ainda mais esse seu pavor metafísico: “Calma, José, calma!/Assim fico
tonto./O bigode pronto/em tempo tão curto/não vale uma palma./Calma, homem,
calma! Ganhei dez minutos/exatos, enxutos./Pra que tanta pressa?/Mais vale é a
alma.../Pensa, José, pensa:/só tens trinta anos,/trinta lindos anos,/horas,
dias, meses.../A vida é imensa!”.
Cena do filme Woyzeck, Werner Herzog
Como outras obras de vanguarda, Woyzeck não encontrou espaço nem
interlocutores em sua época, tendo sido encenada somente cem anos depois do
nascimento do seu autor. Isso em 1913, em Munique. De lá para cá, o
texto-fragmento do jovem autor alemão ganhou novas encenações, dentro e fora da
Alemanha, e adaptações, tanto para a ópera quanto para o cinema. A mais famosa adaptação para ópera desse
texto de Büchner foi realizada pelo jovem compositor Alban Berg, com a
obra-prima Wozzeck (a grafia do
título deve-se a um erro cometido pelo escritor alemão Karl Emil Franzos, na
primeira edição da peça de Büchner, em 1879, e na qual o compositor alemão se
baseou). No cinema, ganhou também uma versão impactante. Trata-se do filme Woyzeck, do diretor alemão Werner Herzog
(1979). Na magnífica interpretação de Klaus Kinski, podemos visualizar a figura
delirante e frágil de Franz Woyzeck em sua jornada cotidiana de perdedor. No
Brasil, foi adaptado (ou recriado) em 2002 com dramaturgia do escritor e
roteirista Fernando Bonassi e direção de Cibele Forjaz, tendo Matheus Nachtergaele
como intérprete do personagem-título. Nessa recriação, ganhou o sugestivo
título de Woyzeck, O Brasileiro e
apresentou o protagonista não como um soldado, mas sim como um sofrido
trabalhador de uma olaria. O Zé de
Fernando Marques aguarda ainda por uma montagem que o apresente de fato ao
grande público. Até o momento, foram feitas apenas leituras dramáticas e
montagens acadêmicas dessa bela e ousada adaptação do texto do jovem dramaturgo
alemão.
Cena de Woyzeck, o brasileiro
Temos já uma tradição de textos
teatrais compostos em versos, como as peças Se
Correr o Bicho Pega, se Ficar o Bicho Come, de Oduvaldo Vianna Filho e
Ferreira Gular; Gota d’Água, de Chico
Buarque e Paulo Pontes; A Farsa da Boa Preguiça,
de Ariano Suassuna, entre outras. A adaptação feita por Fernando Marques do
texto de Büchner filia-se a esse veio de boa dramaturgia nacional e, por isso,
faz-se urgente que seja levada aos palcos. Não precisamos esperar um século
para que isso aconteça; façamos então coro às palavras do autor: “Os versos
condensam também, no caso das peças brasileiras citadas, a intenção de
articular de maneira lúdica e empática, em tom popular, a fábula, as
personagens, os conceitos que o dramaturgo queira transmitir ao público. Zé também quer – por que não? – ser popular”.
(Este texto foi publicado, originalmente, na revista eletrônica Diversos Afins)
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