domingo, 20 de dezembro de 2009




O BRILHO DE UMA NOVA ESTRELA

                                                     GERALDO LIMA

Estamos prestes a festejar o nascimento daquele que, apenas com palavras e gestos simples, mudou a visão de mundo no Ocidente. Ele nos ensinou uma nova ética: o amor e o respeito ao próximo. Acho que isso abarca tudo, tanto o que se refere ao ser humano quanto ao que se refere à natureza. E não é preciso ser  ligado a essa ou àquela religião para ver nisso um bem. Eu, que me avizinho dos limites da descrença, do quase ateísmo,  tenho nisso o meu norte. Mas há os que, mesmo fazendo uso da palavra divina, do sagrado, pisam na ética, agem contra a felicidade dos outros.
Sabem aonde quero chegar, não sabem?
Merecíamos um final de ano diferente, não no sentido do que tradicionalmente se comemora (tradição é tradição, sagrado é sagrado), mas, sim, no que se refere à “res publica”. Para ser mais claro: ao que se refere à administração da coisa pública, do bem coletivo. Pois é, parece-me que, infelizmente,  adentraremos 2010 sob os efeitos de um novo escândalo na administração pública brasileira.  Agora, para piorar ainda mais a imagem de Brasília, sempre associada aos abusos da política, a coisa estourou bem aqui, no coração do país.
Quando pensávamos que estaríamos livres dos escândalos, pelo menos por algum tempo, eis que abriram a Caixa de Pandora e de lá saltaram os males, as bandalheiras do governo local. O duro é aguentar a hipocrisia, a tentativa dessa gente de nos convencer de sua inocência quando as imagens não deixam margem à dúvida. Na verdade, querem nos dizer com a maior desfaçatez: “Eu, como bom político, posso continuar a enganá-los apesar do óbvio”. Como se ser político fosse isso. Para o filósofo grego Platão,  o “bom governo depende das virtudes dos bons governantes”.  Se for assim, estamos ferrados! Que virtudes essa gente tem?!
Oh, mas a vida é uma caixinha de surpresas, e, enquanto “essa gente ruim” (como canta Alceu Valença na música Desprezo) espalha o “merdal”, enxovalha a vida pública, eis que, como a flor drummondiana que brota no asfalto, mesmo em meio ao tédio e ao nojo, diante da ausência do tempo de completa justiça, eis que, num cenário podre como esse, brota uma flor, um ser que parece predestinado a nos encantar. “Façam completo silêncio, paralisem os negócios,/garanto que uma flor nasceu.”
Falo, meus caros, da menina Crystal do Espírito Santo que, no Fantástico do dia 06 de dezembro, nos emocionou com o seu talento precoce. Com apenas dez anos de idade, ela já toca piano com uma desenvoltura de gente grande. E o mais fantástico dessa história toda: sua condição social tornava improvável a possibilidade de ela ter acesso ao universo da música erudita. Pobre e vivendo na periferia, tinha tudo para não acontecer. Mas, como a flor drummondiana que fura o asfalto, ela furou o cerco da miséria e brilhou.  É ver e sentir vontade de chorar de emoção. A menina vai longe, pois tem talento, inteligência, humildade e perseverança. Agora  vamos torcer para que a ação “dessa gente ruim”, que sempre se propõe a nos governar, não apague nunca o brilho e o encanto da menina Crystal. Que seja ela a estrela que  nos resgate da desilusão que nos ronda neste fim de ano.
(Esta crônica foi publicada também na revista eletrônica Nós – fora dos eixos e no Jornal de Sobradinho)

sábado, 19 de dezembro de 2009

CENTENÁRIO DO DRAMATURGO EUGÈNE IONESCO.


        Em comemoração ao centenário do dramaturgo Eugène Ionesco, apresento aqui quatro textos dele, traduzidos por mim ( Conte nº 01, Conte nº 02, postados anteriormente, Conte nº 03 e um trecho da peça de teatro Le tableau, cuja tradução pretendo finalizar o ano que vem), e a matéria de autoria do escritor e jornalista Fernando Marques, publicada originalmente no suplemento Pensar, do Correio Braziliense.

O ANIMAL QUE PENSA
                                    Fernando Marques
Se você procurar informações em livros ou na internet sobre o dramaturgo romeno-francês Eugène Ionesco (1909-1994), um dos autores mais férteis do século 20, algumas das fontes dirão que ele nasceu em 1912 e não em 1909. Assim, ao lembrar agora o seu centenário, estaríamos cometendo algo que, em jargão de jornalistas, se chama “barriga”, ou seja, erro, informação involuntariamente falsa. Não é o caso, porém.
Outras fontes não apenas confirmam a data de 26 de novembro de 1909, como explicam a origem do engano. A historinha: quando o crítico Jacques Lemarchand apontou, no início dos anos 1950, o aparecimento da tendência que viria a ser chamada de Teatro do Absurdo, assinalou entre seus “jovens autores” as figuras de Ionesco e Samuel Beckett. O já não tão garoto Ionesco, por pilhéria, teria então avançado a data do próprio aniversário em três anos – para corresponder ao adjetivo “jovem”. A piada pegou, e muita gente foi atrás, repetindo a mentira.    
Nascido em Slatina, Romênia, de pai romeno e mãe francesa, Eugène Ionesco radicou-se na França durante a Segunda Guerra Mundial (país onde vivera na infância) e fez carreira em Paris, tendo a obra divulgada, no decorrer da década de 1950, noutros países da Europa e, depois, de todo o mundo. Produziu 30 peças teatrais, entre elas A cantora careca, A lição, As cadeiras e O rinoceronte, além de relatos ficcionais e ensaios – algumas de suas ideias sobre o teatro e a condição humana são luminosas. A obra de Ionesco também apresenta aspectos frágeis ou, quando menos, controversos.  
Ele não fugiu às polêmicas, nas peças ou fora delas. Debateu publicamente com críticos, a exemplo do bate-boca travado em 1958 com Kenneth Tynan, comentarista do jornal londrino Observer, que o acusou de negar não apenas o realismo, mas a própria realidade. O dramaturgo respondeu a Tynan afirmando que “renovar a linguagem é renovar a concepção do mundo”. Ionesco faria restrições a Bertolt Brecht e a Jean-Paul Sartre, representantes de um “conformismo de esquerda”. E, por conta de O rinoceronte, peça com a qual alcançou as grandes salas em 1959, chegou a ser chamado de reacionário. No Brasil, Nelson Rodrigues ouviria insultos de mesmo tipo. 
Privilegiando as metáforas, Ionesco obstinadamente rejeitava a redução dos seres humanos a seus condicionamentos sociais; tais condicionamentos, contudo, possuem peso decisivo na vida breve dos indivíduos. Contra essa pretensa evidência, argumentou que “nenhuma sociedade tem sido capaz de abolir a tristeza humana, nenhum sistema político pode nos livrar da dor de viver, de nosso medo da morte, de nossa ânsia pelo absoluto; é a condição humana que dirige a condição social, e não o contrário”.
Por palavras como essas, citadas pelo crítico Martin Esslin no clássico O teatro do absurdo, de 1961 (livro que deu nome à tendência), alguns o atacaram. Ao que parece, não o entenderam. Seu personagem Bérenger, de O rinoceronte, fala pelo dramaturgo ao dizer “não” às atitudes de paquiderme, isto é, de massa e de manada. Recusando-se a se transformar em rinoceronte, quando todos à sua volta se animalizam, Bérenger insiste na condição humana, mesmo precária, gritando ao final da história: “Eu não me rendo!”. 
Antienredos
A primeira peça do autor, A cantora careca, encenada em maio de 1950, em Paris, para plateias minguadas, deixa a impressão de simples brincadeira futurista. Seu nexo limita-se ao registro satírico, farsesco, da vida burguesa na Europa em meados do século passado. O autor ambicionava comunicar muito mais, tendo falado, a respeito da comédia, em denúncia dos vazios da linguagem e da própria experiência vital.      
Em cena, vemos um casal inglês que receberá a visita de outro casal, também britânico – o formalismo dos ingleses, verdadeiro ou suposto, serve à caricatura do formalismo burguês em geral. A lógica acha-se desmoralizada; tudo o que se diz e se faz é não apenas absurdo, mas pueril, perfeitamente inútil. A ação corre em círculos, e nenhuma palavra conduz a qualquer mudança importante nas situações, que se sucedem sem evoluir. Tornado farsa, o enredo nega-se a caminhar, a ser enredo, enfim.
O dramaturgo enfatiza a vanidade da vida para as classes média e alta: a segurança, o decoro, a sensatez converteram-se numa prisão. Mas, em lugar de crítica articulada, ainda que por meios não convencionais, a essas classes e à sua mentalidade, o que temos é antes derrisão, deboche, em atitude que lembra a do urinol de Duchamp, antiobra de arte sarcástica. Embora divertido e saudável, o deboche soa superficial, ao menos à mera leitura.
A segunda peça de Ionesco aparece no ano seguinte, chama-se A lição e é mais madura que o texto de estreia. A subversão da lógica, sobretudo nas falas (depois também nas ações), adensa-se buscando sentido mais amplo e mais cruel, o da opressão do professor sobre a aluna. A menina de 18 anos por sua vez exerce, talvez involuntariamente, a tirania de sua juventude sobre o mestre maduro e solitário, efeito figurado nos olhares lúbricos que ele deixa escapar de vez em quando.
Trata-se, como se verá depois, de um lobo, no mais literal e também no mais absurdo dos sentidos. No desfecho saberemos que a moça é a 40ª. estudante que, nesse dia, o mestre recebeu em sua casa, terminando por matar as meninas e por comer a carne adolescente de todas elas. Uma espécie de conto de Chapeuzinho Vermelho, mas desmesurado, de uma poesia extremada e pérfida.
O adensamento expressivo em A lição deve-se à economia dos meios em jogo: são apenas dois personagens (um terceiro papel, o da Empregada, cumpre tarefas auxiliares); a relação entre eles pode agora, mais que na Cantora, ascender ao plano da alegoria ou da metáfora. Fábulas simples que se desdobram, por exagero, até o infinito irão caracterizar o teatro de Ionesco.  
Pesadelos cômicos
Uma vez abolido o realismo, o significado torna-se incerto, e é sempre lançado para além das situações ficcionais consideradas em si mesmas; para espectadores ou leitores, não há mais apoio possível na verossimilhança, descartando-se o cotejo direto daquelas situações com as da realidade. Paralelos entre ficção e vida permanecem válidos, mas já não se toma por base o real, convencionado segundo certa percepção média dos fenômenos.
A arte de vanguarda naquele momento pretendia explorar não o personagem mediano, normal (dotado de uma falha de caráter que ele poderá superar no decorrer do enredo), mas o disforme, o monstruoso. Esse tipo de criaturas não se altera, não é capaz de mudar – títeres são sempre iguais a si mesmos –, fato moral e estético do qual decorrem os enredos circulares. O drama do Absurdo tende assim ao supra-histórico, ao que está à margem da história regular, factual: nas peças de Ionesco, Beckett, Genet, Arrabal, habitamos o plano perene do mito e dos pesadelos humorísticos.
A grande peça, entre as três primeiras obras do autor, responsáveis por consagrá-lo, é As cadeiras (de fato, o quarto texto escrito pelo dramaturgo, mas o terceiro a ser encenado). A mesma técnica do acúmulo usada na construção das outras obras ressurge nessa peça, com eficácia singularíssima. Nota-se provável dívida para com os expressionistas.
O argumento em As cadeiras é de uma fantasia extraordinária: um casal de velhos, ele com 95 anos, ela com 94, resolve receber pessoas – algumas socialmente importantes, como o concupiscente General – para uma conferência espetacular (na qual vão se revelar verdades insuspeitadas), a ocorrer na pequena ilha onde vivem, cercados de água até o horizonte. Isolados, jogam suas derradeiras esperanças na recepção que preparam.
Acontece que todos os convivas do evento são invisíveis para o público. Temos notícia de sua presença somente por meio das cadeiras que se multiplicam e das palavras ditas pelos atores encarregados de interpretar os dois idosos; eles têm de dar a ver um número enorme de personagens, sem que estes apareçam materialmente por um instante sequer. Há uma terceira figura, de carne e osso como os velhos, que surgirá no desfecho: é o conferencista, malignamente caracterizado como surdo-mudo. O texto aposta na habilidade dos atores e na imaginação do público.   
O teatro brasileiro faz contato com a obra de Ionesco a partir de 1956, quando Jacques ou A submissão é encenada em São Paulo. O rinoceronte chegaria ao país pelas mãos do diretor português Luís de Lima, em 1961. A peça parece haver influenciado dramaturgos como Bráulio Pedroso, que teve As hienas apresentada no Rio de Janeiro em 1971: era uma alegoria da ditadura militar. Imagem das forças que trituram as pessoas em todas as épocas, o teatro de Ionesco não exclui as referências políticas, apenas evita limitar-se a elas: “A condição essencial do homem não é sua condição de cidadão, mas de mortal”. Algo mais?
(Artigo no centenário do dramaturgo romeno, naturalizado francês, Eugène Ionesco (1909-1994).  Publicado no suplemento Pensar, do Correio Braziliense, em 14-11-2009.
Fernando Marques é jornalista e doutor em literatura brasileira pela UnB. Publicou Retratos de mulher (poesia), Zé e o livro-disco Últimos (peças teatrais). www.fernandomarques.art.br.) 
 Estante
De Ionesco:
A cantora careca – Tradução de Maria Lúcia Pereira. Papirus, 1993.
A lição e As cadeiras – Tradução de Paulo Neves. Peixoto Neto, 2004.
O rinoceronte – Tradução de Luís de Lima. Abril Cultural, 1976.
Rhinocéros – Gallimard, 2008. 
Sobre Ionesco:
O teatro do absurdo – De Martin Esslin. Tradução de Barbara Heliodora. Zahar, 1968.
The theatre of the absurd – De Martin Esslin. 3ª. edição. Vintage Books, 2001.
O texto no teatro – De Sábato Magaldi. Com os artigos “O mundo de Ionesco” e “Ionesco e a morte”. Perspectiva, 1989.
Teatro em progresso: crítica teatral (1955-1964) – De Décio de Almeida Prado. Com o artigo “Espetáculo Ionesco”. Perspectiva, 2002.   


Conto Nº 3
                            de Eugène Ionesco
                       
     
                           Tradução: Geraldo Lima


             Uma manhã, a pequena Josette, como ela havia feito na  véspera e como ela fazia todas as manhãs, bate à porta do quarto
dos seus pais para acordá-los. A mamãe já estava acordada; ela já
havia se levantado; ela já estava tomando banho.  Ela havia  deitado cedo e ela havia dormido bem.

            O papai dormia ainda porque, na noite anterior, sozinho, ele havia ido ao restaurante, e depois ao cinema, e depois ao restaurante, e depois ao teatro de fantoches, e depois ainda ao restaurante. E agora ele queria dormir, porque ele dizia que era domingo, e porque no domingo não há trabalho e não se vai também procurar o carro para ir ao campo, porque é inverno, e porque há gelo nas estradas.
            Há gelo nas estradas, deu no rádio. Mas em Paris não há. Em Paris, o tempo está quase bom: há algumas nuvens sobre as casas, mas há também um céu azul sobre as árvores da avenida.
            Josette se aproxima do seu papai, ela lhe faz cócegas no nariz,  papai faz careta, ela o beija,  papai pensa que é um cãozinho. Não é um cãozinho, é sua filhinha.
            “Conte história”, diz Josette ao seu papai.
            Então papai começa uma história...
            “Uma história com você e comigo”, diz Josette.
            E papai conta uma história com Josette e com papai.
            PAPAI — Nós vamos fazer um passeio de avião. Então eu a visto com o seu culote, eu a visto com a sua sainha, eu lhe coloco o cachecol, eu a visto com o seu puloverzinho rosa...
            JOSETTE — Não, este não.
            PAPAI — Este então, o branco?
            JOSETTE — Sim, o branco.
            PAPAI — Eu a visto com o seu puloverzinho branco. Depois eu vou vesti-la com o seu casaquinho, suas luvinhas, ah!, eu tinha esquecido as suas botas!... Eu também lhe coloco o  chapeuzinho.
            Eu me levanto, eu me visto, eu a pego pela mão, e você vai ver, a gente vai bater na porta do banheiro. Mamãe dirá: “Aonde vocês vão, minhas crianças?....”.
            JOSETTE — Eu vou passear de avião com o papai.
            Mamãe dirá: “Divirtam-se bastante, minhas crianças. Sejam sábios, sejam prudentes. Se vocês vão de avião, é preciso ter cuidado para que Josette não se debruce na janela, é perigoso. Ela poderia cair no Sena ou sobre o telhado da vizinha. Ela poderia machucar o bumbum ou fazer um grande galo na testa”.
            PAPAI — Tchau, mamãe.
            JOSETTE — Tchau, mamãe.
            PAPAI — Depois, nós iremos até o fim do corredor e, em seguida, viramos à esquerda. Lá, o corredor não está mais escuro. Ele é iluminado pela luz que entra pelas janelas do salão à esquerda.
            Nós iremos à cozinha. Jacqueline está lá, preparando já o almoço. Nós vamos lhe dizer: “Tchau, Jacqueline”.
            JOSETTE — Tchau, Jacqueline.
            Jacqueline dirá: “Aonde o senhor vai?... Aonde você vai, minha pequena Josette, com seu papai?”.
            JOSETTE — Nós vamos passear. Vamos subir no avião. Nós vamos ao céu. Jacqueline dirá: “Preste atenção na Josette, senhor, quando estiverem no alto. Não é preciso que ela se debruce na janela, é perigoso. Ela poderá cair. Ela poderá fazer um galo na testa ao cair sobre o telhado do vizinho. Ou, então, ela poderá ficar presa nos galhos de uma árvore pelo fundo do culote. Seria  preciso ir retirá-la com uma escada”.
            JOSETTE — Não, eu terei muita atenção.
            PAPAI — Depois, eu pegarei a chave, eu abrirei a porta com a chave.
            JOSETTE — No buraco da porta.
            PAPAI — Eu abro a porta, eu fecho a porta. Eu não bato a porta, eu fecho calmamente a porta, eu entro com você no elevador, eu aperto o botão...
            JOSETTE — Não, sou eu que aperto o botão. Me pegue nos braços porque eu sou muito pequena.
            PAPAI — Eu a pego nos braços. Você aperta o botão. O elevador desce. Desce-se primeiro para subir melhor depois. Nós chegamos ao térreo. Nós saímos do elevador e nós encontramos, diante da guarita, a senhora Zeladora, que está  varrendo.
            JOSETTE — Bom-dia, senhora.
            PAPAI — Então a zeladora diz: “Bom-dia, senhor, bom-dia, minha gracinha. Oh! Como ela está linda esta manhã com seu bonito casaquinho, com seus lindos sapatinhos, com suas lindas luvinhas!... Oh! Que mãozinhas!...”.
            JOSETTE — E meu chapéu.
            PAPAI — A zeladora diz: “Aonde vocês vão assim? passear?...”.
            JOSETTE:  De avião.
            PAPAI — Então a zeladora nos diz: “É preciso ter atenção! Não é preciso que sua filhinha, senhor, se debruce na janela do avião, pois ela poderia cair!”.
            JOSETTE — E pode machucar o bumbum, sobre o telhado, ou fazer um enorme galo na testa.
            PAPAI — Ou no nariz... Então a zeladora nos diz: “Divirtam-se bem”.
            PAPAI — E nós saímos para a rua. Encontramos a mamãe de Michou. Passamos diante do açougueiro com suas cabeças de bezerro...
            Josette tapa os olhos: “Eu não quero ver. Açougueiro malvado!”.
            PAPAI — Sim. Se o açougueiro ainda mata bezerros, eu vou matar o açougueiro... Nós chegamos à esquina. Atravessamos a rua: atenção aos “fonfons”!... Atravessamos a outra rua. Nós chegamos à parada de ônibus. Eis o ônibus. Nós pegamos o ônibus...
            JOSETTE — Ele anda, ele para, ele anda, ele para.
            PAPAI  — E  aqui estamos nós no aeroporto.  Nós pegamos o avião. Ele sobe, você vê, como minha mão: Vvrrr...
            JOSETTE — Ele sobe vrrr... ele sobe Vrrr... Vrr... Vr...
            PAPAI — Nós olhamos pela janela do avião.
            JOSETTE — Não precisa se debruçar!
            PAPAI — Não tenha medo, eu a seguro. Você vê lá embaixo, nós vemos as ruas, nós vemos nossa casa. Vemos a casa do vizinho.
            JOSETTE — Eu não quero cair sobre o seu telhado!
            PAPAI — Nós vemos lá embaixo, a avenida, os automóveis, eles são muito pequenos; nós vemos as pessoas na rua, elas são pequenininhas. Nós vemos a Porta de Saint-Cloud.  Nós vemos o Bosque de Vincennes. Nós vemos o jardim zoológico com seus animais...
            JOSETTE — Bom-dia, “zanimais”!
            PAPAI — Você vê o leão, você ouve?... Ele faz hon! hon!...
            (E papai mostra como o leão faz com suas garras e faz uma careta má): Hon! hon!...
            JOSETTE — Não, não, não faça assim!... Você não é um leão, não é? Você é um papai, você não é um leão.
            PAPA I— Não, eu não sou um leão, eu sou um papai. Eu fiz assim para lhe mostrar.
            JOSETTE — Não, não faça mais.
            PAPAI — E depois, nós vemos o seu Robert... E depois nós vemos o prado, e depois nós vemos a filhinha do seu Robert!
            JOSETTE — Ela é má, ela sujou meu vestido com seus sapatos sujos.
            PAPAI — E depois nós vemos o castelo do senhor Prefeito. E depois nós vemos a igreja com seus sinos...
            JOSETTE — Ding, dong, ding, dong…
            PAPAI — E depois nós vemos, bem lá em cima do campanário, o senhor Cura...
            JOSETTE — Vai cair! Atenção!...
            PAPAI — Não, ele está bem preso com um barbante.  Ele subiu para nos fazer sinal com um lenço... Sobre o campanário, há também o senhor Prefeito e depois senhora Cura...
            JOSETTE — Não é verdade!
            PAPAI — Não, não é verdade, não existe senhora Cura...
            PAPAI — E depois o avião sobe, sobe.
            JOSETTE — Ele sobe, sobe, sobe.
            PAPAI — E nós vemos o campo.
            JOSETTE — Moinho.
            PAPAI — Sim, nós vemos também o moinho da Chapelle-Anthonaise, e depois nós vemos  Marie no galinheiro da fazenda.
            JOSETTE — Os canários.
            PAPAI — O rio.
            JOSETTE — Os peixes que nadam na água.  Não é preciso comer os peixes!
            PAPAI — Não. Nós não comemos os peixes gentis, nós comemos somente os malvados. Os malvados comem os peixes gentis. Então é preciso comer os peixes malvados.
            JOSETTE — Os gentis não!
            PAPAI — Não, os gentis não. Somente os malvados...
            E depois nós subimos, nós subimos... E depois nós estamos nas nuvens, e depois nós estamos acima das nuvens. E depois o céu é ainda mais azul, ainda mais azul, e depois há somente o céu azul, e depois nós vemos a Terra bem lá embaixo como uma esfera. E em seguida: nós chegamos à Lua. Nós passeamos na Lua. Estamos famintos. Vamos comer um pedaço de Lua.
            JOSETTE — Eu como um pedaço de Lua. É bom, é bom!... (E Josette dá um pedaço de Lua a seu pai.)  Os dois comem da Lua!
            PAPAI — É bom, é de melão.
            JOSETTE — Nós colocamos açúcar.
            PAPAI — Só pra você, pra mim não, eu tenho diabetes. Não coma toda a Lua, é preciso deixar para os outros. Não faz mal, isso cresce...
            PAPAI — Agora nós pegamos o avião, nós iremos mais alto... Nós subimos, nós subimos... 
            JOSETTE — Nós subimos, nós subimos...
            PAPAI — Nós chegamos ao Sol. Nós vamos passear no Sol... Ufa! Faz calor!... No Sol, é sempre verão.
            JOSETTE — Ufa!... Quente! quente!…
            PAPAI — Nós pegamos o lenço, nós enxugamos a fronte... Vamos, nós pegamos o avião para descer. Olha!... Onde está o avião?... Ele se derreteu!... Não faz mal. Nós vamos descer a pé.  Nos apressemos, é longe até a nossa casa. É preciso chegar até a hora do jantar, senão mamãe vai nos repreender. Aqui, temos muito calor, no Sol tudo é quente, mas se nós chegarmos atrasados, a comida estará fria.
            Nesse momento, a mamãe entra e diz: “Vamos, desçam da cama e vistam-se”. E a mamãe se dirige ao papai: “Você vai deixá-la idiota com essas tolices!”.
  (Esta tradução do conto de Ionesco foi publicada, originalmente, na revista eletrônica Famigerado.)
 Eugène Ionesco nasceu em 26.11.1909 (Slatina, Romênia) e faleceu em 28.03.1994 (Paris, França). Escritor e dramaturgo. Autor da peça A cantora Careca, considerada marco inicial do Teatro do Absurdo.

TRECHO DE UMA PEÇA DE IONESCO.



O QUADRO
                  Guignolade

      A Paul Chevalier

 Eugène Ionesco

Tradução: Geraldo Lima

PERSONAGENS

        O RICO SENHOR
        O PINTOR
        ALICE
        A VIZINHA

O Quadro, numa encenação de Robert Póstec  — que havia montado admiravelmente  Jacques ou La Soumission —  foi criado, em Paris, em outubro de 1955, no Théâtre de la Huchette., na interpretação dessa peça, um erro a ser evitado. Os atores não devem adotar para a primeira parte da peça uma interpretação realista, ou naturalista, nem pensar que se trata de uma crítica do capitalista explorando o pobre artista. A interpretação realista não pode ser evidentemente adequada na segunda parte da peça cujo tema é a “metamorfose”, — tratada parodicamente a fim de encobrir o sério.
Na realidade, esta guignolade¹ deve ser interpretada por “ Augusto”² de circo, da maneira mais pueril, a mais exagerada,  a mais “idiota” possível. Não é preciso dar aos personagens um “conteúdo psicológico”: quanto ao “conteúdo social” (!), ele é acidental, secundário. Os atores ( especialmente O Senhor Rico ) não devem ter medo de fazer caretas horríveis, dar cambalhotas, de passar sem transição de um estado a outro. As inversões de situação devem acontecer bruscamente, violentamente, grosseiramente, sem preparação.                                    
        Não é senão por uma simplificação extrema, grosseira, pueril, que a significação dessa farsa pode se libertar e tornar-se verossímil à força da inverossimilhança e da idiotice. A idiotice pode constituir uma espécie de simplificação relevante.
        Essa guignolade foi publicada, pela primeira vez, nos “Cahiers du Collège de Pataphysique”.
  
CENÁRIO
Grande sala tendo, como móveis, uma só mesa, muito grande. Telefone. Uma poltrona de couro enorme; nesta poltrona encontra-se sentado o Rico Senhor.
Porta à direita, porta à esquerda, janela à direita no canto.
O Rico Senhor, ar de satisfação, está em mangas de camisa, uma rosa presa com alfinete no peito; gravata com cores berrantes;  a camisa pode estar com as mangas  arregaçadas; relógio de pulso enorme, em ouro, no pulso; ele limpa os dentes com um enorme palito de ouro, enquanto fala; as orelhas, com um  cotonete que ele tem sobre a mesa.   Seu casaco encontra-se sobre a poltrona; uma outra rosa no lado do avesso do casaco.
O pintor está pobremente vestido,  mal barbeado, tem quase a aparência de um vagabundo. Ele porta  uma gravata larga com laço, sua tela enrolada debaixo do braço.
Alice, muito velha,  avental sujo, sapatos vulgares ou tamancos ou pantufas sujas; cabelos brancos, despenteados sob a touca; óculos, um bastão branco na mão, desajeitada;  ela funga  constantemente; se assoa com ou nos dedos.
O pintor é excessivamente tímido, tem um ar de pateta.
Isso pode ser representado no estilo dos Marx Brothers.

        Ao  erguer-se a cortina, o Rico Senhor encontra-se sentado em seu escritório. Ele olha sempre seu relógio de pulso, brinca com sua gravata de cores variadas; limpa os dentes, as orelhas, as narinas, com os instrumentos apropriados: lápis, canivete, corta-papel, dedos.
        Em frente, em pé, respeitosamente afastado, perto da porta da direita, o pintor. Este também tem vontade de limpar os dentes: ele tenta, sem sucesso, quando o Rico Senhor vira, acidentalmente, a cabeça. 

O RICO SENHOR: Aproxime-se, aproxime-se... (O pintor não se mexe.) Veja, o começo é que foi demorado. Ah, sim, não foi fácil. Eu tive de superar obstáculos invencíveis que eu venci! Mas eu não cheguei de uma vez só ao fim das minhas dificuldades; não há milagre, creia-me, senhor, você deve me compreender.
        O PINTOR: Oh sim, senhor, eu o compreendo.
        O RICO SENHOR: Eu sou um buldogue, eu sou obstinado, eu não relaxei. (Ele mostra os dentes, faz: “ham”! ham!”; os mantém cerrados, lábios esticados, e rosna forte como um cão.)  O essencial, veja o senhor, é aguentar.
        O PINTOR: Aguentar, sim senhor.
        O RICO SENHOR: Pois nada lhe cai prontinho do céu, como o maná do deserto. (Mostrando com um gesto da mão tudo em torno de si, a parede, a mesa.) Mas veja o resultado das minhas dificuldades, é meu. O que o senhor diz disso? Hein? Diz o que você acha disso.
        O PINTOR: Seguramente, sim, seguramente...
        O RICO SENHOR, enxugando a testa com um grande lenço: O fruto das minhas dificuldades, o suor do meu rosto. Eu me orgulho disso.
        O PINTOR: Oh... O senhor merece realmente isso.
        O RICO SENHOR: Aproxime-se, aproxime-se. (O pintor aproxima-se a passos curtos.) Sim, senhor, eu realmente mereço isso. Eu posso sem vaidade me citar como modelo. Que isso sirva aos outros, e a você. Eu não sou um egoísta, contrariamente à maioria das pessoas  que venceram, meu caro, como eu, com a força de vontade, com obstinação, com energia, com  trabalho. Eu venho lhe dizer, meu caro, que não há milagres. Mas veja bem, meu caro, há o  milagre.
        O PINTOR: Ah, o milagre?
        O RICO SENHOR: Sim, você me compreende muito bem. Um só milagre, o verdadeiro milagre por excelência: o trabalho.
        O PINTOR, ingênuo: Ah, sim, o senhor tem razão; o milagre do trabalho.
        O RICO SENHOR: Veja, você mesmo o diz. Eu sei que tenho razão. (Mostrando novamente as paredes, a mesa.) A prova: a concretização dos meus esforços, esta casa.
        O PINTOR: Não posso negá-lo. ( Ele coloca a tela debaixo do outro braço.)
        O RICO SENHOR: Eu sou fruto das minhas obras. A vida foi para mim um longo combate. A vida é uma luta impiedosa. Nós marchamos sobre cadáveres! Eu não sei se você está de acordo comigo.
        O PINTOR: Oh sim, senhor!
        O RICO SENHOR: Uma luta impiedosa, mas... honesta: a livre concorrência.
        O PINTOR: A livre concorrência, senhor.
        O RICO SENHOR: Finalmente nós encontramos uma espécie de satisfação, um prazer amargo e profundo, a alegria do dever cumprido... À noite, nós podemos dormir, pois temos a consciência tranquila. (Ele fecha os olhos durante um segundo, apoia a cabeça numa das mãos, imitando um travesseiro, finge ressonar.)
        O PINTOR: Tranquilo, sim, senhor. (Ele tenta limpar um dente com o dedo, mas não pode, pois:) ³
        O RICO SENHOR, reabrindo os olhos: Sim, tranquilo, mas como?  Que tranquilidade!  É a tranquilidade da calma após a tempestade!
        O PINTOR: Ah, sim, após... após a tempestade.
        O RICO SENHOR: Aproxime-se, aproxime-se. (O pintor se move com dificuldade; quase choramingando, compadecido de si mesmo.) Eu levei uma vida muito dura, desde minha tenra infância. Meu pai... enfim, não falemos disso, talvez não seja realmente sua culpa, ele está morto. Meus avós também. Minha mãe, ela, ela se casou com um bêbado. Meu pai também bebia muito, mas era o meu pai. Enquanto o outro, como lhe explicar, não era senão o meu pai adotivo,  tão-somente!   Enfim, minha mãe está morta também. (Se enternecendo.) O senhor não pode imaginar o que é isso para um menino jogado na vida, na selva...
        O PINTOR, se enternecendo também, até as lágrimas: Sim, senhor, eu imagino.
        O RICO SENHOR, dando um soco na mesa: Não, meu querido, não, você não pode imaginar. Mas eu me levantei!...
        O PINTOR, timidamente: Eu passei por isso também... Minha mãe...
        O RICO SENHOR: Claro que não, claro que não, meu querido, não é a mesma coisa. Nós somos totalmente diferentes uns dos outros!
        O PINTOR: Ah! Isto, sim!
        O RICO SENHOR: Você vê essa janela que dá para a rua. (Ele faz sinal para o pintor dirigir-se  para  ela.) Vai até lá, vai até lá.
        O PINTOR, sempre com a tela enrolada, vai até a janela: Aqui?
        O RICO SENHOR: O que você vê?
        O PINTOR: Uns passantes.
        O RICO SENHOR: O que eles fazem?
        O PINTOR: Eles passam.
        O RICO SENHOR: Isso é bem vago. Observe-os melhor: nenhum se parece com o outro.
        O PINTOR: Efetivamente.
        O RICO SENHOR: Eu sei, não é a primeira vez que eu os observo; eu os observo sempre quando não vejo ninguém, nas minhas horas de premeditação.
        O PINTOR, retornando calmamente ao lugar onde estava antes, sempre com a tela debaixo do braço: Sim, senhor. ( O Rico Senhor limpa as orelhas; o pintor quer limpar um dente, mas desiste, pois:)
        O RICO SENHOR: Eu os vejo do interior... Mas ponha então o seu quadro! e no entanto eles são todos parecidos; ali está todo o mistério da vida... (O pintor mete de novo o quadro debaixo do outro braço, não sabendo onde pô-lo.) Não mude assim o tempo todo o seu quadro de braço, como alguém que  muda o fuzil de ombro.
        O PINTOR: Eu peço desculpas, senhor...
        O RICO SENHOR: Mudar seu quadro de braço como alguém que muda seu fuzil de ombro! Era também uma palavra engraçada! Ha! Ha! Você percebeu isso?
        O PINTOR: Oh, sim! Ha! Ha!
        O RICO SENHOR: Sente-se, meu querido!
        O PINTOR, de novo procurando em vão um assento com os olhos: Sim, senhor.
        O RICO SENHOR: Veja, meu querido amigo, eu tenho vinte anos de Bolsa. Eu joguei, eu ganhei. (Apontando.) Eu tenho telefone. Você ouve? Ele funciona. (Campainha de telefone.) Eu não sei se você está convencido.
        O PINTOR: Sim, senhor.
        O RICO SENHOR: Olha, ainda! (Ele mostra de novo o telefone. Este soa, para.) Mas eu não pretendo convencê-lo  absolutamente. É preciso que isso venha de você mesmo. O que eu dizia? Ah, A Bolsa, isso te torna um homem. A Bolsa é a vida... É preciso escolher.
        O PINTOR: Sim, senhor.
        O RICO SENHOR, soluçando: Eu dormi sobre a palha, meu amigo, no hospital, não importa onde, eu me instruí por meus próprios meios, eu não tive uma verdadeira juventude.        
        (....)
               
1.   Guignolade: situação digna de Guignol, ou seja, de teatro de fantoche.
2.   Auguste (augusto): palhaço de circo.
3.   N.T.: Embora dê a impressão de estar incompleto, é assim que se encontra no original.