domingo, 25 de setembro de 2011

Uma narrativa feita a estocadas



Vida Cachorra (contos)
Autor: Mariel Reis
77 páginas
Usinas de Letras

Por Geraldo Lima

A literatura, quanto mais faca de gume afiado, mais penetra fundo os desvãos da mente. Nesse caso, nos desloca, nos tira do eixo de comodismo, de alienação, de satisfação garantida, e nos obriga a reorientar nossos sentidos. Essa é a literatura que faz com que o ser ultrapasse os limites impostos pelas convenções sociais e desfralde a bandeira da liberdade. É ela que expõe tanto as gangrenas da alma quanto as mazelas sociais. É movimento de dentro pra fora, e vice-versa. É choque. É desconforto. É clarão que ilumina e cega ao mesmo tempo.

É nesse patamar de potencialidade literária que se situa a narrativa de Mariel Reis.  Refiro-me ao seu Vida cachorra, livro de contos publicado pela Usina das Letras, em 2010.  O volume é composto de 12 contos relativamente curtos, alguns, inclusive, podem ser classificados como minicontos.  Cito, como exemplo, Ao modo de Dalton Trevisan, uma verdadeira cápsula de erotismo e agilidade narrativa.  São histórias pontuadas pela violência, pelo sexo explícito, pelo grotesco e pela miséria. São petardos narrativos que nos atingem em cheio e nos deixam incomodados. A recepção do leitor nunca será, com certeza, tranquila, neutra, pois, no universo em que transitam os personagens de Mariel Reis, a vida já tocou o seu limite.

Há uma variedade de temas em Vida cachorra, mas, em quase todas as histórias, a violência está presente. Podemos encontrá-la nas suas mais variadas formas: a violência doméstica, a violência urbana, a violência do fetiche sexual, a violência do Estado contra os menos favorecidos, a violência que emerge com a vingança.   Desses ingredientes, a combinação mais explosiva no livro de Mariel Reis se dá entre violência e sexo. No conto Absolvição, por exemplo, o fato de o protagonista ter transado com a enteada menor de idade provoca a ira e a vingança da esposa. Esta, numa explosão de fúria, esfaqueia o marido e a filha, para ser, em seguida, espancada por ele. É de dentro da prisão que o protagonista conta a sua história ou a sua tragédia familiar. E é aqui que entra a verve irônica e corrosiva de Mariel. Para espanto do leitor, depois de toda a tragédia, de todo o “barraco”, tudo se resolve num ajuste que foge aos padrões de composição familiar da nossa hipócrita sociedade: a bigamia.

Falando assim, posso dar a entender que os personagens de Mariel Reis, em Vida cachorra, são, por natureza, violentos. Que eles, por uma propensão natural, buscam a prática da violência. Na verdade, eles são levados a praticar a violência. É o que acontece, por exemplo, com o protagonista do conto Amor filial: ele está em busca da regeneração, da ressocialização, de desfazer os erros cometidos, mas, ao se ver prejudicado pelos desatinos do irmão com problemas mentais, é levado a agir com extrema violência. “era meu irmão. eu não queria matá-lo. não foi minha culpa. minha mãe é doente da cabeça como o doutor pode ver, não bate bem”, ele confessa ao delegado. Há ainda aqueles que aceitam a violência como parte da sua rotina, como é o caso de Sueli, protagonista do conto homônimo. Ela apanha do gigolô e aceita isso com naturalidade, sem esboçar nenhuma reação. “às vezes ele me bate. não é toda noite, não. só quando não trago dinheiro”, conta ela resignada.

Em alguns contos, há um interlocutor a quem o personagem narra sua trágica história. Não ouvimos a voz desse interlocutor.  Lembra-nos, de certo modo, Riobaldo narrando sua vida aventurosa e repleta de violência a um interlocutor que apenas o escuta. Um senhor da cidade. Aqui o protagonista, em busca de justificativa e explicação para o seu ato violento, dirige-se a um doutor.  Esse doutor ora é o delegado, significando o aprisionamento do personagem, ora é o advogado, de quem o preso espera uma resposta positiva à sua ânsia de liberdade. É através desse monólogo que adentramos a vida do protagonista. É a partir dessa narração desesperada que podemos formar um juízo de valor a respeito do ato praticado por ele e aderir ou não à sua causa.

A opção de Mariel por uma narrativa despida de adornos estilísticos, sem floreios verbais, acentua ainda mais o caráter brutal da existência dos seus personagens. Assim como o universo que ele se propõe retratar, a sua narrativa é dura, seca, cortante. É uma narrativa feita a estocadas. Para isso, o autor faz uso de frases curtas, dispensando o emprego da maiúscula e, na maioria das vezes, de travessão na transcrição da fala dos personagens. Esses recursos tornam a narrativa mais fluente e direta. Nota-se, claramente, a intenção do autor de expor o assunto sem maquiagem. Para um leitor desavisado ou acostumado com narrativas leves, quase sempre na superfície da vida, esse estilo direto, sem meias palavras, pode assustar ou não agradar. Uma coisa, no entanto, esse leitor deve perceber: a consciência do autor de Vida cachorra de que linguagem e realidade se fundem num todo indissociável.

O fato é que não se sai ileso da leitura desse livro de contos de Mariel Reis. Vida cachorra é um soco direto na consciência do leitor. Caso o leitor tenha nervos para avançar na leitura dos contos, coragem suficiente para mergulhar nesse mundo de vidas fragmentadas e experimentar a pulsação da vida nos seus extremos, chegará, sem dúvida, à seguinte conclusão: queiramos ou não, a existência desses personagens que tocam o mais baixo degrau da vida, que experimentam as agruras e os desatinos da vida em sociedade ou em família, passa a povoar a nossa mente. Sairemos à rua, a partir de então, com o olhar mais aguçado para captar a estranha pulsação que permeia a tênue tranquilidade que nos cerca. E, não sem assombro, constatamos, a partir de agora, que a fronteira entre céu e inferno praticamente não existe.


Resenha publicada, originalmente, no site O BULE.

terça-feira, 20 de setembro de 2011

Dois microcontos do meu livro 'Tesselário'


Por trás daquele sorriso 
 
De dentro do sorriso saltaram os ferrinhos comprimindo os dentes. Tarde demais. Ferro contra ferro, língua contra língua, dente contra dente. Saliva, murmúrios. Depois, o abismo, a voz de Deus cada vez mais distante.


Cardume 
 
Sento-me, pernas cruzadas, nesga de carne à mostra: a isca. O mínimo de reputação preservado. Se olhar para mim, fisgo-o — peixe graúdo em meio à miudeza. Deve se debater: o macho surpreendido em sua rotina de caça. Mas devo me manter firme, arrastando-o até aqui só com o arpão do olhar. 


O livro pode ser adquirido no site da editora Multifoco

terça-feira, 13 de setembro de 2011

Do alvor de tesselas multicoloridas ao breu que berra catedrais


Por Denison Mendes

____Tece o mosaicontista ora tesselas imaculadas e transparentes ora o inexpugnável breu. Com maestria tesselária, subverte a natureza das coisas, palavras, espaço e tempo. Chegam ao paroxismo homem-quase, tamanha a capacidade artesã de cinzelar o instante e eternizar imagens.

____O tesselário ama a pedra, o vidro, o mármore, o granito... porque não os vê como tal, ele os enxerga como sujeitos a serem libertos da substância primitiva. Assim o faz Geraldo Lima, no livro Tesselário. O verbo é sua matéria-prima, e o resultado são mosaicos de rara beleza e transcendência.

____Logo de cara, a primeira tessela avisa cuidado. Mulher de organdi prima pela concisão e imagens a cirandear no pensamento. Olhos abertos. Eutanásia suspira em cinco linhas o que se tenta explicar em tratados. Já em Tesselário, que dá nome à obra, sentimos de perto o próprio Geraldo Lima, como se estivéssemos ao seu lado observando a angústia de sua criação.

____Terminada a primeira parte, respire e tome fôlego. Se tiver medo do escuro, acenda a luz. Aviso: não vá pensar que as letrinhas brancas no meio da escuridão são vestais. É breu puro.

____Após a leitura de Tesselário, cerro fileira junto aos leitores de Geraldo Lima. Autor singular e polissêmico, escritor que celebra fractais como se abraçasse o cosmo, a nós todos, os esquecidos e os que virão, infinitamente.


*Denison Mendes é autor do livro Bonsais Atômicos, selo 3x4 (Multifoco/RJ).

sexta-feira, 2 de setembro de 2011

Histórias curtas de tirar o fôlego

 
Título: A segunda sombra
Autor: Carlos Barbosa
92 páginas
Selo 3 x 4, Editora Multifoco

Por Geraldo Lima

Se eu tivesse lido apenas o miniconto Lembranças de viagem, do jornalista e escritor Carlos Barbosa, já teria elementos suficientes para dizer que se trata de um autor com pleno domínio da técnica narrativa e dono de uma sensibilidade ímpar. O referido miniconto faz parte do livro A segunda sombra, de Carlos Barbosa (Selo 3 x 4, Editora Multifoco, 2010). Éle abre a série de 80 textos curtos, que não ultrapassam o limite de uma página, alguns, inclusive, são o que eu chamo de nanocontos: uma história condensada em apenas uma linha. Cito como exemplo: Matou por um copo d’água. Ficou ainda mais sedento (Serial) e Não morreu, mas perdeu o olho (O curioso).

Eu poderia ter fechado o livro, após ter lido o miniconto Lembranças de viagem, e me dado por satisfeito como leitor, pois se trata de um texto maravilhoso, que nos surpreende pela perfeita combinação entre o poético e o trágico, o que torna ainda mais densa a narrativa. Ele lembra, pela crueza da imagem do indivíduo moribundo sendo depenado por curiosos, o conto Uma vela para Dario, de Dalton Trevisan. Poderia ter fechado o livro, mas não o fiz; segui virando as páginas e me deparando com narrativas curtas de tirar o fôlego. É o caso de In supremo, Boca, O nevoeiro, Êxtase, Felícia, Natalício, O réveillon de Sonzin, Sangue quente, Conto de Natal, Um caso comum, A espera, A mudança, O casamento do século, Numa tarde de verão. Alguns desses textos nos fisgam pelo final surpreendente, como é o caso de In supremo, que bem poderia ser classificado como um miniconto de FC carregado de desesperança, e A espera, em que o narrador-personagem nos dá a impressão de estar preparando um ambiente onde reencontrará a amada e a felicidade, mas nos surpreende com uma frase curta e desalentadora: Preparo com zelo a minha queda. Mais tocante que isso impossível. Outros trazem a marca da violência que molda os indivíduos na urbe moderna. Surpreenderam-me, nesse caso, Sangue quente (a violência no trânsito como tema) e Natalício (a miséria gerando revolta e marginalidade). Vez ou outra  Carlos Barbosa injeta, numa narrativa aparentemente séria, que busca explicitar as adversidades do indivíduo na sociedade, um pouco de humor e ironia. Isso acontece, por exemplo, em A mudança (impossível conter o riso enquanto assistimos à mudança se transformar em outra coisa suspeitíssima), O réveillon de Sonzin (um final que acaba com a reputação de qualquer aspirante a bandido) e Conto de Natal (um diálogo cáustico entre marido e esposa, expondo as fissuras da família contemporânea).

A inegável qualidade literária do livro de Carlos Barbosa sustenta-se na habilidade com que o autor lida com uma variedade de temas (frustração amorosa, loucura, violência urbana, questões agrárias, marginalidade, infância pobre, desesperança em relação à humanidade etc.), expondo a alma humana e suas complexidades, e  no manejo de uma linguagem que mescla o poético e o prosaico,  o registro popular da língua  e o culto.  Quando intensifica o aspecto poético da linguagem, o lirismo do texto de Carlos Barbosa mostra-se ainda mais vigoroso e a história amplia o seu sentido. Em alguns textos, inclusive, o caráter poético da linguagem se sobrepõe ao narrativo, apagando as fronteiras entre os gêneros e realçando o mistério, o enigma.

Outros leitores, ao contrário do que aconteceu comigo, poderão ser fisgados  por outros textos de A segunda sombra, o que só deixa evidente a riqueza literária desse belo livro de Carlos Barbosa.