sexta-feira, 23 de dezembro de 2016

Três momentos diante da natureza


Por Geraldo Lima



Os papagaios voltaram, três barulhentos seres verdes pousando ora na palmeira do quintal do vizinho, ora num arbusto perto do nosso muro. Imagino que seja um casal e o outro, sempre à parte, como que banido, alguém que esteja sobrando na história. Mesmo assim dialogam entre si em grande algazarra; só não se pode saber se amigavelmente ou se num embate verbal histérico para amedrontar o oponente. Às vezes dão a impressão de serem pássaros criados em cativeiro postos de repente em liberdade que, por isso mesmo, não se deram conta ainda do imenso risco de continuarem assim tão próximo do habitat dos humanos. Outra hipótese: o solitário seria um filhote, em fase de se virar sozinho na vida, e o casal, os pais tentando encorajá-lo. Ou então, selvagens e em pleno vigor da juventude, tenham vindo até aqui, ao condomínio e adjacências, em busca da antiga área de reprodução da sua espécie. Por azar, talvez daí a gritaria de ira e protesto, deram conosco ocupando esse seu espaço sagrado, nós os seres sempre, sempre invasivos.


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Tenho mantido acesas as luzes do quintal [duas fixadas no muro] como estratégia para manter a horda de insetos entretida longe do interior da casa. Ficam lá, estáticos, abduzidos, grudados na pele rugosa do muro feito uma coleção de espécies raras, dessas de encher os olhos de qualquer entomólogo. Mas há os que, reféns de uma alegria desesperada, esvoaçam desordenados ao redor da lâmpada, e é tão frenético o encanto que não tardam a ir ao chão. 

Das lições, a mais exata e severa: a luz, em demasia, cega e alucina.


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Acordar de manhã e ver o vento vergando a haste das plantas, sacudindo a copa dos arbustos e das árvores imensas, num jeito de festa ou brincadeira, é coisa que me arrebata. Para mim, ele é um desses mistérios maiores do mundo, ainda que a Ciência explique tudo e aqueles de fé digam convictos: é o sopro de Deus. Eu, que tangencio os desertos, apenas contemplo e me encanto.


(Texto publicado, originalmente, no Jornal de Sobradinho)

sexta-feira, 4 de novembro de 2016

Sinfonia matinal

Por Geraldo Lima


O propósito, naquela manhã de setembro, era levantar cedinho para retomar a reescritura do meu romance O vazio está do outro lado. Levantar e não abrir espaço para nenhuma distração, não dar ouvidos a canto algum de sereia. Ir direto ao ponto, incisivo. E assim o fiz, convicto do mais férreo pragmatismo. Mas um gesto, simples e displicente, pode abrir brechas para o sonho e o encanto. E assim foi. Para ventilar o meu local de trabalho com o frescor do ar matinal, abri a porta da sacada. No ato, junto com o vento veio a profusão de cantos de pássaros saltitando na vegetação em frente. Uns nem sei se chamaria de canto, pios, estrídulos, chamados agônicos, desprovidos de ritmo e melodia. Outros, em contraponto, esbanjavam torneios melódicos, obra de fino acabamento artístico, dessas que nos elevam o espírito. Fiquei plantado lá, deixando-me inundar dessa polifonia absoluta. Havia o plano traçado com requintes de organização e labor, mas não havia como arredar pé dali. Como trair aquele momento de pura emoção? Como virar as costas para aquele concerto matinal e me enveredar no matagal de frases e palavras a serem repensadas e ceifadas, fosse o caso? Melhor me deixar vencer pela natureza. Melhor me deixar ali, indo de um canto a outro, em completo devaneio.



(Texto publicado, originalmente, no Jornal de Sobradinho)

terça-feira, 27 de setembro de 2016

Brilhante apresentação da Banda Sinfônica de Sobradinho


 Por Geraldo Lima

Sobradinho tem uma banda sinfônica. Dito assim, isso pode parecer nada, mas, levando-se em conta que o que define bem a alma de um povo é a arte que ele produz, essa declaração ganha uma importância imensa. Falo aqui da Banda Sinfônica de Sobradinho, que poucos conhecem, embora ela exista desde 1979, ano em que iniciou suas atividades como Fanfarra do Complexo Escolar “A” de Sobradinho.  

Fundada pelo incansável maestro José Antônio da Silva Nascimento, hoje aposentado das suas atividades como regente, só em 1994 ela passou à denominação de Banda Sinfônica e estendeu suas atividades à comunidade de Sobradinho. Durante décadas, o maestro Nascimento, como é mais conhecido, regeu a banda e formou gerações de músicos, entre eles a maestrina Elaine Cristina Rodrigues, que recebeu das mãos do mestre a incumbência de manter a banda funcionando. Foi sob a batuta da jovem maestrina, formada pela UnB, que a Banda Sinfônica de Sobradinho presenteou os que foram ao Teatro de Sobradinho, no dia 18 de agosto, com um maravilhoso concerto musical, desses que assistimos e ficamos arrebatados.

O concerto foi irretocável, tanto no que se refere ao repertório escolhido pela regente quanto pela sua execução. Quem lá esteve pôde ouvir música popular brasileira de qualidade (Carinhoso, de José Urcisino da Silva, e Novo Tempo, de Ivan Lins e Vitor Martins), Jazz (Dixieland Festival, de Louis Armstrong), música caribenha (Que rico el mambo, de Pérez Prado), entre outros estilos musicais. O mais impressionante e esperançoso é que entre os componentes da banda havia músicos veteranos (talentos musicais que nela se formaram e, mesmo estudando no exterior ou exercendo outra atividade profissional, continuam se apresentando quando convidados), assim como jovens músicos iniciantes, que não fizeram feio, mostrando que a renovação continua e o futuro da banda, pelo menos nesse quesito, está garantido. Havia também músicos convidados vindos de outros estados, mostrando o caráter fraterno e agregador que só a música pode propiciar.

Apresentada desse jeito, até parece que a existência da Banda Sinfônica de Sobradinho tem sido moleza ao longo do tempo. Apesar de já ter conquistado vários prêmios Brasil afora, como campeã do Concurso Nacional de Bandas nos anos de 2000 e 2004 e campeã do Concurso Regional de Bandas do Distrito Federal entre os anos de 1999 a 2006, ainda sob a regência do maestro Nascimento, a sua manutenção não tem sido fácil. Comprar instrumentos musicais e mantê-los funcionando custa caro, assim como viabilizar o deslocamento de vários músicos para apresentações em outros estados. Nessas horas, caberia ao poder público, ou mesmo ao setor privado, ajudar, mas, em se tratando de Brasil, isso nem sempre acontece. O que se vê prosperar nessa área é quase sempre resultado da dedicação de idealistas e amantes das artes, como foi o caso do maestro Nascimento e, agora, da maestrina Elaine Cristina. O que a nossa Banda Sinfônica precisa para continuar as suas atividades é de apoio financeiro, seja do Estado, seja da iniciativa privada. Precisa também da presença do público nas suas apresentações. E fica aqui uma sugestão: programar apresentações da Banda Sinfônica para alunos da rede pública e da rede privada, para que nossos jovens possam enriquecer-se culturalmente.

(Texto publicado, originalmente, no Jornal de Sobradinho)


sábado, 20 de agosto de 2016

Um poema?

 Por Geraldo Lima

Me deu um rompante à tardezinha hoje e resolvi fazer uns exercícios físicos: me retorci um pouco no solo, estalando articulações e distendendo músculos e nervos, depois dei umas pedaladas na Elíptica – longos 15 minutos –, tudo ao som tocante de Johnny Cash querendo me arrancar do aparelho de ginástica para me jogar na estrada. A cabeça, saturada de Olimpíadas e de ver o Brasil bater na trave sempre, pedia um esvaziar tranquilo e urgente, então fiquei um tempo sentado na biblioteca, com intenção de não fazer nada mesmo, apenas liberando o pensamento para vaguear por regiões ermas.  No entanto, depois de alguns minutos, achei melhor ocupar a mente com algo leve, próximo do riso, da galhofa – peguei o volume com todas as tirinhas do Garfield (presente do meu filho no dia do meu aniversário) e planejei ler pelo menos umas quinze, como venho fazendo todos os dias ao longo desses meses. Li umas dez tirinhas, ri das safadezas do Garfield se atracando com a balança e sacaneando o tolo do Jon, às vezes o tonto do Odie, às vezes o pobre do carteiro, às vezes as aranhas que teimam em descer do teto ou andar sobre a mesa (é sem fim o rol de vítimas desse gato debochado, perverso e simpático ao mesmo tempo), até bater uma sonolência que me obrigou a fechar o volume de tirinhas e ficar alguns minutos de olhos fechados, esperando Morfeu desistir de mim e ir em busca de alguém que estivesse a fim de se embrenhar no mundo dos sonhos antes do escurecer. Parecia que o mais estratégico era ficar mesmo ali sentado sem fazer nada, mal mal olhando pela porta entreaberta, que dá para a sacada e para o longe, um longe que morre nas luzes já acesas lá na Rodovia DF-150 e na BR-020, no vulto dos carros descendo rumo aos condomínios do Grande Colorado e à Fercal. Por um instante isso me deixou satisfeito, porém logo me veio a sensação de inutilidade e perda de tempo, que me obrigou a buscar de novo algo para ler, para ocupar a mente. Peguei o Jornal Rascunho, já com a intenção de ler os poemas de William Stafford, traduzidos por André Caramuru Aubert. Essa poesia falando sobre natureza, uma poesia que brota mesmo da natureza, de dentro dela, que revela os sentimento do poeta a partir desse contato íntimo com árvores, colinas e bichos, suas sensações e desejos mais profundos, esse é o tipo de poesia que eu gostaria de fazer e nunca fiz, o que talvez tenha me levado a me desgostar da minha temática sempre sombria e urbana, até o quase abandono do fazer poético. Essa poesia, como a do brasileiro Leonardo Fróes e a do norte-americano William Stafford, é que me diz muito agora, nesta quadra da minha vida que já declina e pende do galho-tempo. Em seguida, ainda no Rascunho, li um texto do poeta Ademir Assunção. Nesse texto híbrido, o narrador diz estar pensando em transformar o diário num romance. Por fim decide que será mesmo um romance, tudo num estilo que me lembrou muito o do escritor Claudio Parreira, com seu nonsense, seu tom irônico e escrachado. Achei que já havia lido demais e parei, fitando a noite que já dominava a paisagem despovoada de vagalumes e o céu vazio de estrelas cadentes. Minhas vistas alcançavam até as luzes nas cercanias da Torre de TV Digital, mas esse brilho distante me cansou também, empurrando-me para a sensação de angústia e de urgência de registrar esse instante e as sensações que dele emergiam, como legado para um futuro incerto e oco.


(Texto publicado, originalmente, no Jornal de Sobradinho)

segunda-feira, 1 de agosto de 2016

terça-feira, 17 de maio de 2016

Do caminhar alheio ao mundo em volta

                                                       (imagem do Google)
               
Por Geraldo Lima

O celular facilitou, sem dúvida, a comunicação entre as pessoas. Longe vai o tempo em que tínhamos que enfrentar a fila do orelhão quando, fora de casa, precisávamos dar um telefonema. E eram grandes a ansiedade e a angústia quando, tomados de urgência, víamos alguém enfiando uma dezena de fichas telefônicas no aparelho e demorando uma eternidade num bate-papo descontraído. Hoje a realidade é outra: estando na rua, cada um saca o celular e fala durante o tempo que quiser, – ou que durarem os créditos e a bateria.

Só que muitas pessoas, de modo obsessivo, praticamente não largam o telefone celular. O exemplo mais visível dessa nova doença é percebido no hábito de muitas pessoas falarem ao celular enquanto andam. E como falam! Penso que, às vezes, nem falam: fingem falar com alguém.  Seria, em boa parte dos casos, uma maneira de a pessoa evitar o contato com os semelhantes. Uma tática para evitar que alguém se aproxime dela e puxe conversa. Nesse caso, o celular serviria não para estabelecer e facilitar a comunicação entre os indivíduos, mas sim para evitá-la.


Falamos, aqui, de um hábito que já se enraíza na nossa cultura urbana. Um hábito que se origina no surgimento de uma nova tecnologia que alterou, de forma significativa, nossa relação com o espaço e o tempo. Que fez com que o futuro (visto em parte só nos filmes de ficção científica) chegasse mais rápido ao presente. E essa nova cultura funda, indubitavelmente, um novo modo de se estar no mundo: um ficar alheio, durante horas a fio, ao que acontece ao redor.

(Texto publicado, originalmente, no Jornal de Sobradinho)

sábado, 23 de abril de 2016

Este momento histórico


Por Geraldo Lima

Tento escapar do clima ruim que invade todos os domínios do país, que asfixia, angustia, adoece, mas não consigo. Minha consciência lateja e me acorda para o embate. Meu embate é verbal, mas até isso está se tornando impraticável.

Queria ficar sossegado, sem dizer nada, porém minha intuição me mantém ligado, radiografando a realidade e me apontando o absurdo e a falta de visão histórica dos que, tomados pelo patriotismo, vestem a camisa da Seleção Brasileira e pedem a volta dos militares. Há os que têm medo da liberdade e do dinamismo das transformações sociais que libertam da miséria e do abandono milhares de pessoas. Querem manter o status quo e retroceder no tempo. Não sabem que a História, nesse caso, só se repete como farsa?

 O ódio que escapa das bocas vociferantes, destilando preconceitos e intolerância, me assombra e me enche de medo. Viver vai se tornando então um assombro e um omitir-se sempre. Mas o ser não quer viver nas sombras e vem à luz descortinar a vida e afastá-la das trevas. A manhã que se avizinha não pode ser morada do caos e do medo.

A visão afunilada sobre a questão da corrupção no país, focando apenas um partido, não nos conduz à solução definitiva dos problemas da política praticada pelos que se propõem a gerir a coisa pública no Brasil. O gesto tem que ser mais largo, abarcando amplos setores do espectro político nacional. Fora isso é nos mantermos na eterna arena de lobos e raposas.


Só não vê que a Lei está sendo atropelada quem não quer. E se disser que, neste caso, os fins justificam os meios, só posso lamentar pela visão ética torta e enviesada. Daí, tenho absoluta certeza, não sai a paz social nem o fortalecimento da democracia de que tanto precisamos para deixarmos de ser uma “Republica das Bananas” e nos livrarmos definitivamente da pecha de que não somos um país sério. 

(Texto publicado, originalmente, no Jornal de Sobradinho)

sexta-feira, 15 de abril de 2016

Entrevista à TV Senado


Primeira parte da entrevista que dei, a algum tempo atrás, ao extinto Programa Leituras, da Tv Senado.



segunda-feira, 21 de março de 2016

Vida de escritor-agricultor




Por Geraldo Lima 


Os periquitos descobriram nossa plantação de milho. Chegaram, em bando, numa alegria tremenda. Sobrevoaram a área, pousaram no telhado, sondaram o ambiente e depois partiram pra farra. Dei um susto grande neles. Voaram, pousaram na palmeira no quintal do vizinho e ficaram um tempo lá, discutindo o que fazer. Agora, às três da tarde, tenho que largar a leitura ou a escrita para me postar aqui, no fundo do quintal, como um espantalho. 


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É bem mais fácil escrever um poema, um conto, um romance, uma peça de teatro ou um roteiro de cinema do que cultivar uma roça de milho, ou uma simples plantação de milho no fundo do quintal. A natureza, ao mesmo tempo que nos fornece as condições ideais para o cultivo, apresenta também, de modo sistemático, todo tipo de praga capaz de pôr fim ao nosso labor. Aqui, já devo ter contado umas cinco espécies de lagarta atacando impiedosamente os pés de milho. Tento, a todo custo, escapar da ingenuidade e ufanismo de um Policarpo Quaresma, mas luto, contra a bicharada, de mãos vazias, sem agrotóxico. Vou vencendo aos poucos. Se vocês pudessem ver o tamanho dessas belezuras! 

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Avançando aqui na elaboração do meu novo romance. No início estava tudo muito bem planejado, início, meio e fim bem definidos, personagens e ações catalogados, descritos, só esperando o momento de se juntarem à massa narrativa que deveria seguir um curso preciso. Agora, já perto da 50ª página, vou avançando como quem abre clareiras na mata a facão. A cada passo, uma surpresa, um susto, uma nova emoção. Tem personagem que pintou no pedaço e cresceu além da conta, ameaçando levar a história para outro rumo. Era só para fazer uma pontinha e agora quer ficar até o final. Estou tentando segurar as rédeas, me manter na trilha, mas a imaginação vai me arrastando para lugares nunca dantes percorridos. Só sei de uma coisa: escrever é uma aventura; é isso ou então não é nada.

sexta-feira, 5 de fevereiro de 2016

Rejeitos, uma palavra e sua sina

                                                    (imagem do Google)
Por Geraldo Lima

De repente a palavra REJEITOS, feito um monstro de pesadelo, invadiu nosso sono tranquilo, nossa consciência cansada de batalhas vãs, nosso universo cultural saturado de tudo e nada, nosso cotidiano de uma aflição contínua e mórbida. Veio na enxurrada dos acontecimentos imprevistos e indesejados. Saltou dos manuais técnicos das mineradoras e dos órgãos de fiscalização ambiental, dos calhamaços da legislação brasileira, dos discursos vazios e inoperantes, das páginas amarelecidas de jornais e revistas semanais, para o palco do embate verbal que, pelo menos por enquanto, nos lembra da nossa humanidade e do nosso compromisso com a preservação do planeta. 

Então a palavra REJEITOS sempre esteve aí, porém confesso que havia me esquecido da sua existência de coisa nociva e latente, acreditando que uma barragem, por sua musculatura de concreto, rocha e terra, pudesse mantê-la presa ad aeternum. Mas sua presença a partir de agora, sinistra e incômoda, parece-me impossível de ser ignorada, pois sabemos da tragédia que se instala quando ela atinge o pulmão de rios e oceanos.

A palavra REJEITOS camufla em sua semântica as palavras MORTE e DESTRUIÇÃO. Nela a palavra ESTÉRIL encontra um ventre que lhe dá vida e força. É irmã do ESGOTO e da LATRINA. Mistura-se à LAMA em concubinato suspeitíssimo. Não é palavra em que floresçam o sonho e a esperança. No seu espelho opaco não se reflete a “aurora de dedos róseos” de Homero nem o rosto de Diadorim após um dia inteiro de luta e amor inconfesso. Não há limpidez no seu sentido, não há humanidade no seu emprego. Nela cabem coisas como dinheiro e lucro, poder econômico e descaso, exportação e divisas, negócios e frieza, política e corrupção. Nela só não cabem coisas como oxigênio e cardumes de peixe, crianças nadando no remanso e lavadeiras entoando cantos de labor e festa, bichos saciando a sede e humanos se refrescando do calor. Nela não cabe, enfim, a água límpida (doce ou salgada) em que a vida, na sua multiplicidade, cresce em abundância e alegria.  Ela rima (rima pobre, é bem verdade) com DESLEIXO e DEFEITO. Bem poderia ser expulsa de todos os dicionários, mas, em tempos democráticos, não seria de bom-tom uma atitude tão extrema. Então conviveremos com ela, desassossegados sempre? Ou, num gesto de basta, a rejeitamos com tudo que há nela de ferro, alumínio e manganês?  

(Texto publicado, originalmente, na Revista Diversos Afins)