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sexta-feira, 25 de abril de 2014

Trajeto



Por Geraldo Lima

Esperou por ela ali no quarto. 

Esperou que ela entrasse e fosse direto para o banheiro, como era de costume. Ah, sempre com a bexiga cheia, prestes a estourar. Ouviu o baque da porta sendo fechada e em seguida o jato do xixi batendo na água do vaso sanitário. O barulho da descarga, da porta sendo aberta  e, por fim,  o som de passos vindo em direção ao quarto.

Esperou sentado na borda da cama. Mas a espera tornava-se mais longa do que ele desejava. Os passos pareciam fazer um trajeto enorme, como se de repente a casa tivesse triplicado de tamanho. Para aumentar-lhe a ansiedade, ela fez um pequeno desvio e passou primeiro pela cozinha. Havia se esquecido de que, vez ou outra, ela chegava faminta. Cansada e faminta.

Esperou sentado na borda da cama e com o envelope pardo numa das mãos. Ela iria perceber, tão logo passasse pelo vão da porta, que o rosto dele não trazia aquela serenidade de sempre, o sorriso e a alegria por vê-la chegar em casa depois do trabalho. O quadro era outro, turvo e sombrio. 

Esperou sentado na borda da cama até os passos começarem a ressoar como se já estivessem dentro do quarto. O coração deu um salto grande e sufocante, obrigando-o a se pôr de pé. No envelope pardo, as mãos deixavam marcas de suor e nervosismo. Diante dessa imagem desbotada e corrompida pela dor, ela entendeu logo a razão daquele envelope brandido com fúria junto ao seu rosto. 

Balbucio



Por Geraldo Lima

Está diante dela, mas é como se estivesse diante de uma estátua de mármore. De um iceberg. De um monumento erigido à indiferença humana. Não fosse o poder de atração que ela exerce sobre ele, com uma força descomunal, incompreensível até, viraria as costas à sua frieza e partiria sem ao menos dizer adeus.

É um vício, ele pensa, o que me ata a essa mulher. Fraqueza e desapego a mim mesmo. O que era amor, algo que fruía tranquilo, virou doença, praga, infecção, ruína dos sentimentos.

O esforço, que lhe custa muita energia, é para não cair de joelhos aos seus pés. Não se desmanchar em lágrimas também. Curvar-se mais do que já se curvou é renunciar a toda dignidade. Manter-se de pé é ainda um trunfo.  

Vai, no entanto, numa última tentativa, num rasgo de puro desespero, dizer que a ama, que há uma faca rasgando-lhe o peito, um pus alastrando pelo corpo todo. É seu último gesto de entrega, de abandono completo das forças, do brio, da alma, e se lança para fora de si mesmo, íntegro, exposto ao extremo, mas as palavras apenas escorregam pela borda dos lábios e tombam no vazio.

segunda-feira, 10 de maio de 2010


VI. Malês.

Por Geraldo Lima

        Pelas ruas de São Paulo, seguindo-a. Um negro em seu encalço. Assustada? Passos lépidos, ancas envolventes: uma princesa nagô, sem dúvida alguma.
        — Luíza Mahim. Senhora Luíza Mahim!
        Aproveitou a multidão e estacou. Uma princesa nagô, não tenho dúvida.
        — Que merda é essa! Não me chamo Luíza...
        — Mahim... Luíza Mahim, mãe de Luiz Gama...
        Perplexa. Querendo entender e não podendo.
        — Lembra-se dos malês? O Recôncavo Baiano, o quintal da sua casa...
        Já havia virado as costas, aborrecida. Fez assim com uma das mãos, como se dissesse: cada maluco que me aparece.
        Não a segui mais. Que se fosse, desconhecendo quem realmente era. Havia outras. Mais dia menos dia, uma se apresentaria diante de nós, uma princesa nagô:
        — Senhores, é por aqui. Eis o meu quintal... Vamos começar tudo de novo.

(Do livro inédito Tesselário, que será publicado pela Editora Multifoco.)