domingo, 25 de novembro de 2012

Um texto simples e comovente




Por Geraldo Lima

A peça 'Dinossauros', do dramaturgo argentino Santiago Serrano, é de uma simplicidade total: apenas dois atores em cena, um cenário despojado, poucos objetos de cena (um banco de praça, um acordeon, uma sacola, uma garrafa de vinho, talheres), um único foco de luz (sugerindo a luz de um poste), pouca movimentação e diálogos marcados pelo coloquialismo, pelo tom bem natural. Um espetáculo que se sustenta, principalmente, na palavra e na atuação dos atores. Nesse caso, na belíssima atuação do ator Murilo Grossi e da atriz Carmem Moretzsonh, ambos de Brasília e do Grupo Cena. Vale ressaltar, aqui, a segura direção de Guilherme Reis, sem destoar do ritmo que o texto exige.

O que assistimos, em apenas uma hora de duração do espetáculo, é a vida acontecendo, no palco, com expressiva naturalidade: um homem e uma mulher se encontram em algum lugar da cidade, tarde da noite, e, a partir daí, vão se aproximando, dando cabo da solidão e do medo. Tudo isso se dá entre silêncios, risos, tentativas de fuga,  de recuo e de reaproximação. O encontro entre os dois seres urbanos, cada qual com suas cicatrizes e seus sonhos, vai se consolidando aos poucos, num transe lírico (quase dionisíaco num momento), na medida em que vão se desnudando, se revelando, se entregando. O que acontecerá depois, assim que o dia chegar, ninguém sabe: aos dois, fica a certeza de que estão vivendo um momento intenso, que os arranca da solidão e do vazio. Se vai durar, impossível saber. Há a vontade de que dure, e isso já é um começo. Para os espectadores, como ponto de identificação, fica, talvez, a torcida para que continuem juntos, curando-se das suas feridas. Eis aí um texto simples na sua tessitura, mas de significado muito profundo.

Essa montagem da peça de Santiago Serrano, pelo Grupo Cena, já está em cartaz há bastante tempo e foi apresentada em vários locais do Brasil, sempre com muito sucesso.  Aqui em Brasília, voltou a ser encenada e ficou em cartaz, no Teatro Eva Herz da Livraria Cultura, Shopping Iguatemi-Lago Norte, até o dia 25 de novembro.  Para os que não tiveram a oportunidade de assistir a esse belo e comovente espetáculo teatral, fica a torcida para que ele volte a entrar em cartaz de novo.

quinta-feira, 22 de novembro de 2012

A realidade que não queremos


Por Geraldo Lima

A realidade brasileira está cada vez mais assustadora porque a violência parece não ter fim entre nós. O mais assustador ainda é que a capacidade de alguns indivíduos explicitarem sua brutalidade de forma gratuita  tem sido a marca dessa realidade sangrenta e estúpida. E para quem vive na paz, avesso a essas demonstrações de animalidade, o medo é ainda maior, porque os atos de selvageria explodem assim, por coisa banal, numa situação que poderia muito bem ser resolvida sem a presença da força ou da ignorância.

Nem vou falar do que anda acontecendo em São Paulo, onde policiais e civis estão sendo, sistematicamente, assassinados por bandidos. Fico daqui apreensivo e tomado de medo porque meu filho está lá, estudando, e toda essa carnificina parece fora de controle. É a mais cabal demonstração de falência do Estado. A mais nítida prova da incapacidade de gestão dos que se engalfinham de quatro em quatro anos para conquistar o Poder. A justiça brasileira  parece sumir em meio a essa decadência social. Sem exageros, talvez possamos afirmar que  ela é parte importante das causas dessa decadência que aprisiona o cidadão nas redomas do medo e do estresse. Quantos marginais, que deveriam estar atrás das grades, estão soltos por aí, andando livremente pelas ruas? Parece haver um quê de maldade em tudo isso; não é possível que as autoridades não se comovam com essa situação, que não entrem num estado de frenesi e ânsia em busca de uma saída urgente e duradoura para esse caos.

Mas, deixem-me falar sobre dois fatos que ocorreram recentemente aqui, na Capital do país, e que me deixaram ainda mais pessimista quanto ao nosso destino. O primeiro trata-se do espancamento de um jovem por outros jovens ao sair de uma festa no Plano Piloto. O resultado dessa selvageria é que o rapaz foi hospitalizado com ferimentos graves no corpo. O segundo aconteceu nas proximidades de Sobradinho, uma das cidades satélites de Brasília. Após um desentendimento no trânsito, o ocupante de um dos carros sacou um revólver e desferiu alguns disparos na direção do outro veículo, ferindo dois dos seus ocupantes. O absurdo de tudo isso é que, a princípio, nada parecia justificar essa ação brutal do sujeito que fez os disparos. Em outras palavras, um gesto da mais estúpida natureza.

Todos esses são atos de selvageria que fazem parte de um histórico de outros tantos da mesma natureza e que têm maculado a imagem de Brasília. A cena do espancamento  é quase sempre a mesma: jovens de classe média, mais músculos que cérebro,  geralmente moradores do Plano Piloto, em bando (notem aí a proximidade com as feras), agridem outro jovem até aniquilá-lo. A fúria e a covardia são, nesses casos, elementos fora de controle, já que esses indivíduos, apartados do espírito de civilização, agem fora dos limites da razão. O espantoso, nesse caso de agora, é que um dos agressores é estudante de engenharia na UnB.

Fosse um sociólogo, eu diria que está clara a falência desse modelo de sociedade que se erigiu por aqui. Fosse um indivíduo religioso, diria que falta Deus na vida desses jovens. O fato é que talvez falte família, civilidade, educação e cultura que refinem o espírito, que se contraponham à massificação que embrutece e atrofia o cérebro. O que posso dizer é que, como ser pensante, cidadão e pai, estou cada vez mais pessimista e apavorado com toda essa selvageria e a inoperância do Estado brasileiro.  

(Texto publicado, originalmente, no Jornal Opção. )

sábado, 10 de novembro de 2012

Um Arthur Miller de encher os olhos



Por Geraldo Lima

O bom texto teatral, como qualquer obra de arte, é aquele que nos faz penetrar num mundo vasto, do qual só podemos emergir outro. Uma obra assim nos permite perceber as relações humanas nos seus mais diversos matizes, dos conflitos amorosos ao embate político ou ideológico, da amizade mais sincera à traição que sempre aniquila. Vemos o ser humano, nesse caso, em sua plenitude: capaz de mesquinharias e de gestos heroicos. Tomando emprestado o discurso de Nietzsche, humano, demasiado humano, é assim que o vemos. A sua alma vaza pelos poros. Ali, no palco, na figura dos atores e das atrizes, a vida se descortina assustadoramente bela e trágica diante de nós. É para fora do nosso eixo de comodidade que somos arrastados todo o tempo. É nossa consciência que é fustigada sem trégua.

Tudo isso pode ser atribuído à peça que Arthur Miller escreveu após a morte da atriz Marilyn Monroe, com quem foi casado de 1956 a 1961. 'Depois da queda', escrita em 1964, mostra, de modo impiedoso e, às vezes, bem- humorado, o cenário político dos Estados Unidos durante a caça aos comunistas (e aqui o autor dessacraliza também a visão romântica do intelectual engajado), sua relação com a família e, obviamente, com o mito Merilyn Monroe. Arthur Miller não fala diretamente da sua vida. É na figura de Quentin, um advogado bem sucedido, e de Maggie, uma pop star depressiva, que ele traz à tona o seu passado.  É, claramente, uma obra autobiográfica, mas que vai além do expor os percalços amorosos e familiares do autor.

Esta nova montagem da peça do dramaturgo norte-americano, ganhador do Prêmio Pulitzer de 1949, tem direção de Felipe Vidal e conta com a participação de um elenco afinado: Simone Spoladore, por exemplo, se sai muito bem no papel de Maggie/Marilyn Monroe. Lucas Gouvêa (Quentin/Arthur Miller), com memória invejável, leva sua fala ácida e caudalosa de ponta a ponta sem grandes escorregões. Gostei, particularmente, da atuação da atriz Thais Tadesco (Holga, Rose): sensível e ágil na passagem de uma personagem a outra. Repito: o elenco é afinado. E é isso, aliado à qualidade magistral do texto, que faz com que o espectador se mantenha ligado durante as três horas de duração do espetáculo.  A peça fez sua estreia nacional  aqui em Brasília no dia 19 de outubro de 2012, no CCBB (escrevo esta resenha no dia 10 de novembro, um dia antes de ela encerrar sua temporada por estas bandas). Daqui, parte para uma turnê nacional (só não sei se será apresentada apenas em teatros do CCBB).  Fiquem, portanto,  bem atentos, pois este é um espetáculo teatral imperdível.

quinta-feira, 1 de novembro de 2012

Cinco lascas narrativas


Por Geraldo Lima

Horas e horas de oração, de rogo, e o mal avançando, palmo a palmo, quase lhe tocando a alma.

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No desespero, invocou a ajuda de Deus. Esperou, até o último segundo, que Ele desviasse a lâmina do seu corpo.

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A dor é tão intensa, que ela tem de recuar até o passado. Ali, num dia de sol e praia, ela foi de fato feliz.

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Vai esperar por ela até tarde. Abre uma cerveja, liga o televisor, senta-se no sofá. O pensamento armado até os dentes.

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Amola a faca, enrola-a numa folha de jornal e sai disposto a tudo. Mas Deus é que vai guiar-lhe a mão na hora precisa.