terça-feira, 24 de setembro de 2013

Escuro





Por Geraldo Lima

Deus pariu um universo medonho àquela hora da noite. Ao redor, a vegetação semicerrada criando um obstáculo natural e sinistro. Moitas amoitavam-se grávidas de um perigo mortal. Ilhas de escuridão gestavam fantasmas absurdos: mãos esquálidas estendiam-se para me agarrar e me jogar num abismo de onde eu nunca mais sairia.  

Meu corpo estava gelado. O medo trincava meus ossos.  O cricrilar dum grilo, o voo dum morcego, o piar dum pássaro noturno, tudo crescia em horror e pânico. Mas eu tinha que avançar, cruzar aquele trecho de purgação e mistério, até me reencontrar outro numa clareira qualquer.

sexta-feira, 6 de setembro de 2013

Dois minicontos


Por Geraldo Lima


 Dois corpos


Disse-lhe, a voz sumindo no vão seco da garganta:

– Não posso encostar nem o dedo em  você.

Ela fez que não ouviu – ou ouviu, mas ignorou. Aproximou-se mais de mim. Estava tão próxima agora que o seu cheiro batia denso e nítido nas minhas narinas. Eu senti o coração disparar, tomado pela emoção e pelo desejo.

– Não posso. Se eu encostar a mão em você, um tanto assim, tudo desanda. 
Eu perco o rumo de casa, já não vou  mais saber quem sou. Entende por que não posso?

Ela quase roçou o corpo no meu, e seu cheiro adocicado, mistura de ervas e danação, me envolveu num transe sem volta.

Foi tudo tão rápido, tão fora do meu controle: ela pegou a minha mão e a colocou sobre um dos seios – eu sempre quis aquilo, desde o princípio dos tempos!

– Você não devia ter feito isso, meu anjo, foi tudo o que consegui dizer. 
Depois, foi pura consumação: brasa, carvão e cinza.



Odisseu


Estou prestes a adentrar uma região vasta, assustadoramente vasta. Mundo ermo, movediço, imprevisível. A partir daquele ponto ali, onde a luz cega e alucina, meu ser vagará à deriva, entregue aos caprichos da sedução.

Posso, nesse caso, fechar os olhos e tapar os ouvidos, blindando-me contra  o fascínio da beleza e a magia da voz. Poderia, inclusive, fazer meia-volta e retornar daqui, onde sinto ainda a terra, firme e segura, sob meus pés. Poderia. Mas uma força extrema me arrasta para fora de mim. Ah, um deus furioso deve ter me atirado nessa aventura insana, pois nunca alimentei em mim tanto desvario.

Ouço o canto da sereia e avanço despido de razão e prudência.