sexta-feira, 24 de fevereiro de 2012

Festa no céu

 
Por Geraldo Lima

E lá se foi Mestre Teodoro ensinar o sotaque do seu bumba meu boi para anjos, arcanjos, querubins e serafins. Como disse São Pedro para Irene, no poema “Irene no céu”, de Manuel Bandeira, quando ela lhe pede licença para entrar,    – Entra, Irene, você não precisa pedir licença”, assim deve ter dito a Seu Teodoro, vendo-o chegar de chapéu branco de palha, roupa alinhada,  a elegância de sempre, porte de nobre e o ar sereno de quem  se sabe portador de uma ancestralidade e de uma cultura inabaláveis.

Seu Teodoro Freire, para quem não sabe, nasceu no Maranhão, na cidade interiorana de São Vicente de Férrea, onde teve contato, aos oito anos de idade, com as manifestações culturais do bumba meu boi. Em 1962 veio para Brasília e tornou-se funcionário da UnB, e, já em 1963, criou o Centro de Tradições Populares, em Sobradinho (cidade na qual viveu até o fim da sua vida), para divulgar a cultura nordestina. Até o dia da sua morte, que se deu em quinze de janeiro de 2012, esta foi a sua luta: fazer do Bumba meu boi uma festa maranhense no coração do Brasil.

Nunca conversei com Seu Teodoro.  Por timidez ou falta de oportunidade, nunca me aproximei dele para lhe perguntar de onde tirava tanta energia e tanta certeza para levar adiante o seu projeto de divulgar e manter vivo o Bumba meu boi no Planalto Central.  Vi-o sempre a distância. Admirava aquela figura esguia sob o sol, na maioria das vezes com uma pasta debaixo do braço, indo apressado em busca de ajuda para pôr o Boi para dançar.

Tive a oportunidade de ouvi-lo falar certa vez, no Teatro de Sobradinho, durante uma das apresentações do Bumba meu boi. Não queria falar, mas, por insistência da plateia, acabou falando. Sua fala foi uma aula de cidadania e amor à cultura popular. Lamentei, naquele momento, não ver o teatro cheio de jovens. Teria sido uma oportunidade única de lhes mostrar, através da prática de alguém ligado de fato às raízes da cultura brasileira, o quanto é importante conhecer e amar os valores que nos conferem uma identidade cultural própria. 

No mundo globalizado, onde as fronteiras nacionais se rompem para dar passagem, na maioria das vezes, à ação predatória da cultura do país dominante, pessoas como Seu Teodoro Freire (e outras tantas) cumprem o papel de nos manter conscientes da necessidade de se preservar e fazer circular toda a riqueza cultural que nosso país possui. Acima dos modismos, das produções artísticas de gosto duvidoso, feitas apenas para ganhar dinheiro e esvaziar a mente das pessoas, prevalece a força da verdadeira cultura popular. Essa que pulsa na dedicação sem titubeio de mestres como seu Teodoro.

E lá se foi Mestre Teodoro rufar os pandeirões e estalar as matracas na mansidão do céu. O céu, com certeza, depois dessa festa popular, nunca mais será o mesmo.

Evoé, Boi!  

(Texto publicado, originalmente, no Jornal de Sobradinho e no Jornal Opção.)

quinta-feira, 9 de fevereiro de 2012

Ao rés do chão, na urbe



“E quem vem de outro sonho feliz de cidade
Aprende depressa a chamar-te de realidade”
            (Sampa – Caetano Veloso)

Por Geraldo Lima

Uma cidade, vista do vigésimo quarto andar do hotel, é apenas uma maquete animada por mãos infantis ou insanas. Paisagem cinza de prédios e casas que coabitam o mesmo espaço de silêncio e solidão. Seres minúsculos que se movem em todas as direções, ágeis, quase uma mancha colorida que desliza no asfalto ou na calçada sob a ação de um joystick. É só isso e nada mais. Mas tudo muda de tamanho, alma e ritmo quando você desce para a rua e, partindo do cruzamento da Mário Prates com a Martins Fontes, passa em frente à Biblioteca Mário de Andrade, na Rua da Consolação, segue a orientação de um dos guardas que vigia o ir e vir dos transeuntes – Segue o fluxo, diz ele – que descem para a Estação Anhangabaú ou seguem no rumo da Praça Ramos de Azevedo, uma enchente de pessoas inundando as calçadas, e, depois de se extasiar com a arquitetura de estilo eclético do Teatro Municipal e quase vislumbrar ali a sombra dos participantes da Semana de Arte Moderna de 22 por entre os mendigos que transformam as escadarias do Teatro em cama ou banco, você se embrenha no universo amplo e barulhento do Viaduto do Chá, desviando-se de ciganas que caçam crédulos desesperados em pleno passeio, cartomantes e mães de santo à espera de clientes junto à mureta de proteção, de costas para a 9 de Julho, surdas aos ecos da Revolução Constitucionalista de 1932, entregadores de panfletos de propaganda, vendedores de chips da TIM, da Claro e da VIVO aos berros, e ao sair do outro lado, ileso, em frente ao cruzamento do Viaduto do Chá com a Rua Líbero Badaró, adentra sem cerimônia alguma a Praça do Patriarca, aqui ainda não há a concentração maciça de gente que você verá logo em seguida, em ruas de calçamento sem meio-fio,  um pouco mais abaixo da Praça da Sé, onde você se encontra, neste momento, tentando entender a beleza da arquitetura externa da Catedral da Sé (logo, logo você ficará  sabendo através do Google que se trata de um estilo eclético, mas predominando o neogótico, “inspirado nas grandes catedrais medievais europeias”, e que antes dela, da magnífica catedral que a lente da sua câmera digital enquadra tentando abarcar o todo, houve ali, naquele espaço, mais duas igrejas, sendo uma delas em estilo barroco), sim, tentando entender essa beleza arquitetônica em meio à pregação alucinada de evangélicos que tentam converter mendigos, drogados, passantes, malandros, trabalhadores, turistas... bem ali, em frente ao monumento católico, e depois de visitar o interior da Catedral, de se encantar  com a grandiosidade das colunas góticas, feixes de colunas que se alçam até a abóbada de ogivas!, a pompa do altar-mor em mármore carrara, com o colorido dos vitrais,  os nichos abrigando santos de toda ordem, a cúpula renascentista e o órgão de tubos ( o maior órgão de tubos do Brasil!), você descamba para os lados do Pateo do Collegio, onde tudo começou, onde os jesuítas, mais precisamente o Pe. Manuel da Nóbrega e o noviço José de Anchieta, começaram a catequização dos indígenas por estas bandas, enfiando-lhes na mente primitiva o latim clássico, o In nomine Patris, et Filii, et  Spiritus Sancti, Amen, e para provar o que se diz tem logo ali uma estátua de José de Anchieta convertendo a filha do cacique Tibiriçá  e, no interior da Igreja José de Anchieta, duas relíquias: um manto e um fêmur do jesuíta, mandados para Portugal por ordem do Marquês de Pombal e depois devolvidos ao Brasil, mas então você já não está mais aí, almoçou e tomou um cappuccino no Café do Pateo e, quase por descuido, caiu na Rua Barão de Paranapiacaba, mais conhecida como Rua do Ouro, em meio à sanha dos vendedores de joias, –  Aliança de ouro mais barata é aqui!, é o que você ouve enquanto tenta avançar em meio ao emaranhado de mãos que lhe estendem cartões de joalherias, ah, que sorte, você exclamará daqui a pouquinho ao se deparar com um sebo de livros, CD’s e DVD’s na Rua Benjamim Constant (e pensar que você tomou essa rua só para escapar da lábia dos vendedores da Rua do Ouro), satisfação plena e três exemplares raros de livros é o que você carrega ao  pegar a Rua 15 de Novembro bem na hora do almoço, agora o fluxo de pedestres é mais intenso, quase asfixiante, mas você se desvia por entre homens de terno que vêm da Bovespa ou da BM&F ou seguem para o Banco do Estado ou saíram do Palácio da Justiça ou do Primeiro Tribunal de Alçada Civil (você já fotografou todos eles, atraído pela sua arquitetura clássica, solene, eh, você talvez não saiba, mas num desses prédios aí, mais provável que seja no Fórum, trabalha um escritor que, nas horas vagas, escreve contos fantásticos) para almoçar nos restaurantes da redondeza, como este, no Largo do Café, perto duma engraxataria que parece não pertencer a este século, e você avançou até aqui deixando para trás mulheres que desfilam de botas logradouro acima/logradouro abaixo (percebeu como as mulheres desta cidade gostam de usar botas, hein?), artistas de rua que “se viram nos 30” tocando violino, fazendo mágica, cantando repente, fumantes que se exilam em recantos de paredes para satisfazer o vício (como fumam nesta metrópole! Parece que a campanha do Dráuzio Varella contra o tabagismo não sortiu nenhum efeito por aqui), tipos de feições variadas, o oriental, o negro, o branco caucasiano, o mestiço, – como você que tudo absorve numa fome  de coisas antigas (uma fome tão mais incisiva que esta que move as pessoas rumo aos restaurantes e às lanchonetes), formas arquitetônicas que emergem por entre construções modernas, prédios de fachada espelhada, criando um contraste inusitado, quase uma heresia urbana, um choque estético que o arrebata, imagens de séculos tão díspares colidindo ali, diante dos seus olhos de flâneur (um quase João do Rio), como esta edificação secular, no Largo de São Bento, onde a elite educa seus filhos para manter o Poder (essa é a regra do jogo, você já se esqueceu? Aqui era onde ficava a aldeia do cacique Tibiriçá!),  esta quase o faz perder o rumo tal a majestade do seu interior, o tom escuro dos seus móveis, a pintura impressionante que lhe cobre o teto, as imagens sacras que se postam logo acima da cabeça dos fiéis (para você basta a fruição estética?), e os que aqui estão orando, pedindo alguma graça, ou tirando um cochilo (aproveitam-se os bancos das igrejas também para a sesta ou para aliviar o cansaço das pernas) também o impressionam, e foi então que você se desviou de todo esse cenário de elegância clássica e harmonia espiritual para se misturar ao desconexo, ao frenesi, ao caminhar torto, truncado, entre esbarrões e gritaria de pregões na 25 de Março – Camisetas de marca por dez reais! –, mas você se livra desse fuzuê, desse ambiente asfixiante, passa batido pelas lojas de bijuterias e bugigangas made in China e chega, como por milagre, ao Mercado Municipal, de onde você não sairá sem comer um pastel e sem experimentar pelo menos uma das frutas exóticas que se oferecem irresistíveis nas bancas, e por sorte, de onde está sentado, pode ver o boneco de Adoniran Barbosa quieto à mesa, eternamente quieto, enquanto uma das músicas do compositor do Bexiga o faz se mexer na cadeira, ah, depois de tudo isso, desse perambular em êxtase, e depois de retomar o fluxo (ou contrafluxo) da 25 de Março, de fotografar a estátua viva de um Carlitos e a de um Surfista Prateado (eh, custa deixar umas moedas pros caras, meu?), de subir a Ladeira Porto Geral quase pedindo para ser rebocado, e chegar enfim à  Rua São Bento, você já pode dizer que sentiu de fato o pulso, a pulsação, os batimentos cardíacos, a respiração arfante e às vezes ritmada, os odores e as vozes da cidade. Agora sim, parte da alma dela está gravada em sua memória. E seus logradouros e seus habitantes e seus monumentos e suas casas e seus apartamentos e seus arranha-céus e seus automóveis e seus ônibus elétricos e seu metrô...  passam a fazer parte da geografia mais sensível que se desenhou no mais fundo do seu ser. 


Texto publicado, originalmente, no site O BULE.