sexta-feira, 29 de junho de 2012

Universo mental povoado por seres minúsculos



Por Geraldo Lima

O que se pode esperar de uma obra literária é que ela provoque, no mínimo, o estranhamento no leitor, arrancando-o do automatismo da vida ordinária. O leitor que se aventurar na leitura de ‘Notas de Pensamentos Incomuns’, de Anderson Fonseca (Editora Multifoco, 2011), será, com certeza, tocado por esse estranhamento. O livro é composto de minicontos, sem título, e quase sempre narrados em primeira pessoa, ou fragmentos que se articulam como se fizessem parte de uma única história, mas que, ao mesmo tempo, mantêm uma independência em relação ao todo. E esse já é um dado do estranhamento que o livro provoca, pois, ao final, sabemos tratar-se de uma obra cuja tessitura só se completa com a junção de todos esses fragmentos aparentemente autônomos.

E o estranhamento se aprofunda com a presença dos seres minúsculos, bizarros, fantásticos, que povoam o universo ficcional criado por Anderson Fonseca. Tamagotchi, Delírios, Gloeb, Jhungols, Flopers, Dabie-Dabie e Móbile são alguns dos estranhos personagens com os quais o leitor irá se deparar durante a leitura de ‘Notas de pensamentos incomuns’.

Alguns desses seres minúsculos habitam a cabeça (e às vezes dela brotam) ou outras partes do corpo de um quase sempre atormentado narrador-personagem. É o caso de Apple, um “bichano muito interessante, redondo, peludo, amarelo e saboroso” que um dia escapa da cabeça do narrador-personagem: “E para que eu não me esqueça do propósito inevitável da vida, evoluir, Apple agarra-se a certas partes do meu corpo iconoclastas da evolução humana: uma hora está numa das pernas, outra na nuca para que me lembre da coluna vertebral, e noutra sobre a cabeça” (pág. 51). Às vezes esse processo de coabitação é mais radical, e o ser intruso penetra o corpo do narrador-personagem ou interfere na sua capacidade de articular o pensamento. Imagine uma mosca que pousa certo dia na mão do sujeito e, depois de algum tempo, já se encontra morando embaixo da sua pele. Ou seja, ele se torna o seu hospedeiro. Noutro miniconto, uma bactéria começa a interferir nos pensamentos do narrador-personagem. Diz ele: “Faz um tempo que meus pensamentos estão sob a regência de uma bactéria” (pág.85). E para que o leitor não ache que isso seja inverossímil, improvável, o narrador-personagem cita como argumento de apoio a matéria publicada na Scientific American confirmando a existência de uma bactéria capaz de “alterar o estado cognitivo do ser humano”. Mas nem precisava usar esse argumento, pois, desde o início, o leitor terá notado que a narrativa de Anderson Fonseca, nesse ‘Notas de pensamentos incomuns’, dá-se fora dos limites do realismo. O que se vê aí é a mais viva manifestação do fantástico e do absurdo.

E é nesse sentido, dessa forte presença do fantástico e do absurdo, que podemos falar das influências que permeiam essa obra de Anderson Fonseca. É visível o diálogo dessas suas narrativas curtas com a obra de Jorge Luís Borges (estão lá os espelhos que simulam outras realidades ou imagens, os corredores formando labirintos, o espírito de fábula), a de Julio Cortázar (o seres minúsculos e fabulosos lembrando cronópios, famas e esperanças), a de Kafka (a metamorfose, a sujeição do personagem a uma realidade que escapa à sua vontade) e, também, o universo mágico da obra de Escher. Esse, aliás, é citado literalmente numa das narrativas: “É embaraçoso viver numa casa desenhada por Escher, e muito mais embaraçoso saber que ela existe numa folha de papel...” (pág. 73). De tudo isso surge um texto de feições próprias, mas que mantém suas raízes fincadas na tradição que subverte o real.

Mais que qualquer outro mecanismo de forjar realidades, é a imaginação que prevalece nesses textos ficcionais de Anderson Fonseca. É da imaginação do narrador-personagem, do seu pensamento incomum, atormentado, que brotam todas essas notas e todos esses seres e universos perturbadores. E, aqui, o leitor irá se deparar com outro elemento que destoa do normal: o narrador-personagem e o autor fundem-se, aparentemente, numa só pessoa. O autor Anderson Fonseca, à maneira de Borges, se coloca na narrativa. (E os limites entre realidade e fantasia quase que se dissolvem.) Todo esse universo de perturbações e estranhamentos situa-se na sua mente. E diante da sugestão do médico para extirpá-lo (a cura mataria a capacidade criativa do autor), ele escolhe permanecer coabitando com os seres que, muitas das vezes, sugam a sua energia e a sua paz de espírito: “Vendo hoje o meu estado, tenho vontade de esmurrá-lo, lançá-lo para longe dos meus olhos; (...) me apeguei de tal modo a essa pequena criatura inocente, que sacrificá-la seria o mesmo que me destruir”, diz ele sobre Gloeb (pág. 18).  Criador e criatura estão, nesse caso, unidos de maneira indissociável. Criar é, de certa maneira, deixar-se habitar pela existência do ser criado. E o leitor que se aventurou por esses estranhos mundos criados por Anderson Fonseca não escapará ileso: os minúsculos seres que pululam na mente do autor, ou do narrador-personagem, passam a habitar também agora a sua imaginação.    

Notas de pensamentos incomuns
1ª edição
Autor: Anderson Fonseca
85 páginas
ISBN: 978-85-7961-4
Editora Multifoco

domingo, 24 de junho de 2012

A ponte


Por Geraldo Lima

A rajada de vento apanhou a folha de papel jogada sobre a ponte e a transportou numa viagem desengonçada por sobre as águas do rio. A mulher acompanhou a trajetória da folha até não avistá-la mais, talvez tenha caído na água e se dissolvido toda, pensou. E no mesmo instante desejou ser aquela folha de papel e ser arrastada pelo vento. Ser, enfim, arremessada contra uma superfície sólida ou líquida e desaparecer inteira.

Quando pequena, ela já sentia a vertigem de se imaginar jogando ali de cima da ponte. O corpo, como um tronco de árvore podre, flutuava por alguns instantes e depois era arrastado violentamente pela força da gravidade. Sua imaginação febril agia com tanta perfeição que ela podia ouvir o som da água se esparramando toda em ondas concêntricas assim que o corpo a tocava.

Uma árvore de tronco podre, é assim que se sente agora. E está prestes a romper com as raízes e tombar no vazio. Só espera a próxima rajada de vento colhê-la sem aviso e delicadeza.    

domingo, 10 de junho de 2012

Dobras



Por Geraldo Lima

Dobra 5.

Aqui, nesta ruazinha, as pessoas andam com mais vagar, olhando atentas as vitrines das pouquíssimas lojas.  São ainda pessoas desconhecidas, saindo da cartola de um mágico invisível. Suas vestes revelam um passado distante, que ele conhece apenas de livros e revistas.

Estava se afastando, cada vez mais, do ponto de origem ou estava, na verdade, aproximando-se dele?

Lembra-se vagamente de ter ouvido uma voz enquanto deixava a casa e seu burburinho. A voz pedia, implorava, na verdade, para que ele não demorasse, para que não se desviasse pelo caminho e sumisse como das outras vezes. Ouvira, entretanto, algo que ele não havia entendido. A pessoa, talvez sua mãe, dissera algo mais ou menos assim: Seu corpo não pode viver sem você.  Sim, sim, eu ouvi essa frase, quase grita, tentando chamar a atenção dos transeuntes. Ninguém, no entanto, abandona o andar distraído para lhe dar atenção.  Lembra-se de ter dito algo assim como: Só vou ver onde os homens estão. Crê que os homens sejam aqueles que conversavam na varanda, gargalhando no mais completo desrespeito ao morto, — caso fosse mesmo um morto que se encontrava lá, no centro da sala, em  exposição.

A seqüência de ações era ainda nítida em sua mente: abriu o portão, desceu três ou cinco degraus, tocou a calçada e a rua infinita desdobrou-se ante os seus olhos, mais adiante outra e outra e outra... 

Perguntava-se agora: Estou indo para algum lugar específico? Este meu caminhar de rua em rua, de ermo em ermo, de mundo em mundo tem algum destino certo? Sabia, com absoluta certeza, que não estava indo atrás dos homens (os que, supostamente, teriam saído para beber e jogar sinuca), mesmo porque já não sabia quem eram esses homens e se seria possível identificá-los agora. 

Cansado de seguir em linha reta, entra numa das lojas, cheia de quinquilharias, e vai avançando em ziguezague. A loja parece não ter fim. Uma galáxia inteira de bugigangas. Um universo que se dilata segundo a segundo. Olha para trás e não vê mais a porta por onde entrou. Então, avança, e continua a avançar, mesmo sem saber aonde vai chegar. Avança porque sabe, no íntimo, que isso não tem mais fim.   

quinta-feira, 7 de junho de 2012

Dobras



Por Geraldo Lima

Dobra 4.
        
Sobre sua cabeça, um enxame de naves espaciais indo e vindo. Embaixo, um frenesi de seres bizarros, uma multidão que se desloca em todas as direções.  Ele também se desloca, pois sabe que é só mais um entre os estranhos.

O barulho estridente de uma sirene, vindo talvez no encalço de alguém, o faz, instintivamente, acelerar o passo, esquivando-se entre os transeuntes, sem que, em momento algum, esbarre em alguém.

Agora parece estar em fuga e nem sabe por quê. Seu corpo, leve como uma pluma, foi impelido para frente só com o impulso do medo. Mas, medo de quê? Seria preciso parar e refletir sobre esse gesto instintivo, próprio de um animal selvagem fora do habitat. Procura no corpo algum dispositivo que possa ter sido acionado automaticamente, apenas com a alteração dos batimentos cardíacos, mas nada encontra. Talvez um chip implantado no cérebro seja o responsável por esse gesto brusco, instintivo, mas como ter certeza agora? Há tantas possibilidades. O dispositivo que o impeliu a fugir pode estar coberto por camadas e camadas de acontecimentos e seria humanamente impossível chegar até ele.  Pode ser algo de muito errado que ele tenha feito e, para se autopreservar, tenha esquecido numa das muitas dobras do tempo.  Algo que tenha a ver, inclusive, com a menina de penugem dourada.   

Absurdo continuar fugindo assim, quando o perseguido pode ser um mutante ou um humano qualquer, um desses delinqüentes que aparecem em todas as épocas.

Freada brusca de dois carros na esquina, imprecações, fúria de buzinas. Um dos carros acelera, canta pneu e sai alucinado. De repente, um misto de loucura e sonho envolve este princípio de noite. Seria preciso se refugiar em algum lugar para escapar deste pandemônio? 

Gira sobre si mesmo tentando encontrar uma saída e só então percebe que está em outra rua, em outro tempo, que dobrou uma esquina, atravessou para outra calçada e segue rumo ao sul, —  como se, indo para o  sul, fosse encontrar um lugar seguro.

        (Continua...)

domingo, 3 de junho de 2012

Dobras



  
Por Geraldo Lima
 
Dobra 3.

Súbito, uma voz lhe chama de dentro desse buraco aberto no espaço-tempo. Uma voz imperiosa. Um raio-frásico penetrando seus ouvidos. Lascas de palavras vindo de longe, do princípio de tudo, quando os Céus e a Terra se confundiam numa coisa só e a escuridão lhes servia de veste.  Um mistério. Um plano que se abre diante dos seus olhos e não aponta direção alguma.

Volta-se assustado, o corpo-alma varrido por calafrios, como se um fantasma invocasse seu nome de dentro de uma névoa densa e gélida.

De novo, a voz imperiosa vindo do nada.

Dá um giro de 360º. Uma varredura completa num raio de  trezentos metros. Nada. Apenas o plano alvo, regular, como a superfície de uma mesa. Anda. Tenta, na verdade, escapar dessa voz que o busca no ermo. Encontrasse uma árvore, uma pedra, um buraco que lhe servissem de esconderijo, tudo se resolveria, estaria a salvo.

O que queres de mim?, quis indagar, mas as palavras estavam congeladas na garganta. 

Teria sido Deus — como se chamasse por entre as nuvens: Abraão! Abraão! — o autor desse chamado longínquo, misterioso? Mas, com que propósito? Alertá-lo sobre o fim do mundo? Elegê-lo  o novo Noé? Devia ter parado, ouvido e se curvado, mas o pavor o levou para longe.

Talvez fosse apenas o morto que, dando pela sua falta, quisesse chamá-lo de volta. Pode ser também que o vazio provoque algum tipo de alucinação e a pessoa acaba tendo a impressão de que alguém a chama de dentro do nada.

O plano estende-se a perder de vista, um mundo sem bordas, sem limites. Seria ali a sua morada a partir de então? Seria isso o que chamam de “morada eterna”? Fatigado de tentar se esconder e não encontrar abrigo, senta-se num ponto qualquer e, logo em seguida, adormece. 

    (Continua...)