terça-feira, 15 de dezembro de 2015

A realidade implacável


Por Geraldo Lima


Então você pensa, vou passar pelo menos um mês sem me deixar abater pela realidade brutal e cinza em que vivemos. Você pensa e age da única maneira que lhe parece possível – alienando-se. E para se alienar assim (um estágio de desintoxicação do veneno que nos entra mente adentro todos os dias, você justifica), deixa de ler os jornais impressos e on-line, de assistir ao noticiário televisivo e de ouvir os programas jornalísticos das rádios. A violência cessa momentaneamente. A fome desaparece da face da Terra num segundo. A corrupção (à esquerda, ao centro e à direita) não deixa rastro nem catinga. Todos os protestos, seja de que natureza for, calam-se. Não se ouvem mais as asneiras ditas por âncoras e comentaristas nos telejornais. A realidade, como num passe de mágica, suaviza-se como se nunca houvesse sido deformada pela rugosidade da alma humana.

A sensação de paz e saúde mental parece que vai durar para sempre. E você deseja de fato, do mais fundo do ser, que ela dure para sempre. Mas tudo (você logo descobre) é ilusão. Ninguém pode estar protegido, em sua redoma de vidro ou aço, contra os desencantos da realidade.

E essa tão desejada imunidade à realidade brutal dura até o momento em que você vê o BOPE agredindo e prendendo professores no Eixão Sul, em Brasília, durante um protesto da categoria em greve. A imagem é tão chocante que você sucumbe à força do pessimismo: depois dessa violência contra os educadores, todas as esperanças de que o país sairá da lama do atraso através da Educação estão mortas. Chegamos ao fundo do poço, você conclui, e procura voltar correndo para sua redoma. Mas antes que você chegue, outra tragédia barra a sua passagem – a lama que invade os arredores de Mariana, destruindo casas, meio ambiente e vidas humanas.

O rompimento de duas barragens de rejeitos da mineradora Samarco leva destruição e pânico ao distrito de Bento Rodrigues, em Mariana, na Região Central de Minas Gerais, é o que dizem as manchetes dos jornais, e por mais que você se esquive, as palavras sujas de lama e morte batem direto na sua cara e na sua consciência. Diante das imagens de destruição e desespero, seu coração se comprime de dor e impotência ao mesmo tempo. Como se isso não bastasse, constatam, dias depois, que o Rio Doce está oficialmente morto. Com esse nome, que nos acaricia a alma e o paladar, o destino que a ambição dos homens lhe reservou nos soa ainda mais amargo. A notícia de que mais um rio está morto, neste cenário de crescente escassez de água que aflige o planeta, é de nos deixar apavorados.

Então você se indaga, Ainda posso usufruir da tranquilidade da minha redoma de silêncio e paz? E como acha que sim, vai à sua procura o mais rápido possível. Só que a realidade brutal e tosca intercepta, mais uma vez, os seus passos. Você não pode mesmo fechar os olhos nem tapar os ouvidos aos tiros e explosões detonados na capital francesa. O espetáculo é de horror e tragédia. Outra vez, dez meses após o atentado ao jornal Charlie Hebdo, militantes do Estado Islâmico aterrorizam a Cidade Luz, mergulhando-a nas trevas do terror.  Paris é, nesse momento, apenas dor e medo. E aí você percebe que está longe, muito, muito longe da sua ilusória redoma de alienação e saúde mental.  A realidade, banhada em lama tóxica e sangue de inocentes, não lhe dá trégua nem chance de se manter alheio à sua dinâmica pesada e sinistra.

domingo, 13 de dezembro de 2015

Sobre a poesia de Muna Ahmad


Por Geraldo Lima

Muna Ahmad escreve há bastante tempo, mas ainda não teve a oportunidade de apresentar sua poesia a um número maior de leitores. Agora, com este livro de estreia, em que ela reúne sua produção de longa data, podemos, enfim, ter acesso à sua sensibilidade poética e ao seu domínio técnico da arte da palavra.

Nos cinquenta poemas que compõem o livro, na sua maioria curtos, – alguns são haicais e outros com  influência  da Geração Mimeógrafo ou Poesia Marginal da década de 70 ­– podemos nos deparar com registros líricos de cenas do cotidiano (“de manhã cabelos deixados na pia/bordam o branco de nossa convivência”), fragmentos de memória (“Ataliba Nina e Mimi,/subir e descer nas pernas do ‘m’/ mão vacilante/afundando o grafite/ no terror da página em branco”), referências ao Oriente Médio (“céu aberto/cáfila silenciosa/cruza o deserto”) até a simples descrição enumerativa de uma paisagem (“parafuso margarida pneu/abandono magnético/folhas na relva”). Embora marcados, essencialmente, pela emoção, pelo lirismo, nada aí chega ao transbordamento romântico. O uso da justaposição ou parataxe na composição de boa parte dos poemas inibe, de certo modo, o tom discursivo ou retórico e exige que o leitor participe da montagem final do texto em busca de um significado. Esse leitor, num poema como “jardim”, por exemplo, será ainda surpreendido por um instantâneo de haicai, de clique de máquina fotográfica, de pincelada impressionista.     

Ao escolher uma palavra de origem árabe para dar título ao seu livro, Muna pode nos dar a entender que o território afetivo em que sua poesia transita ou habita se circunscreve apenas ao mundo islâmico, mas, ao lermos seus poemas, essa impressão logo se desfaz. Sua ascendência árabe tem presença forte neles, mas a cultura brasileira e a nossa paisagem também se destacam ao longo do livro. Filha de pai palestino e mãe brasileira, suas raízes afetivas e culturais estão, de fato, fincadas em dois mundos.


Seus poemas, assim como o título do livro sugere (Muxarabi significa “muro de concreto em forma de arabesco que filtra a luz”), filtram a emoção e a percepção da realidade de modo que a força do seu lirismo inunde a alma do leitor com delicadeza e intensidade ao mesmo tempo. É poesia que, após sua leitura, reverbera em nossa mente.  É poesia que, na sua aparente simplicidade, dialoga com a tradição e conecta-se, pela intertextualidade, com outros textos, como em Penélope: “teceu os dias/ele não veio/queimou o cinema”. Daí o convite, mais que urgente, à leitura desses poemas de Muna Ahmad.