sexta-feira, 4 de novembro de 2016

Sinfonia matinal

Por Geraldo Lima


O propósito, naquela manhã de setembro, era levantar cedinho para retomar a reescritura do meu romance O vazio está do outro lado. Levantar e não abrir espaço para nenhuma distração, não dar ouvidos a canto algum de sereia. Ir direto ao ponto, incisivo. E assim o fiz, convicto do mais férreo pragmatismo. Mas um gesto, simples e displicente, pode abrir brechas para o sonho e o encanto. E assim foi. Para ventilar o meu local de trabalho com o frescor do ar matinal, abri a porta da sacada. No ato, junto com o vento veio a profusão de cantos de pássaros saltitando na vegetação em frente. Uns nem sei se chamaria de canto, pios, estrídulos, chamados agônicos, desprovidos de ritmo e melodia. Outros, em contraponto, esbanjavam torneios melódicos, obra de fino acabamento artístico, dessas que nos elevam o espírito. Fiquei plantado lá, deixando-me inundar dessa polifonia absoluta. Havia o plano traçado com requintes de organização e labor, mas não havia como arredar pé dali. Como trair aquele momento de pura emoção? Como virar as costas para aquele concerto matinal e me enveredar no matagal de frases e palavras a serem repensadas e ceifadas, fosse o caso? Melhor me deixar vencer pela natureza. Melhor me deixar ali, indo de um canto a outro, em completo devaneio.



(Texto publicado, originalmente, no Jornal de Sobradinho)