terça-feira, 27 de outubro de 2009

microconto


mistério


                                    geraldo  lima

Primeiro ouvimos um grito. Depois, dois estampidos.
Só um cão latiu varado de susto.
E nada mais.
O silêncio vestiu a noite.

um poema de paulo kauim


1983


o homem em mim
começa não pela cabeça
não pela conta bancária


o homem em mim
começa pela bala
começa pelo comício

o homem
em mim
se dispara


(Este poema faz parte do livro Demorô, publicado pela Thesaurus Editora)

sábado, 10 de outubro de 2009

ESSA GENTE SEM EIRA NEM BEIRA

Geraldo Lima

Do outro lado da rua, bem em frente à janela do meu apartamento, alguns pés-inchados arrancharam embaixo de uma árvore. Levaram para lá o que sobrou de dois sofás velhos – com certeza, fedorentos -– e outros cacarecos. Até uma bandeira dos sem-terra tremulava num dos galhos – digo “tremulava” porque a polícia baixou lá com um camburão, um trator e os despejou da casa improvisada. Que intenção eles tinham ao colocar a bandeira do MST ali é que me aguça a curiosidade. Em suas mentes ébrias passariam ainda arroubos revolucionários? Que utopia almejam movidos pelo álcool e pelo ócio?

Quem escreveu um texto magistral sobre esses tipos sem eira nem beira foi o contista curitibano Dalton Trevisan. No conto Cemitério de elefantes, que dá título ao livro, um grupo de bebuns passa o dia próximo a um rio catando e comendo ingá, ou então pedindo aos pescadores algum peixe. O conto se inicia assim: “À margem esquerda do rio Belém, nos fundos do mercado de peixe, ergue-se o velho ingazeiro – ali os bêbados são felizes”. O autor os caracteriza como elefantes que saem “arrastando os pesados pés” em busca de comida. No grupo de bebuns que estava arranchado em frente ao meu apartamento há um sujeito que anda assim, arrastando os pés como um elefante ferido. O Gilson, o mais conhecido do grupo, já esteve até em cadeira de rodas. Andava pra cima e pra baixo empurrado por um dos companheiros de pinga e cirrose. Um belo dia, como num desses anunciados milagres das igrejas pentecostais, apareceu andando como se nunca tivesse dependido de uma cadeira de rodas. Hoje voltou a depender de um carrinho de supermercado que lhe serve de andador.

No conto do Dalton, a comunidade local até adotou os bêbados e “os considera animais sagrados, provê às suas necessidades de cachaça e pirão”. De certa maneira, eles estão integrados à rotina da cidade. Fazem parte da sua paisagem. Em outras palavras: todos se acostumaram com a presença daquelas vidas em lenta decomposição. Não sei se este é caso dos nossos pés-inchados. Há tempos circulam pela Quadra 14, mudando só o lugar de dormir. (Agora mesmo, no momento em que escrevo esta crônica, estão arranchados embaixo de uma árvore que cresceu ao lado da grade do prédio onde moro.) Fazem parte da paisagem. Nós nos acostumamos com eles. Por que foram então despejados? Creio que, pela algazarra que faziam, tenham passado dos limites e incomodado a vizinhança. Daí o camburão, o trator, enfim, a força policial.

Quando eu tinha meus vinte anos de idade, escrevi uma peça de teatro intitulada “No gargalo”. Nessa peça, um grupo de pés-inchados tentava livrar-se do assédio de um PM que queria, por todos os meios, tirar-lhes a garrafa de pinga. Era o finzinho da ditadura e tinha eu, na prepotência da juventude, a intenção de provocar o regime moribundo. O engraçado é que não havia ainda, naquele tempo, esses grupos de bêbados acabando-se cotidianamente no álcool ( só tempos depois, já morando em Sobradinho, é que fui me deparar com essa realidade). De onde me veio então a inspiração para escrever a peça? Veio-me de um casal de bêbados que andava pelas ruas de Planaltina, entrando nos bares para pedir pinga. A mulher, apelidada de “29” (nome de uma das cachaças mais populares da época), é que mandava. O marido apenas a seguia obediente. (Soube que ela, tempos depois, surtou e tirou a roupa em plena rua.) Há alguns anos escrevi um conto em que um pé-inchado vai tombando pela rua até sucumbir de vez embaixo de uma árvore. Já puderam observar minha fixação por esse tema da vida que se degrada pela ação do álcool. A presença desses seres decadentes, à margem de tudo, tem me acompanhado desde que me propus a difícil tarefa de ser escritor. Penso que a vida é algo muito frágil, e todos nós estamos sujeitos a essa lenta queda no nada.

(Texto publicado originalmente no Jornal de Sobradinho)

sábado, 3 de outubro de 2009

CONTO Nº 01, DE EUGÈNE IONESCO

Tradução:Geraldo Lima



Josette já é uma menininha bem crescida, ela tem trinta e três meses. Uma manhã, como de costume, ela avança com seus passinhos até a porta do quarto dos seus pais. Ela tenta empurrar a porta, tenta abri-la, como se fosse um cachorrinho. Ela perde a paciência, chama, e isso acorda os seus pais, que fazem de conta que não estão ouvindo.

Nesse dia, seu papai e sua mamãe estavam muito cansados. Na véspera, eles tinham ido ao teatro, ao restaurante; depois do restaurante, ao teatro de marionetes. Agora, eles estavam com muita preguiça. E isso não é bonito para os pais!...

A empregada também perde a paciência. Ela abre a porta do quarto e diz: “Bom-dia, senhora, bom-dia, senhor, aqui está o seu jornal da manhã, aqui está a correspondência que os senhores receberam, aqui está seu café com leite adoçado, aqui está seu suco de frutas, aqui estão seus croiassants, aqui está seu pão torrado, aqui está sua manteiga, aqui está seu doce de laranja, aqui está sua geleia de morango, aqui está seu ovo estrelado, aqui está o presunto e aqui está a sua filhinha.”

Os pais estavam enjoados, pois eu esqueci de dizer que, após o teatro de marionetes, eles ainda tinham ido ao restaurante. Os pais não querem beber o café com leite, eles não querem o pão torrado, eles não querem os croissants, eles não querem o presunto, eles não querem o ovo estrelado, eles não querem o doce de laranja, eles não querem seu suco de frutas, eles não querem também a geleia de morango (não era mesmo de morango, era de laranja).

— Dê tudo isso a Josette, diz o papai à empregada, e quando ela tiver terminado, traga-a de volta.

A empregada pega a criança nos braços. Josette berra. Mas como ela é gulosa, ela se consola comendo na cozinha: o doce da mamãe, a geleia do papai, os coissants dos dois; ela bebe o suco de frutas.

— Oh! que apetite de ogro! diz a empregada. Você tem o olho maior que a barriga!...

E para que a criança não fique doente, é a empregada que bebe o café com leite, come o ovo estrelado, o presunto, e também o arroz-doce que havia sobrado da noite anterior.

Durante esse tempo, o papai e a mamãe adormecem de novo e roncam. Mas não por longo tempo. A empregada leva de volta Josette ao quarto deles.

— Papai!... diz Josette, Jacqueline (esse é o nome da empregada), Jacqueline comeu o seu presunto.

— Não faz mal, diz o pai.

— Papai, diz Josette, conte uma história para mim.

E enquanto a mamãe dorme, pois ela está muito cansada por ter se divertido tanto, o papai conta uma história para Josette.

— Tinha uma vez uma menininha que se chamava Jacqueline.

— Como Jacqueline? pergunta Josette.

— Sim, diz o papai, mas não era Jacqueline. Jacqueline era uma criança.

Ela tinha uma mamãe que se chamava senhora Jacqueline. O papai da pequena Jacqueline se chamava senhor Jacqueline. A pequena Jacqueline tinha duas irmãs que se chamavam Jacqueline, e dois priminhos que se chamavam Jacqueline e uma tia e um tio que se chamavam Jacqueline.

O tio e a tia, que se chamavam Jacqueline, tinham dois amigos que se chamavam senhor e senhora Jacqueline, e eles tinham uma filhinha que se chamava Jacqueline, e um garotinho que se chamava Jacqueline, e a filhinha tinha umas bonecas, três bonecas, que se chamavam: Jacqueline, Jacqueline, e Jacqueline. O garotinho tinha um coleguinha que se chamava Jacqueline, e cavalos de madeira que se chamavam Jacqueline, e soldadinhos de chumbo que se chamavam Jacqueline.

Um dia, a pequena Jacqueline, com seu papai Jacqueline, seu irmãozinho Jacqueline, sua mamãe Jacqueline, vai ao bosque de Boulogne. Lá, eles encontram seus amigos Jacqueline com a filhinha Jacqueline, com o filho Jacqueline, com os soldadinhos de chumbo Jacqueline, com as bonecas Jacqueline, Jacqueline, e Jacqueline.

Enquanto o papai conta essas histórias para a pequena Josette, entra a empregada. Ela diz: “O senhor vai deixar essa menina louca!....”

Josette diz à empregada: “Jacqueline, nós vamos ao mercado?” (pois como eu disse, a empregada se chamava também Jacqueline).

Josette vai fazer as compras com a empregada.

O papai e a mamãe dormem de novo, pois eles estavam muito cansados, eles tinham ido, na véspera, ao restaurante, ao teatro, ainda ao restaurante, ao teatro de marionetes, depois ainda ao restaurante.

Josette entra numa loja com a empregada e lá ela encontra uma menininha que estava com os pais. Josette pergunta à menininha:

— Você quer brincar comigo? Como você se chama?

— Eu me chamo Jacqueline, responde a menininha.

— Eu sei, diz Josette, seu papai se chama Jacqueline, seu irmãozinho se chama Jacqueline, sua boneca se chama Jacqueline, seu vovô se chama Jacqueline, seu cavalo de madeira se chama Jacqueline, sua casa se chama Jacqueline, seu potinho se chama Jacqueline....

Então, o dono da loja, a esposa do dono da loja, a mamãe da outra menininha, todos os clientes que estavam na loja voltaram-se para Josette e fitaram-na com os olhos cheios de espanto. “Não é nada, diz tranquilamente a empregada, não se preocupem, são as histórias idiotas que o seu pai lhe conta.”



(Eugène Ionesco nasceu em 26.11.1909 (Slatina, Romênia) e faleceu em 28.03.1994 (Paris, França). Escritor e dramaturgo. Autor da peça A Cantora Careca, considerada marco inicial do Teatro do Absurdo.)
Texto publicado, originalmente, na revista eletrônica Famigerado.

BAQUE UMA SARAIVADA DE METÁFORAS

Joel Pires

Uma passagem bíblica se refere aos discípulos de Cristo como o “sal da terra”. A boa literatura também é assim. É o que dá gosto. É o que faz a diferença. É o que instiga os sentidos. Assim é o livro “Baque”, de Geraldo Lima, conhecido escritor da cidade de Sobradinho, que já faz parte do cenário literário nacional. Trata-se de uma obra impressionante, cuja leitura se torna indispensável a todos os que se inquietam diante das perplexidades da vida.

A metáfora também é como o sal. Sem ela, não há literatura. Tudo se torna insosso. Navegando pela internet e folheando livros à procura de um bom conceito para metáfora – o que é difícil –, encontrei uma aproximação do que seria essa figura de linguagem: “a metáfora se comunica com os dois lados de nosso cérebro. O termo é compreendido literalmente pelo lado esquerdo, associado à mente consciente, lógica e racional, onde se encontram as estruturas corticais responsáveis pelo processamento da linguagem. Ao mesmo tempo, é percebido, em seu sentido figurado, pelo lado direito, associado à mente inconsciente, intuitiva, criativa, emocional”.

Embora seja interessante, não aceito muito bem essa compartimentalização. O certo é que o cérebro é uma unidade complexa e, assim como no mundo externo, acredito, tudo está interligado. A leitura de Baque não divide os hemisférios cerebrais, mas provoca uma estranha sensação. E isso é bom. É o que os teóricos da literatura chamam de “estranhamento”, cuja tentativa de definição seria o efeito criado pela obra de arte literária para nos distanciar em relação ao modo comum como apreendemos o mundo – uma desautomatização –, ou, no dizer de Bertolt Brecht, uma desalienação.

Assim, ninguém permanece incólume ao fenômeno literário. Somos, inconscientemente, convidados à mudança. O efeito catártico da leitura dos contos do livro citado nos leva a uma consciência de nossa verdadeira dimensão. E isso não é bom ou ruim, é necessário. É semelhante a quando acordamos de um pesadelo e respiramos aliviados. Ou quando retornamos de viagem com muitas saudades de casa. Passamos a vislumbrar outras alternativas, outras possibilidades. Mas, para isso, é necessário percorrer os caminhos subterrâneos da mente. Baque foi a gota d’água – como sugere a capa –, “a bola que achou de cair no meu quintal”. E tive de rebatê-la. Agora é sua vez.


Joel Pires é professor de língua Portuguesa e Psicopedagogo.