Geraldo Lima
“Nevermore” — Edgar Allan Poe.
A casa estava um abandono só. Helena, que durante oito anos governara a casa e a vida dele, havia partido há cinco meses. Desde então, o desleixo havia tomado posse de cada cômodo. Reinava sobre todos os móveis, ocultando-os sob uma densa camada de poeira. A empregada, alegando saudades da família e da terra natal, seguira os passos da patroa uma semana depois, deixando-o entregue aos próprios devaneios. À própria sorte. Aos desígnios dos deuses.
Precisava se reerguer, se recompor, se reencontrar, mas adiava sempre. A imagem de Helena era ainda muito viva em sua memória. Reinava absoluta.
Era dezembro. Dava pra ouvir a chuva rala e contínua molhando o mundo. Encharcando a noite. Esvaziando as ruas. Um ar sombrio e agourento envolveu a sala, intensificando a angústia. Lasso e melancólico. Fraco e sonolento. Pensou que uma droga qualquer poderia inflá-lo de euforia. De uma vida artificial, mas intensa. A ânsia maior, no entanto: apagar de vez o mundo diante dos olhos.
Há tempos não ligava o televisor. Há tempos não tinha mais paciência para ver nada. Para ler nada. Há tempos se fechara para o mistério. Chegara à conclusão de que não havia clima para o sobrenatural, para o além-mundo, para o inexplicável em sua vida: tudo, tudo era muito cotidiano, concreto, real.
Não era ainda meia-noite. Não era. Súbito, porém, uma nesga de luz vazou a parede. Vazou e veio vindo, avivando-se, espargindo-se. Um laser? Um espírito de luz? Um anjo do Senhor? Um ET? O ser de Helena materializando-se num holograma?
A princípio, até ironizou: Que filhote de Spielberg cria tal efeito?
Luz intensa, irradiando-se por toda a sala. Ondulante, magnética.
Que merda é essa?!, berrou por fim.
Viu-a, inexplicavelmente, começar a apagar o contorno das coisas. Um ácido poderoso corroendo as bordas até atingir o miolo, a essência. Uma borracha apagando os vestígios humanos. Primeiro, o televisor; depois, o sofá; em seguida, a mesa de centro com tampo de vidro, enfim, o que encontrava pela frente. Esgotado o que estava no chão, partiu para o alto. Devorou, sem dó nem piedade, uma reprodução de Kandinsky e uma de Dali. Restara, por enquanto, o branco da parede. Restara, embaixo, ele, a cadeira em que estava sentado e o vazio.
Densa, voraz, como se projetada por um holofote de dois mil watts. Fosse apenas uma brincadeira, já o assustava. Mais assustado ficou ainda ao tentar se erguer: imobilizado, como que atado à cadeira de balanço. Procurou, aflito, as algemas, as cordas, as correntes, aquilo que o imobilizava, mas nada encontrou. O mistério crescia, assombrava-o ainda mais.
A luz, por toda parte: entre maravilhosa e aterradora. Inominável. Inominável.
Deus?!
Ansioso, aguardando a resposta do Eterno. Apavorado, temendo o toque da língua ácida. A luz, no entanto, apenas dançou ao seu redor, um balé mágico, envolvente, indo do azul ao quase lilás. E continuava no seu lento processo de supressão da matéria.
O ser de luz envolveu-o, enfim, num abraço vago, luminoso, – quente, quente como os abraços de Helena nos primeiros anos. Ele vendo, inerte e aterrorizado, escaparem-lhe as formas do corpo. Vivo, vivo e sendo engolido pelo inexplicável. Queria poder gritar, expressar o seu terror. Impossível: as palavras, abundantes outrora, já não existiam mais. Tampouco, o pronunciável.
(Texto publicado, originalmente, na revista Portal Solaris.)