terça-feira, 23 de agosto de 2011

Névoa


                              Aos portões da eternidade, de Vicent van Gogh

Por Geraldo lima


Já ouve os ruídos de sempre, logo que o sol atravessa as vidraças e as cortinas e avança sobre o breu dos quartos. Não ouve com a mesma nitidez de antes, mas pode distinguir ainda o ronco dos motores dos ônibus entupidos de gente sonolenta, sem ânimo; passos que ressoam na calçada rumo ao trabalho, supõe; um passarinho que canta todas as manhãs na copa da mangueira, um sabiá, tem quase certeza (meu Deus, o que faz um sabiá aqui, longe, longe do seu mundo?!); uma tosse, uma garganta que se livra do catarro logo cedo na casa vizinha.

Todo dia é assim, e há anos ele assiste a esse espetáculo, passivo, quase alheio. Houve um tempo, porém, em que era parte pulsante dele, um dos seus protagonistas. Agora, muito pouco lhe resta ainda para extrair da vida. Sabe que não tarda a noite eterna, avessa à luz, por isso procura sempre se adiantar ao movimento incessante do dia: é o primeiro a se levantar, abrir a porta e respirar o arzinho frio da manhã que se inaugura. — Pai, não passa daí, viu? Nada de ir pra rua — já ouviu mais de uma vez a filha recomendando, proibindo, delimitando seu território.

Antigamente, era ele quem ia à padaria comprar o pão e o leite. Quando todos acordavam, o café já estava pronto e a mesa posta. Hoje, é essa inutilidade que levanta e nada mais pode fazer. Que não pode nem atravessar a fronteira que separa a casa da rua.  O mundo tornou-se perigoso, vasto, indecifrável: uma armadilha para os velhos e as crianças.  O mundo-monstro. O além-mar, o além-portão. O que a mente, gasta, já não pode compreender. O que os olhos, minimizados, já não podem abarcar.

Da sala dá pra ouvir o burburinho de agora e o de muito tempo atrás, com outros sons, obviamente, outros destinos. Esse barulho de roda sobre o asfalto ainda molhado de sereno é da carroça de Minervino, não tem dúvida. Passou a vida toda ouvindo isso, como pode não ter certeza? A voz de dona Efigênia conversando com o leiteiro, ah, o leite que ele vende não é que nem aquela água rala que a gente compra na padaria. Não, não, é leite da fazenda mesmo, saído há pouquinho do úbere da vaca. Vai comprar é desse leite, queira sua filha ou não.
  
Ah, demorou tanto a decidir se comprava ou não o leite que o homem já foi embora. Nem sombra também de dona Efigênia. Aliás, a rua lhe parece agora muito diferente. Que terá acontecido? Mundaréu de carro indo e vindo.  Tem mais barulho aqui fora do que ele consegue ouvir lá de dentro. Também a audição anda meio fraca ultimamente. — Pai, cadê o aparelho pro ouvido, hein? Como o senhor vai ouvir alguma coisa se não usa? Parece criança. Usar até que ele usa, mas não o tanto que devia. Põe e logo retira: o trem lhe dá gastura, é um incômodo insuportável. Prefere ouvir tudo minguado mesmo, retalhos de conversas, palavras mutiladas, sem adorno, sem sentido. Agora, o silêncio é uma ilha onde ele, náufrago do tempo, sente-se seguro e em paz.

Bem que ele queria atravessar a rua, ir até a padaria em frente, mas essa névoa que cobre tudo não deixa. De uns tempos pra cá, as manhãs têm sido assim: vestidas com essa névoa rala, mas persistente.  Pra piorar, sua vista anda muito fraca, quase não o deixando reconhecer as pessoas nem as coisas do dia-a-dia. Juntando-se a isso o fato de a sua memória estar falhando frequentemente, tem-se o quadro clínico completo da sua decadência.  Uma merda! É até motivo de riso. Tratam-no agora como se fosse criança. — Pai, o senhor já almoçou, já se esqueceu?  — Ah, é mesmo, concorda, enquanto é açoitado pelo riso dos netos.

Isso não acontecia quando Joana ainda estava entre eles. Agora, que está velho e só, todos podem fazer o que bem quiser com ele.     

 O rapazinho que o ajudou a atravessar a rua tinha bem as feições do filho de dona Ilda, mas pareceu não o reconhecer. Estranho, na padaria ninguém o reconheceu também. Mas custava eles terem vendido o pão e o leite pra ele pagar depois? Um tempo atrás, não era assim: podia entrar ali sem um tostão no bolso e sair com um saco cheio de pão, que o dono confiava. Ah, também ele tinha que esquecer onde morava logo agora? Pai de quem? Não, não se lembrava. Que aflição! Que desespero silencioso e trágico.

Tudo, tudo parece fazer parte de outro mundo agora. Tem coisa que está aqui e que não estava há pouco tempo atrás. Esse prédio aí, isso não existia. Essas casas apagadas pela névoa lhe parecem familiares, mas muitas lhe dão a impressão de terem nascido, agora, de uma fôrma que ele desconhece totalmente.  Mesmo assim vai se arriscar a ir um pouco mais adiante, até a esquina. Antes de seguir, olha para trás e é como se alguém tivesse passado uma borracha na paisagem, apagando o mundo de onde ele havia emergido: tudo o que lá está, acabou de brotar do nada.

Poderia entrar em pânico, mas já está bastante velho para se desesperar à toa assim. Para quem já passou por situações muito mais complicadas do que essa e tirou de letra, isso é nada. O que tem que fazer é ir em frente.  Tem quase certeza de que a casa do seu compadre Gérson fica só um pouco mais adiante. Vai aproveitar então esse passeio pra lhe fazer uma visitinha, assim mesmo, sem avisar. Um dedo de prosa com ele, logo de manhã, vai lhe fazer bem, pois tem vivido muito só, sem o calor das conversas com os velhos amigos.  


O diabo é que ninguém parece conhecer mais os outros nessa cidade. — Não, não mora ninguém aqui com esse nome, não. O senhor tem certeza que é esse o nome? Ora, por acaso ele está gagá ou louco? Dá vontade de dizer umas coisas, mas é melhor deixar pra lá. Essa gente não merece nem o seu desprezo. Não faz muito tempo, e todo mundo se conhecia. Fulano era filho de sicrano, neto de beltrano, e pronto. Entrava na casa de qualquer um a hora que fosse. Agora, mal abrem a porta. Parece que tá todo mundo se borrando de medo.

Resolve mudar de plano e virar à esquerda, descendo a rua. Vai só um pouco mais adiante e depois decide o que fazer. Sabe que tem que voltar pra algum lugar, só não se lembra bem pra onde. É bem capaz que esse lugar também nem exista mais.  Há tempos, talvez, ele esteja andando assim pela rua, sem rumo certo, barata tonta em meio à multidão. As ideias estão meio confusas, mas não é nada com que se deva preocupar demais. O negócio é ir tocando a vida. Quem já viveu tanto não vai se assombrar com pouca coisa.

A cidade agora está toda de pé, numa agitação danada. Isso até que o distrai e o anima. Quem sabe encontra um conhecido e acaba entrando num bar pra tomar uma pinga, como nos velhos tempos. Sente uma vontade doida de gritar, de apertar a mão dos passantes, de dizer bom-dia, como antigamente. Onde está aquele calor de antes? O que houve com aquele mundo? Não é possível reconhecer mais nada, nem ser reconhecido.

A névoa.  Ah, a névoa!  

Apesar desse quadro desanimador, sente uma sensação gostosa de liberdade, como se já não lhe importasse mais a ideia de um lugar fixo para onde devesse voltar. Embora esteja cansado, sente-se uma criança disposta a brincar o dia inteiro. Tem energia de sobra. Não fosse essa névoa que o segue por onde ele vai, como uma maldição ou o prenúncio da noite que não clareia nunca, poderia ir até o fim do mundo sem temer cair no abismo.

As pernas, só para contrariar o restante do corpo, fraquejam e ele é obrigado a sentar num dos bancos da praça. Não vai demorar ali, pois ainda tem muito chão pra andar. A cidade cresceu absurdamente e ele deve levar o dia todo indo de uma ponta a outra. Mas isso não tem importância: ele é livre e vai para onde bem quiser.

Sem que tivesse percebido, a névoa tornou-se densa, e, por mais que ele abra os olhos, já não consegue ver mais nada.

Há um princípio de pânico que ele tenta administrar com sabedoria e calma. Não resta dúvida de que agora é preciso ouvir com atenção redobrada. Os olhos, ele constata, já não funcionam mais. Tem a impressão de que outras partes do seu corpo começam a deixar de funcionar, mas prefere não pensar nisso agora. Tudo o que precisa fazer é ouvir com atenção.

Então ele ouve a voz que brota do interior da névoa. Uma voz com a qual ele conviveu durante muitos anos. Ela soa nítida, musical, inconfundível: é como se ele ouvisse Joana falando ali, bem perto dele, tão perto que dá a impressão de que a voz amada escapa de dentro da sua cabeça e não do interior da névoa. Mas ele refuta essa impressão que só o faria parecer um louco. É de lá, do interior da névoa espessa, que ela vem, a voz da esposa morta há anos. É lá que Joana está perdida e implora pela sua ajuda. Joana chama, e ele, sem vacilar, vai ao seu encontro.


Do livro, ainda inédito, A saga do nada.

terça-feira, 2 de agosto de 2011

Considerações intempestivas sobre Trinta gatos e um cão envenenado


Por Augusto Rodrigues e Francisco Alves

Shakespeare, um dos fundadores da modernidade, escreveu em Hamlet: “O gato há de miar, e o cão terá o seu dia”. A peça, além de tratar do indivíduo, pode ser lida da perspectiva trágica da vingança – ou da dificuldade para assumi-la. O mesmo tema é tratado em Trinta Gatos e um cão envenenado, de Geraldo Lima: “[...] varrer essa casa o dia todo cansa. A sujeira não acaba nunca. Viver cansa. Às vezes a gente precisa descansar. Mas descansar mesmo só morrendo.” (LIMA, 2011, p.66). A diferença é que agora temos uma personagem feminina, Zeza, que não titubeia diante da necessidade de agir: “Ninguém precisa mais de remédio. Isso não tem mais remédio, mãe.” (LIMA, 2011, p.66).
A segunda peça de Geraldo Lima impressiona. O texto, sua segunda obra dramatúrgica, aponta para um caminho profícuo neste campo literário. A peça Trinta gatos e um cão envenenado é, a um só tempo, claustrofóbica e desnorteante. Claustrofóbica por nos apresentar um ambiente cujo conceito de família é mais do que opressor, como se o mundo, a família, o ego fossem variantes de uma mesma prisão. Desnorteante, por não apresentar um caminho seguro para os personagens. Recordando Sartre, nesta história o inferno são sempre os outros. Ou, então, aquilo que encontramos do outro em nós.
Este dramaturgo goiano-brasiliense nasceu em 1959 na cidade de Planaltina. Sua inquietação pode ser percebida nas variantes literárias que frequenta: publicou os livros de contos A noite dos vagalumes e Baque, e um de micronarrativas – Tesselário; publicou ainda o romance Um e o livro infantil Nuvem muda a todo instante. Sua estreia no teatro se deu com Error. Neste vasto universo, Trinta Gatos e um cão envenenado chama a atenção pela sua força dramática e o fluxo dialógico que decorre de suas vozes.
Os diálogos, de início, parecem recair em temáticas realistas: família, desajustamento social, sexo, degradação de valores etc. Mas, à medida que nos confrontamos com o modus operandi de cada personagem, percebemos um dilaceramento existencial de cada um. O enredo conjuga quatro parentes e um cão envenenado. O pai perde-se na bebida e no apagamento do passado. A mãe tenta salvar-se na religião. O filho consegue livrar-se desse jogo e resolve constituir a própria família. Zeza, porém, é a filha decidida a vingar-se. Vive em função do passado, da própria dor e do silêncio de todos diante de ato eminentemente atroz: “Esse silêncio é de cumplicidade. Ainda que houvesse sombras, medo, ainda assim teria sido possível gritar, denunciar, fazer valer a justiça dos homens.” (LIMA, 2011, p. 58).
Outra característica que merece reflexão é o fato de os personagens não passarem por aqueles processos de amadurecimento em cena e que, ao se rebelarem, acabam por ganhar novos perfis – como acontece no teatro de Hilda Hilst. No teatro de Geraldo Lima os personagens são marcadamente trágicos. Mesmo vivendo um drama atemporal, drama freudiano chamado família, todos os personagens estão revestidos de máscaras. Não por acaso a peça tem um Coro de Máscaras que leva para um deslocamento os envolvidos na trama, os leitores e/ou espectadores. As vozes em uníssono geram um eterno retorno do enclausurado, ou melhor, um retorno ao álbum de família empoeirado: “A vida comigo não tem volta, não. Ela vai sempre...” (LIMA, 2011, p.37).
A loucura e a morte, facilmente encontradas nas páginas policiais do jornal, no teatro, revelam que cada indivíduo guarda consigo um certo veneno. Quando nos confrontamos com o final da peça, tem-se a impressão de que fomos, de certo modo, envenenados pelos personagens. Seres que expressam uma certa náusea existencialista e que mostram quão miserável pode ser a condição humana. Mas, como em toda tragédia, a catarse se dá justamente por sairmos do teatro/livro aliviados por não ter acontecido conosco. O resto é história.

Augusto Rodrigues é poeta e Professor Adjunto de Literatura Brasileira – UnB. Publicou os livros Niemar (poesia, Editora Vieira, 2008) e Onde as ruas não têm nome (poesia, Thesaurus Editora, 2009).
Francisco Alves é Mestrando em Literatura – UnB.


Trinta gatos e um cão envenenado (teatro)
Autor: Geraldo Lima
Editora: Ponteio Edições
66 páginas
ISBN 978 – 85  – 64116 – 05 - 4
Preço: 21,00