domingo, 28 de março de 2010



Publiquei Baque em 2004, pela LGE Editora. É um livro composto por seis contos (Pus, Baque, Limbo, Adaga, Ermo e Vigília) que expõem, de forma dramática, a precariedade da existência humana.  Na apresentação do livro, o escritor Ronaldo Cagiano escreveu: “Da mesma forma, os seis contos de ‘Baque’ comunicam-se pela semelhança de universos, sempre carregados de dificuldades, angústias humanas e desertos existenciais, que moldam os dramas e tensões, formando um candente painel em que seus personagens vivem situações-limite, no limbo, numa espécie de underground, entre um baque e outro”.  
 Quem se interessar pelo livro, pode adquiri-lo pelo site da editora www.lgeeditora.com.br  ou em outras lojas virtuais.
Eis um dos seus contos.

PUS


Por Geraldo Lima                                                       

E a ideia é essa mesma, ele resmunga, enquanto tenta se erguer sob o sol implacável de agosto. A ideia é esta mesma, quase grita já de pé, as pernas bambas: apodrecer diante de todos como uma fruta no lixo da feira ou um cão morto na beira da estrada!
 No oco da mente ainda resistem vestígios de um tempo do qual ele até sente nostalgia, mesmo que persista a sensação de nem tê-lo vivido verdadeiramente. Talvez tenha sido só mesmo um desejo, um plano abortado em meio aos atropelos do dia-a-dia. Há, no entanto, essa imagem rota de um eu perdido na borrasca cotidiana. 
Então é isto: aquele que ele imagina que perdeu há tempos, ah, esse parece mesmo perdido para sempre. E se está perdido, se a máquina do mundo o triturou completamente, então, este que ele adotou, este corpo-molambo em que vive agora, não merece cuidado algum. Que apodreça sobre o altar do mundo! Que desça então sobre ele a fúria de um deus sem piedade alguma!
Precisa buscar uma sombra, talvez o toldo de uma loja ou uma parada de ônibus. Sente uma vontade imensa de desabar num sono profundo, sem volta, para dentro de uma noite infinita. Já não tem mais forças para arrastar o corpo enfermo.  Cambaleante, atravessa a rua e, aos tropeções, chega até uma árvore. A sombra é mínima, mas nela cabe muito bem o seu corpo magro.
É de se admirar que, depois de tanto tempo, ainda sinta dor de cabeça. Que o seu corpo não esteja anestesiado. Que ele ainda se disponha a pensar, a refletir. Não, não, não quer mais pensar. O seu esforço é esse mesmo: apagar a lucidez. Turvar a mente. Deixá-la à deriva. O objetivo é um só: se aniquilar diante das câmeras, dos olhares indiferentes ou chocados das pessoas. Da pressa cotidiana. O intuito é que um belo dia alguém, vendo-o passar pelo outro lado da rua, diga, aquele cara ali já foi alguém na vida... agora, veja só que molambo! 
Quer verdadeiramente suscitar esse tipo de indagação sem resposta, esse espanto que mais angustia quem ousa sair de si para entender o outro. Quem procura explicações precisas, esclarecedoras para o profundo mistério da vida, — se é que a vida tem algum mistério. Talvez haja tão-somente uma ou duas explicações para a vida, mas há quem queira sempre saber mais, e mais, e mais. A causa de tudo. O antídoto. A cura. Não, jamais chegarão ao cerne do que chamariam mistério, ainda que mergulhem num indagar incessante, por que abandonou aquele roteiro que parecia ir dar num final feliz? As coisas não estavam funcionando bem? Mas, de repente, deu para falar assim, amargo, contrário a tudo. Há dias não vai ao trabalho. Há dias não toma nem banho!  Dizem mesmo que está apodrecendo. Moscas o acompanham em festa. O lixo é seu restaurante. À noite, o mundo o acolhe como um anjo perdido.
Agora mesmo, não faz dez minutos, voltou do banheiro da rodoviária suando frio, escorando-se nas paredes. Sentou-se no meio-fio e deixou-se ficar assim, a cabeça amparada pela mão esquerda, pesada, latejando, como se alguém a estivesse partindo ao meio com uma serra. Foi quando se ergueu e pôs-se em marcha em busca de um lugar fresco para descansar. Sorte ter encontrado essa sombra, esse lugar tranquilo fora do trajeto das pessoas. Acha-se tão sem forças, sem alma, que o inseto que escala o seu pé esquerdo não deve encontrar resistência alguma até chegar à borda da sua boca escancarada. Os muros do seu corpo estão demolidos. Qualquer invasor chega e invade o seu território sem encontrar resistência.  É como costumam dizer: está entregue às moscas. 
Há sérias complicações que denunciam a falência do seu ser. O organismo já dá sinais de corrosão, de completa debilidade: vez ou outra, o que engole volta à tona num jato violento e azedo. No corpo, várias escoriações traçam mapas de ruínas e desertos. Há muito perdeu o senso de direção e equilíbrio: costuma vir tombando ora no asfalto ora na terra. 
Há tempos anda sem rumo pelas veias da cidade. Um tronco podre levado pela enchente. Um ramo seco varrido pelo vento. Pelos terrenos baldios, pelas esquinas, pelas calçadas, sem bússola, sem mapa. Cada manhã um roteiro diferente. Um sem-destino. Um sem-que-fazer todos os dias. Um vagabundo para os que ainda labutam, para os que retomam a rotina todas as segundas-feiras. Não fosse a precariedade da sua existência, o depender ainda da caridade dos outros, poderia até dizer numa última tentativa de se firmar no mundo: sou livre, sou livre. Mas, com certa amargura, conclui, só mesmo a morte liberta.
O inseto está a três dedos da sua boca: chegou à ponta do queixo e tenta vencer o emaranhado de pelos. Se não mudar a sua rota, logo, logo cairá nesse buraco úmido e fétido. Talvez, num movimento reflexo, o homem feche a boca violentamente e o esmague. Mas pode ser que a sorte o ajude: um sono profundo, que não deve tardar, apagará os últimos vestígios de energia que move esse ser. 
Sob a sombra mínima da árvore, a boca aberta, o olhar esbarrando com o céu de folhas verdes, o homem experimenta a tosca sensação de completo abandono, de não fazer parte de nada, de não existir mais.


AVATAR: UMA OVERDOSE DE IMAGENS

Por Geraldo Lima

        Assisti, enfim, ao megassucesso Avatar, do diretor canadense James Cameron, residente nos Estados Unidos.  Ele é o diretor de outros grandes sucessos como Titanic, Exterminador do Futuro 2 e Aliens: O Resgate. O homem, formado em Física, entende mesmo dessa coisa de fazer filmes com grandes orçamentos e com muitos efeitos especiais. Aliás, consta que ele foi o primeiro diretor a produzir e a dirigir um filme com custo acima de 100 milhões de dólares. É, sem dúvida, um dos principais ícones da indústria cinematográfica norte-americana.  É um Midas dos tempos modernos.
        E o que este último filme de Cameron tem de espetacular? Confesso-lhes que, além do recurso do 3D, não vi muita coisa que tivesse compensado o esforço de me deslocar de casa, de pagar doze reais (meia entrada) e ter cutucado minha sinusite com vara curta por causa do ar-condicionado da sala de cinema.
 Como assim?, perguntar-me-ão os  fãs do filme Avatar.
        Se observarmos atentamente, perceberemos que em termos de roteiro não há nada de novo nesse filme. De que consiste a sua trama? Uma companhia mineradora está colonizando a lua Pandora com o intuito de explorar um valioso minério que se localiza exatamente na região onde vive o povo Na’vi. Nesse imbrolho todo há os cientistas que desenvolvem o projeto Avatar  e estudam os costumes dos habitantes de Pandora. Tudo para facilitar a aproximação com os nativos e, obviamente, a exploração do tal minério.
Como é de se esperar, idealismo e ambição vão se chocar no final, e essa é a pitada ética e ecológica do filme.
Os cientistas são idealistas, acreditam numa aproximação pacífica e numa negociação para a retirada dos nativos que moram numa grande árvore. Para se opor a esse projeto pacifista, há o comandante dos mercenários, um tipo obcecado pela guerra, pelo uso da força para resolver os problemas.  O administrador da estação em Pandora é também ambicioso e só enxerga o lucro diante dos olhos. Tudo clichê! Já vimos essa receita em outros filmes de Hollywood. Para fechar a mesmice, há o romance aparentemente impossível entre um avatar e uma nativa de Pandora. O tema do amor impossível, uma repetição de Romeu e Julieta, de Shakespeare.  
Olha, em alguns momentos pensei estar assistindo a um daqueles faroestes em que os índios Cheyennes ou os Apaches enfrentam a cavalaria do General Custer. (Há um James Cameron que trabalha como ator no filme O Último dos Moicanos. Estou supondo que seja o diretor James Cameron. Aliás, parece-me que a família Cameron toda trabalha lá. Há mais dois atores com esse sobrenome: John Cameron e Alexandra Cameron. E já disseram por aí que Avatar seria O Último dos Moicanos tecnológico). Noutro momento, quando o Avatar de Jake, protagonista do filme, pede ajuda a Eywa, e ela o atende, convocando todos os animais para atacar o exército de mercenários, lembrei-me dos velhos filmes de Tarzan, quando ele, soltando aquele grito poderoso, convocava a bicharada da floresta para ajudá-lo a expulsar os invasores. Nesses momentos, senti vontade de me levantar e ir embora. Mas a novidade do 3D me fez ficar. Aquela sensação de estar quase dentro do filme, vendo os personagens bem de perto (a atriz Sigourney Weaver com sua boca meio torta, puxando sempre para o lado direito). Isso impressiona. Às vezes dá a sensação de estarmos num teatro vendo o desenrolar da peça não da plateia, mas sim do palco mesmo, com a cara dos atores bem perto da nossa. Os efeitos visuais, as criaturas digitais e os ambientes virtuais são impressionantes. Nesse quesito os norte-americanos são insuperáveis.
Mas é só isso. O resto é déjà vu. Até mesmo essa coisa do 3D. Alguns podem achar engraçado ou até ridículo o que vou dizer, mas   há algum tempo o Maurício de Souza lançou umas revistinhas da Mônica com o recurso do 3D,  vocês se lembram? Dava um trabalhão danado para conseguir enxergar os desenhos em profundidade, em terceira dimensão. É óbvio que a estrutura usada por Cameron é de outra natureza. No caso do cinema, ou do filme Avatar, chega um momento em que a proximidade  com as imagens  é tanta (e é uma overdose de imagens), que causa um certo mal-estar. Saí do cinema com dor de cabeça. Bom, pode ser por causa da sinusite.  Ou não?    

*Este texto foi escrito antes da entrega do Oscar. Parece-me que a premiação que coube ao filme Avatar corrobora em parte o meu ponto de vista.
* Meus filhos criticaram duramente este meu texto, por isso levei um certo tempo criando coragem para publicá-lo. Disseram que quem gosta desse tipo de filme sabe dos clichês e não se importa com eles. Disseram que é um filme de entretenimento e é assim mesmo, não cabendo, nesse caso, comentários críticos.

sábado, 20 de março de 2010

ENTREVISTA COM GERALDO LIMA

Leiam, por favor, no blog Na Ponta dos Lápis (www.napontadoslapis.com.br). a entrevista que dei ao Leonardo Schabbach e o comentário muito bacana que ele fez sobre o meu romance UM. Vocês encontrarão lá, também, o meu conto Uma mulher à beira da estrada. Leiam e comentem, por favor, pois estarão participando de uma promoção: o sorteio de um exemplar do UM. Não deixem de visitar também O Bule (www.o-bule.blogspot.com). Lá vocês poderão ler contos, ensaios, microcontos, poemas e crônicas. Tudo da melhor qualidade. 

sábado, 6 de março de 2010

UM CONTO ETÍLICO DE JOSÉ EDSON DOS SANTOS.



     Morena louca para pular a cerca
                            
                                            José Edson dos Santos

      Quase uma da madrugada. O Café da Rua 8 vazio evidencia o desnaturado frio de julho e o recolhimento sensato dos notívagos mais experientes. Reabasteço a taça de vinho Miolo Merlot para ensandecer a alma de bardo desiludido com o último soneto escrito à iguana potiguar que tive como amante na folia do bloco carnavalesco Pacotão. O fígado andava meio detonado que nenhum Epocler ou chá de boldo funcionaria como atenuante sobre o desregramento do corpo etílico. Envolto na divagação, na prosopopeia e no mito de um pássaro pirado chamado de bacurau, não percebo uma morena faceira vestindo roupa de inverno que surge da outra extremidade em penumbra do Café, se prontificando com meiguice e sedução:
– Posso sentar um pouco?
– O vinho está no fim e o Café já está fechando também.
– Que pena! Logo hoje que estou louquinha para pular a cerca...
– Muito interessante, digo sem muita convicção.
– Vamos fazer que ele sinta o prazer de levar um chifre de corno, ela insiste com provocação e acendendo um cigarro mentolado.
– Por favor, puladora de cerca, não estou querendo complicação à uma da madruga...
– Esse puto merece amanhecer com um par de chifres na testa!
– Sem querer parecer antipático, puladora de cerca, não estou entendendo patavina de sua prosa. Quem você está pretendendo cornear?
– É o canalha do Merivaldo que se diz meu marido há sete anos, mas vive me enganando todo esse tempo. Ele pensa que eu não sei que ele tem outra lá no Núcleo Bandeirante. Mulher casada quando enganada pula também a cerca...
– O que é que esse tal de Merivaldo faz na vida?
– Ele tem uma empresa que faz turismo na Chapada dos Veadeiros e viajou hoje de manhã cedinho, me deixando na maior dureza sem nenhum tostão...
– Merivaldo fica chapado e vira veado deixando sua raposa morena pulando a cerca, procurando uva passa e um varão vinhateiro. Taí uma situação impulsiva que pode render um samba canção, uma balada de duplo sentido, um bolero indolente e libidinoso...
– Se você quiser ser o felizardo, meu querido compositor vinhateiro, moro em uma quitinete do outro bloco e vou te cobrar apenas cinquenta reais na camaradagem. Preciso pagar a minha manicure. Se eu não pagar a Edwirges amanhã, ela vai ficar puta da vida comigo...
      Entorno o resto do vinho Miolo Merlot, safra 2001. Chamo Betúnia, a garçonete sonolenta de tetas túmidas do Café para acertar a conta. Os noturnos de Chopin tomam de assalto a cabeça quando tento esquecer a cobrinha, a lontra, a gralha e todo zoológico sentimental e inconsútil que habitam a floresta de minhas paixões mal resolvidas. Que fígado porra nenhuma! A morena meiga que quer pular a cerca e mora no bloco D da quitinete vizinha talvez entenda o lado soturno que atormenta a madrugada do bardo que jurou nunca mais escrever um soneto em branco e preto sobre a iguana potiguar do seu encontro carnavalesco no bloco Pacotão. O torpor do vinho invadindo o corpo em delírio é foda! Pular a cerca por cinquenta reais com uma raposa morena é muito pouco, seu Merivaldo veado. A Edwirges que faça manicure em outra freguesia e que vire puta em outra ocasião. Semana que vem começo a adaptação  de outro noturno em Brasília,  trabalho que o videomaker Salatiel Gontijo chama de um voo altiplano no infininho do ser. Candango depois do tango de desterro amazônico embebeda a sogra com vinho Sangue de Boi e amoníaco, mas aí a conversa toma outro rumo. “A virtude é a mãe do vício, conforme se sabe” e o vinho é de outra safra, morena raposa sabor de veneno. Vou pular a cerca contigo com certeza. O Merivaldo que se foda na Chapada!


“A virtude é a mãe do vício, conforme se sabe”. Torquato Neto em Literato Cantabile. Os Últimos Dias de Paupéria. Editora Eldorado. Rio de Janeiro, 1974.

ALGUMAS PALAVRAS SOBRE JOSÉ EDSON DOS SANTOS E SUA OBRA.

O cultivo de uma postura maldita juntamente com o sestroso elogio à noite e seus personagens à margem das normas, imersos na singular atmosfera urbana brasiliense. Sem dúvida, Zé Edson esmera-se em explorar estes temas e este clima.”    Francisco Kaq, Jornal de Brasília.

“Apesar de seu desterramento, o poeta José Edson dos Santos revela a veia telúrica e amazônica, mas em formatos urbanizados de criação. Linguagem célere, quase minimalista, entre o irônico e grotesco, de sua verve dramática e de black humour como em “Poética magra”: “No contracheque/ o sarcasmo do salário/ como mal-me-pague da educação popular/ / O que pode almejar o poeta/ professor ator/mentado do sonho/ pretextando outras manhãs/ com palavras por dizer/ ser um impróprio trocadilho?”   Antonio Miranda

(Nasceu em Macapá/AP e mora em Brasília desde 1974. É Arte-Educador no CEAN/ASA NORTE. Publicou em 1972, em Macapá, Xarda Misturada com José Montoril e Ray Cunha. Em 1978 participou da antologia organizada por Salomão Sousa, Em Canto Cerrado. Em 1980, publicou Latitude Zero, em edição mimeografada por Paulo Tovar; Águagonia, edição coletiva com Alvisto Skeef, Antonio Flávio Testa, Chico Terra e Kleber Lima. Bolero em Noite Cinza foi publicado pela Da Anta Casa Editora em 1995Ampulheta de Aedo, pela LGE Editora, em 2005. Participou das antologias: 27 Porretas; Beirute: Final de Século; Poemas e Contos/SEDF; Todas as Gerações – o conto brasiliense contemporâneo; Deste Planalto Central – Poetas de Brasília, entre outros. Blog: http://joyedson-artevie.blogspot.com)