segunda-feira, 27 de dezembro de 2010

UMA TARDE NO CINE BRASÍLIA



Por Geraldo Lima

Há anos morando no Distrito Federal, pela primeira vez fui ao Festival de Brasília do Cinema Brasileiro.  Instigado pela exibição de um documentário dirigido por um amigo, arranjei tempo e disposição e fui, à tarde, assistir à Mostra Brasília 35mm.

Antes de iniciar a exibição dos curtas e do longa, ainda assistimos a um bom trecho do filme Rico ri à toa (1957), de Roberto Farias. A película, que foi restaurada, nos dá uma boa mostra dos áureos tempos da chanchada brasileira. Música, dança, humor, romance, trama policialesca e trapalhadas dão ao filme um ar de graça e ingenuidade impossíveis nos dias de hoje. Quem viveu naquela época, revendo o filme, deve pensar: bons tempos que não voltam mais. E dai-lhe Tropa de Elite!

Mas vamos aos curtas e ao longa que seriam exibidos em seguida.

O primeiro a ser exibido foi I-juca Pirama, de Elvis Kleber e Ítalo Cajueiro. Como o título indica, trata-se da transposição para a tela de cinema, com a técnica da animação, do belíssimo poema de Gonçalves Dias. A dupla de jovens cineastas conseguiu manter a integridade física e temática do poema e, ao mesmo tempo, dar-lhe um sentido de contemporaneidade.  A saga do índio tupi, prisioneiro dos Timbiras, culmina nos dias atuais. Ao mostrar o índio presa da aculturação e da violência dos centros urbanos, mais especificamente com a morte do índio Galdino numa parada de ônibus do Plano Piloto, Elvis Kleber e Ítalo Cajueiro fazem-nos enxergar que o índio brasileiro continua a ser sacrificado, só que, agora, não mais num ritual antropofágico de assimilação da bravura do guerreiro inimigo. No presente, não há bravura nem honra, apenas a rendição e a violência gratuita. Dessa forma, os cineastas transitam da visão idealizada do índio, no Romantismo, para uma leitura crítica da sua condição atual. A poesia e o cinema se unem, nesse caso, para ampliar nossa visão acerca da realidade indígena no Brasil.

 Uma aula de literatura sobre o Romantismo brasileiro ilustrada com a exibição desse curta, de inegável qualidade técnica, permitiria, aos estudantes, uma dupla leitura da história: o índio enquanto ser natural, integrado à natureza, e o índio aculturado, apartado dos seus valores culturais. 

Procura-se, de Iberê Carvalho, é uma história de ficção para crianças. História singela de uma menina rica que, diante do sumiço do cachorro de estimação, sai destemida à sua procura. O interessante desse curta é que ele tem como cenário a periferia e a área nobre de Brasília. Com isso, permite, ainda que de maneira idealizada, o encontro e a confraternização entre pessoas de classes sociais diferentes. Não deixa de ser uma história edificante. Vale destacar a interpretação dos atores mirins que, segundo os realizadores do filme, não fizeram corpo mole diante da carga de trabalho.

O terceiro curta, Profana Via Sacra, de Alisson Sbrana, tem como personagem central nada mais nada menos que o jornalista e poeta Reynaldo Jardim, cuja trajetória de vida já deixou sua marca no jornalismo cultural (criou o Caderno B do Jornal do Brasil) e na literatura (foi um dos teóricos do Neoconcretismo). 

O curta tem o mérito de não apresentar o poeta num longo e cansativo bate-papo. A linearidade é rompida pelo caráter híbrido do filme, que faz uso da entrevista, da declamação, da animação e da interpretação. Ora o poeta conversa descontraído com o cineasta Ronaldo Duque, ora declama seu poema abstrato em meio às formas modernistas e concretas de Brasília. A “tradução visual” do poema Profana Via Sacra, como bem definiu o jornalista Severino Francisco na Crônica da Cidade (Correio Braziliense), é um dos momentos mais belos e inovadores do curta. Ali, imagem, texto e voz se unem em plena harmonia, extraindo o máximo de significado da poética de Reynaldo Jardim. É a dimensão lírico-profana da sua poesia que nos salta aos olhos: Cristo e Che Guevara fundem-se numa só imagem.
O curta de Alisson Sbrana vale tanto como objeto estético (é, de fato, uma obra de arte), quanto como documento histórico: através dele, as próximas gerações poderão ter uma visão mais ampla e densa da poesia neoconcreta e da figura irreverente do poeta Reynaldo Jardim.       

Por último, o longa O Mar de Mário, de Reginaldo Gontijo e Luiz F. Suffiati. Esse documentário, independente das suas qualidades técnicas e do seu experimentalismo, já se destaca no cenário cultural brasileiro por registrar, primeiramente em VHS e depois em formato digital, a figura e as ideias do cineasta Mário Peixoto diretor do antológico filme Limite –, no momento em que ele encontrava-se no ostracismo. Cabe à dupla de cineastas brasilienses esse feito. Bom para a história do cinema nacional e imprescindível para penetrarmos no universo intelectual e criativo desse cineasta de vanguarda.

Embora possam ser feitas algumas observações críticas ao filme, por exemplo, o tempo de duração poderia ser menor, há que se destacar o seu valor estético: Gontijo e Suffiati mesclam entrevista com o cineasta e trechos do seu filme Limite. Noutros momentos, reproduzem cenas do filme de Mário usando duas atrizes. Alternam, também, filme colorido e preto e branco; exploram, às vezes, o negativo de cenas gravadas por eles mesmos. Num dos mais expressivos momentos do documentário, Mário Peixoto, com a humildade do gênio que virou as costas para a fama, indaga aos jovens cineastas qual a diferença entre cinema e vídeo. Ouve, atento, a explicação dada por Gontijo, e, em seguida, deixa claro seu descontentamento ao assistir à exibição de Limite num televisor. Ali, podemos notar a aguda consciência estética que o orientou na concepção desse filme tão à frente do seu tempo.  Eu diria que esse é o momento mais emocionante do filme, mais ainda do que aquele em que ele fala do seu embate com o pai. Nesse momento, Mario não deixa dúvida de sua opção radical pela construção de uma obra de arte verdadeiramente transgressora. É uma lição de integridade artística que precisa ser vista pelas próximas gerações. Daí, a importância estética e histórica do documentário O Mar de Mário. 

A partir do que vi no Cine Brasília, no 43º Festival de Brasília do Cinema Brasileiro, não me resta dúvida: a Capital da República já dispõe, na produção cinematográfica, de diretores capazes de realizar obras de inquestionável valor estético. Saímos daquela produção de filmes quase amadora, para uma produção marcada, claramente, pelo profissionalismo, pela criatividade e pelo excelente acabamento técnico.  

terça-feira, 14 de dezembro de 2010

A NOSSA FALTA DE TEMPO


 
Por Geraldo Lima

A minha vida anda muito agitada, corrida à beça. Vou assumindo compromissos e, de repente, já angustiado, descubro que o tempo é curto para cumprir todos eles. Mas será mesmo que o tempo encurtou? que está passando mais rápido? “O dia está passando mais rápido e isso me assusta”, escreveu uma jovem dia desses no twitter. E eu pensando que somente nós, a galera das antigas, é que tem essa sensação de que os dias e os anos estão passando mais rápido. Tudo está acelerado. E o resultado dessa aceleração é que nos falta tempo tanto para cumprir os compromissos assumidos quanto para a reflexão. Nossas ações acontecem e caem no vazio.

Há, eu sei, uma explicação científica para esse encurtamento dos dias. Teria a ver, segundo cientistas da Nasa, com os terremotos do Chile e de Sumatra. Mas não vou entrar em detalhes aqui sobre as consequências dessas catástrofes naturais. Poderia citar, também, para a sensação de sufoco e falta de tempo, o ditado popular que diz assim: “Para quem trabalha, os dias parecem curtos”. Pode ser isso: estamos trabalhando demais e nos distanciando da profecia do ócio criativo de Domenico De Masi.

Mas prefiro pensar essa questão de um viés mais metafísico.
Talvez o que tenha se acentuado seja a nossa consciência do presente e a nossa expectativa em relação ao futuro, em contraposição a uma visão de mundo mais centrada no passado. Os antigos viviam mais ligados à tradição, àquilo que permanecia intacto anos após anos. Hoje, como diria Karl Marx, “tudo que é sólido se desmancha no ar”.  Cabe ainda entendermos que o presente é uma fração do tempo já contaminada pelo passado e pelo futuro. Em si, o tempo presente dura uma fração de segundos, pois logo já é passado, tendo sido antes a expectativa de futuro. Jorge Luis Borges, no texto O Tempo, do livro Borges Oral, indaga a partir do pensamento de Santo Agostinho: “Consideremos o momento presente. O que é o momento presente? O momento presente é o momento que consta de um pouco de passado e de um pouco de futuro. O presente, em si, é como um ponto finito da geometria. O presente em si não existe”.

Então me vem esta ideia: temos, hoje, uma vida mais ligada ao que vai acontecer do que ao que já aconteceu. A angústia maior, imagino, origina-se disto: vivemos nesse presente em que o futuro chega mais rápido, e as coisas acontecem numa velocidade mais intensa por conta da tecnologia. Não foi outra a impressão que tiveram os artistas no início do século XX com o aparecimento do automóvel, do telefone, do rádio etc. A ideia de velocidade contaminou o pensamento moderno. E aqui estamos nós, neste início de século XXI, enredados por essa sensação de rapidez no passar dos dias.  

Há os que vivem ainda a expectativa de retornar ao interior para reencontrar o sossego numa cidadezinha pacata, como aquela do poema “Cidadezinha qualquer”, de Drummond, em que ele descreve a mansidão e o tédio do passar lento da vida e das coisas:
Casas entre bananeiras
mulheres entre laranjeiras
pomar amor cantar.
Um homem vai devagar.
Um cachorro vai devagar.
Um burro vai devagar.
Devagar... as janelas olham.
Eta vida besta, meu Deus.

A pergunta é: Com a globalização e as novas tecnologias chegando aos mais distantes rincões, ainda podemos encontrar uma cidadezinha assim, onde nos parece que o tempo parou ou não tem a mínima pressa de passar?  E mais: havendo ainda, poderia a pessoa, já contaminada por toda essa agitação dos grandes centros urbanos, acostumar-se com ritmo tão lento? Quando me pego tecendo projetos nesse sentido, bate-me essa dúvida e penso que estou mesmo condenado a viver nessa correria. Porém, sei que esse estilo de vida não é saudável. O mínimo que posso fazer, então, é desacelerar, encontrar momentos para a reflexão, para que os meus atos não sejam apenas uma sucessão de ações vazias. O pensamento não pode se assemelhar assim a objetos descartáveis. O que nos faz falta hoje é uma maior duração das coisas, dos sentimentos e das ideias.
        

sexta-feira, 3 de dezembro de 2010

SOBRE O PRIMEIRO ROMANCE DE ASSIS COELHO




Que a vida de Lima Barreto renderia um romance todos nós sabíamos, só que, até então, caso eu não esteja enganado, ninguém havia se habilitado a escrevê-lo. Assis Coelho, depois de defender sua tese de mestrado sobre a vida e a obra do autor de “Triste fim de Policarpo Quaresma”, encheu-se de entusiasmo e escreveu esse romance.
Narrando em detalhes os passos e descompassos de Lima Barreto, Assis nos faz penetrar no universo suburbano e angustiado desse autor. Podemos visitar, através da sua narrativa realista, o Rio de Janeiro do início do século XX.  Assim, o livro é, também, um documento histórico que nos permite entender o panorama do Rio naqueles conturbados anos do século XX. Além disso, é um meio para acompanharmos a vida do escritor carioca até a sua morte. A existência de um autor marcado pela genialidade e pelo preconceito dá o tom de drama que perpassa a narrativa de Assis Coelho.
Para os que quiserem comprar o livro “Lima Barreto, um caminhante libertário”, basta acessar o site da Editora Baraúna: www.editorabarauna.com.br

ALGUNS COMENTÁRIOS SOBRE “LIMA BARRETO, UM CAMINHANTE LIBERTÁRIO”:

Seguir os passos do autor de O Triste Fim de Policarpo Quaresma pelas ruas do Rio de Janeiro, no início do século XX, e conhecer de perto seu dia-a-dia de miséria e revolta, de lucidez e embriaguez, agora já é possível. Para tanto, basta mergulhar na leitura deste romance de Assis Coelho, que nos apresenta, com grande sensibilidade, o cotidiano do amargo e genial Lima Barreto.
                                       Geraldo Lima, escritor e professor.  

O texto de Assis Coelho cativa pela linguagem, interessa pelo assunto, reflete pela intensidade. As descrições perpetradas com a autoridade de uma testemunha ocular registram um cenário que expõe a condição humana, revelam dores que atravessam o tempo e o espaço. "Eram dores tão parecidas, eram dores tão semelhantes sob peles de cores diversas." Desse modo, Assis consegue representar o todo pela parte por meio de um Lima feito do barro brasileiro, matéria universal. Refletem mazelas não só do Rio do início do século XX, mas também as que assolam o Brasil de hoje ou, talvez, o Brasil de sempre.
Juscelino Sant’Ana, professor e Mestre em Linguística Aplicada.

Assis Coelho ficcionaliza em breves páginas a vida do escritor Lima Barreto, enfatizando as relações familiares e as dificuldades com a bebida; a oposição ao establishment; e a acuidade do olhar que ele lançou, por meio de suas obras, sobre uma cidade que se transformava, ignorando a maioria de seus cidadãos. É do entrelaçamento dessas três ordens que se nutre tão bem o texto de Francisco, valorizando, sobretudo, o caminhante que só a morte pode deter, liberto, afinal, das desditas contra as quais lutou durante sua vida.

Maria Isabel Edom Pires, doutora em Literatura Brasileira (UNB)

         De uma maneira bem particular, Assis Coelho narra a vida de Lima Barreto e nos deixa uma saudade de tempos não vividos por nós. Cita lugares pitorescos, descreve imagens de sonhos e revoltas. Em certo momento cita: "...Saiu assobiando um novo chorinho de nome "carinhoso" que um rapaz chamado Pixinguinha havia composto...". Que momento importante aquele. A bebida, o hospício, os preconceitos enfrentados por Lima Barreto, a descrição do Rio antigo e suas paisagens maravilhosas que se estendem pelo tempo. Assis nos retrata tudo isso de maneira que a vontade é de se chegar ao final do último capítulo.    

Dora Duarte, poetisa.

Assis Coelho traz-nos à lembrança exemplo de um brasileiro de convicta e destemida brasilidade, que se impôs contra um regime republicano opressor e uma sociedade xenófoba, deslumbrada, exploradora e hipócrita, de um Rio de Janeiro no ocaso do séc. XIX e início do XX. Valendo-se, ora da onisciência, ora da onipresença, numa panvisão histórico-urbana, o autor mergulha na mente e alma de seu biografado, expondo com minúcias o sofrido sonhador de utopias possíveis contra “... um Brasil com seu povo servil”.

Ronaldo Alves Mousinho, Presidente da Academia de Letras de Taguatinga-DF.


Assis Coelho é escritor e professor de Inglês da Secretaria de Educação do Distrito  Federal. Formou-se em Letras no CEUB e fez mestrado na UNB. Publicou os livros de conto “Labirintos” e “Homens de Fumaça”.