terça-feira, 30 de dezembro de 2014

Vida que vai, vida que chega

Por Geraldo Lima

Este ano, a Dama da Foice não economizou na colheita e ceifou a vida de muita gente boa, –  gente que faz falta ao nosso cenário cultural. Fez um estrago grande no time dos artistas, dos escritores e dos intelectuais, aqui e em terras estrangeiras. Vão dizer: isso é normal, que nesse time aí tem muita gente, e a morte não descansa nunca, ceifando vidas a todo instante, sejam elas famosas ou não.

No time dos escritores, por exemplo, ela levou, sem dó nem piedade, três grandes da nossa literatura: João Ubaldo Ribeiro, Ariano Suassuna e Rubem Alves. João Ubaldo escreveu um dos livros fundamentais da nossa literatura: “Viva o povo brasileiro”. Um calhamaço, desses que param em pé na estante. Ariano Suassuna, por sua vez, tornou-se um dos dramaturgos mais populares do nosso tempo ao ter algumas de suas obras adaptadas para a TV e para o cinema. É o caso da peça “Auto da Compadecida”, transformada em minissérie, apresentada pela Globo, e depois em filme de grande sucesso em nossos cinemas. Defensor radical da cultura popular brasileira, criou, juntamente com outros artistas, o Movimento Armorial, com o objetivo de fundir cultura popular e cultura erudita.  Rubem Alves é outro caso de popularidade. Em reuniões de professores ou em seminários sobre Educação em terras brasileiras, quase sempre se faz a leitura de algum de seus textos. Como diria Nelson Rodrigues: É batata! Educador e teólogo, ele fez, sem dúvida, a cabeça de muita gente. A minha, propensa a nadar contra a corrente, criou certa indisposição à leitura dos seus textos, – é que a onipresença tende a provocar em mim uma atitude refratária.

Para além das nossas fronteiras, a morte silenciou Gabriel García Márquez, escritor colombiano ganhador do Nobel de Literatura de 1982. Ele foi responsável, também, por criar o chamado Realismo Mágico na literatura latino-americana. Seu maravilhoso romance “Cem anos de solidão” é um exemplo genuíno desse gênero literário. No cinema norte-americano, a vilã levou um ator de cujas interpretações eu gostava muito, Philip Seymour Hoffman, e outro que sempre me provocou certa antipatia, Robin Willians. Explico a causa dessa antipatia: ele, para mim, queria ser engraçado em todas as ocasiões, e isso me pareceu sempre excessivo, chato até. Graça demais cansa. Tolero-o em “Sociedade dos poetas mortos”, e só! Mas tenho consciência da sua importância para o cinema de Hollywood e do quanto ele arrancou risos de plateias pelo mundo afora. Seymour foi um ator denso, desses capazes de nos fazer sentir a vida em sua força máxima. Ator com vida interior intensa e força expressiva marcante. Um filme protagonizado por ele que recomendo é “Dúvida”. De quebra, há ainda a presença arrebatadora da atriz Meryl Streep.  No Brasil, o estrago não foi menor: a infeliz calou José Wilker, Paulo Goulart e Hugo Carvana, vozes e expressões de relevo na televisão, no teatro e no cinema. Nossa mídia televisiva, tão infestada de caras inexpressivas, ficou a partir de então mais pobre e insossa.

Bom, a lista fatídica continua, daí o imenso estrago feito pela “Indesejada das gentes”. O ano está findando, torçamos, então, para que ela tenha já terminado seu triste e melancólico trabalho. A vida só não fica sem sentido com tantas perdas porque, na contramão dessa atividade fúnebre, ela se renova sempre. Daí eu saudar, neste texto, a chegada de duas novas pessoinhas à nossa família, dois novos sobrinhos: Nícolas e Maria Flor. Vida longa a vocês, pequeninos!


Para todos e todas, um 2015 de superação e harmonia!  

(Texto publicado, originalmente, no Jornal de Sobradinho e no Jornal Opção)

sexta-feira, 5 de dezembro de 2014

Um estranho mundo que nos atrai

Por Geraldo Lima

Tomei contato com os textos de Claudio Parreira no extinto O BULE, blog literário do qual fomos colunistas.  O humor, a narrativa ágil e envolvente, as frases curtas, sem floreios, a temática variada, criando vasto painel sobre as mazelas que afligem o ser humano, tudo isso me fez gostar da sua narrativa desde o princípio. Parreira explora, de modo bastante irreverente, a seara do fantástico e do absurdo, dando sutis estocadas no senso comum e no real insosso.

A sua biografia nos dá conta de que ele já foi colaborador da revista Bundas, do jornal O Pasquim 21, Caros Amigos on-line e da agência Carta Maior. Em 2012 lançou seu primeiro livro, o romance Gabriel (Editora Draco). Agora, mais recentemente, lançou o livro de contos Delirium (Editora Penalux), e é sobre ele que tecerei alguns comentários.

Delirium é composto por vinte e nove contos. Boa parte deles pode ser classificada como minicontos, como é o caso de Mariana, Camarim, O vendedor de datas e Ponto de vista. Os longos, no caso, não passam de sete ou oito páginas. A narrativa, em boa parte deles, é feita em primeira pessoa e, predominantemente, por um narrador masculino. Fantástico e absurdo se  alternam, atravessados pelo humor e pela ironia, elementos marcantes na obra de Claudio Parreira. Um tema parece predominar ao longo do livro: a solidão do indivíduo na urbe moderna.  

É bom que se diga que esse tipo solitário, retratado nos contos de Delirium, é sempre do sexo masculino (a mulher aparece aí, geralmente, como a femme fatale ou como a mulher misteriosa, quase impalpável). No conto Z, o protagonista, por exemplo, amarga sua solidão há séculos (eis a presença do fantástico) por ter violado o acordo feito com Ana, mulher misteriosa que lhe surgiu do meio da multidão (ou “desse hospício”, como diz o narrador-personagem). O acordo consistia em não abrir o livro que ela havia colocado diante dele, no chão. Ao se render à curiosidade, ele trai a confiança dela, levando-a a partir e se misturar de novo à multidão.  Nesse conto, aliás, o enredo é bastante complexo, pois o autor joga com a dualidade entre real (o que existiria de verdade, o palpável) e ficcional (o que é fruto da imaginação, no caso, do personagem Z). Diz Ana: “Eu tenho todos os vícios – continuou ela. – O pior deles é crer nos homens reais”. O que temos aí é a ficção dentro da ficção, o ilusionismo arrastando o leitor para as teias da dúvida.

Exemplo clássico de narrativa do absurdo, quase aos moldes de Kafka, Ausência de crime aparece como um dos melhores contos desse volume. O protagonista se vê, de repente, diante de uma situação que foge ao normal: um oficial entra em sua casa com o objetivo de prendê-lo. Mas que crime ele praticou? Assim como o personagem de O processo, de Kafka, não há, aparentemente, crime algum. O processo, no entanto, desencadeou-se e parece irreversível. Até que aparece o crime – e aqui entra a verve humorística, debochada, de Claudio Parreira: “– Ausência de crime – falou. – Sua ficha é a única no País que ainda permanece limpa, e isso, segundo o novo Código Penal, configura crime da mais alta hediondez”. Ironia fina, se pensarmos no que acontece hoje no Brasil com a corrupção contaminando todos os setores da sociedade. Parreira parece, no entanto, esquivar-se de imprimir um tom muito sério ou sisudo à sua narrativa, mesmo quando ela aponta para uma crítica mais contundente ao comportamento humano.

Sobre os personagens que povoam Delirium, disse Luiz Bras: “São homens e mulheres de natureza excêntrica. Comandados por outras leis físicas e espirituais. Sua companhia incomoda, dá medo. Por isso gostei tanto de conhecer essa gente”. O que Parreira faz é isto: apresentar-nos uma galeria de tipos estranhos, gente que habita o reino do fantástico, da mágica, do irreal e, às vezes, do real gasto e sufocante. Gente capaz de criar um sol dentro do quarto, que flutua, que tira um crocodilo da boca, que vomita mitos.  Gente que retrata, de certo modo, a fragilidade da nossa existência. Daí a importância desses contos de Claudio Parreira: apresentam a vida humana na sua complexidade, – ela que, muitas das vezes, é marcada pela solidão e pela dor.

(Resenha publicada, originalmente, no Jornal Opção,  em Goiânia)