quarta-feira, 30 de maio de 2012

Dobras





Por Geraldo Lima


DOBRA 2.

A casa era imensa. Um labirinto. Um desdobrar contínuo de cômodos e móveis. E ele entrara ali sem saber bem por quê. Um convidado? Alguém da família que retornara depois de anos e anos morando longe? O filho pródigo retornando ao seio da família? Misturou-se aos presentes, tentando obter respostas. Jornada ingrata, infrutífera. Seu corpo, esbarrando em outro, não recebia sinais desse contato. Suas palavras, migrando da boca rumo a um ouvido qualquer, não encontravam receptor e perdiam-se no emaranhado de conversas e risos.

Não pode precisar, agora, se aquela reunião era uma festa ou um velório. A imagem de um morto de terno escuro, dentro de um caixão no centro da sala, em torno do qual todos se revezavam, ora  serenos, ora  mortificados pela dor, vem vez ou outra à sua mente. Mas imagina que seja a imagem de um outro lugar, num outro tempo, pois já não é comum as pessoas velarem assim, em casa, servindo aos presentes, entre uma salve-rainha e um pai-nosso, um cafezinho com biscoitos e pães de queijo. Numa cidadezinha do interior, talvez ainda fosse possível. Lá, a realidade persiste inalterada e mítica. Mas naquela cidade, que parecia ter crescido assustadoramente, desertando-se dos traços primevos, alargando-se para além do seu útero, inchando, perdendo-se de si mesma, ah, naquela cidade, um ritual assim só seria possível num sonho.

Se era uma festa, faltavam, no entanto,  alguns ingredientes, como música e bebida. Havia, pelo esvoaçar de frases, o entrechocar de conversas, o tilintar de palavras debatendo-se na loca das bocas, algo de festivo, a autêntica alegria das pessoas que se reencontram depois de longo tempo separadas. Mas era só isso, nada mais. Ao mesmo tempo, vem-lhe à mente a imagem de um ambiente carregado, de vozes que altercam, e esse esvoaçar de frases é só o resultado desse combate verbal.

Quem eram as pessoas que lá estavam?

Tenta, em vão, resgatar da lixeira da mente alguns nomes, mas a tentativa esbarra na imprecisão, pois nomes e pessoas não se casam. Aquele, ao qual chamavam de Alex, talvez fosse, na verdade, Lúcio; e aquela, que passou o tempo todo sentada num canto, isolada, às vezes choramingando, às vezes rindo baixinho, tímida, indecifrável, incapaz de encontrar um elo que a ligasse aos demais, talvez nem se chamasse Denise; Maria, provavelmente, fosse Eulália; mas Eulália  lhe parece um nome fora de moda, quase um arcaísmo, e não se encaixa no perfil da mocinha que atravessou a sala e arrastou atrás de si alguns olhares masculinos fisgados pelo torneio das suas pernas  de penugem dourada.

Foi atrás dela que seu olhar, inexplicavelmente, empreendeu uma viagem alucinada e parece não ter voltado mais àquele momento, como se de repente tivesse escorrido por uma fenda no tempo, caindo noutro espaço, ainda mais impreciso.

        (Continua...)

sábado, 26 de maio de 2012

Dobras




Por Geraldo Lima

DOBRA 1.

Ativa todos os sensores. Como um cão de caça, apura o olfato. Checa os arredores nos mínimos detalhes. Rastreia a memória em busca de parâmetros. Mesmo assim, escapa-lhe ainda a realidade que emergiu, em questão de segundos (ou milionésimos de segundos), diante dos seus olhos. É como se um mágico cobrisse a paisagem à sua frente com um pano e, ao retirá-lo, aparecesse outra bem diversa. Isso já estava acontecendo há dias. Talvez anos. Séculos, quem sabe.

Está andando à deriva?

É ainda um humano?

Precisa de respostas urgentes, porém tem quase certeza de que não as terá nunca. Há muito tempo, já não consegue falar com ninguém. O mundo já não é palpável. O corpo perdeu suas bordas. Algo mudou bruscamente, e ele não se deu conta.

Há poucos instantes, lembra-se bem, estava lá, naquela casa, entre pessoas cujos traços fisionômicos e timbre de voz já começam a se dissolver no ácido do esquecimento. Luta contra essa corrosão, esse desmoronar do passado, esse mergulho no Letes. Quer reter tudo isso para que funcione, quem sabe, como um fio de Ariadne, porque acredita, piamente, que um dia ainda irá voltar ao ponto de origem, o ponto de onde saiu, talvez ( e essa é uma boa hipótese ) para comprar cigarros, e para onde nunca mais voltou. 

(Continua...)

sexta-feira, 25 de maio de 2012

Sono


                                     O pesadelo, de Henry Fuseli, 1802

Por Geraldo Lima

Estava deitada, dormia imersa no REM, quando a porta rangeu de leve, forçada por mão matreira. Um corpo levitou e ganhou o interior da casa sem fazer ruído algum. Não podia vê-lo, apenas sentir seu hálito quente bafejando sua nuca. Enquanto a presença do outro crescia dentro do seu sono, tentava, em vão, reencontrar a voz, os braços e as pernas inutilizados pelo pânico.

domingo, 20 de maio de 2012

Fenda



Por Geraldo Lima

Era preciso então só começar para que tudo se desarranjasse. Um primeiro gesto, arcaico, corroído pela raiva, quase impensado: a mão que se desprende do tampo da mesa e se ergue guindada pelo braço longo e forte. E depois um estalo. Um ai agudo que se prolonga na memória durante anos e anos, como uma faca que fosse penetrando lenta e meticulosa a alma, para dentro sempre, no mais profundo do ser, aí, onde o carnegão se formou.

Foi a partir dessa fenda aberta na alma que ela começou a vazar.