quinta-feira, 23 de abril de 2015

A voz


Por Geraldo Lima


O telefone toca e saio correndo do banheiro enrolado na toalha. Chego ainda a tempo de atender e ouvir do outro lado a voz que vem me aporrinhando há dias. Voz de homem, fazendo-se de educado e sedutor. "Olá, boa-noite, tudo bem com você?", ouço e, de imediato, sinto vontade desligar na cara do sujeito. (Já me ergui da mesa às pressas, em meio à refeição, para me deparar com essa mesma voz de telemarketing brotando de um universo paralelo, moldado pela tecnologia e pela frieza dos negócios.) Sinto vontade, mas não o faço. Desta vez estou disposto a ir até o fim, para ver os desdobramentos desse enredo já gravado. A voz aguarda minha resposta. Deve pensar: que cara mal-educado, mas, ainda assim, continua. "Você tem TV por assinatura?". Mantenho-me calado, só aguardando as próximas falas do ser eletrônico que ousou me tirar do banho. Não há respiração do outro lado. Parece mesmo não haver vida. Só máquinas e intenções frias e extremamente calculadas. Deve ter pensado que eu, além de mal-educado, tinha um baixo nível de escolaridade, pois fez uma pequena mudança na pergunta: "Você tem algum tipo de TV a cabo?". Não sei se foi impressão minha, mas o tom de voz estava mudando, parecia tornar-se impaciente, meio rude. Mas, como era possível?! Estava tudo tão calculado assim? Essa voz era capaz de exprimir algum tipo de emoção? Comecei a gostar do jogo, a sentir (ainda que fosse ilusório) que estava ganhando. "A NET agradece a sua atenção!", e dessa vez não tive dúvidas: a voz eletrônica estava irritada. A voz eletrônica deixou escapar algum tipo de sensibilidade, de emoção pós-humana. Ah, da próxima vez, só por curiosidade literária, vou responder uma ou outra das suas perguntas para ver se essa previsibilidade eletrônica é infinita.