domingo, 21 de julho de 2013

Breves considerações sobre o teatro de Arthur Miller






Por Geraldo Lima

Devemos nos alegrar sempre com o surgimento de um dramaturgo que consiga explicitar, de modo criativo e contundente, as múltiplas facetas das relações humanas.  E que o faça de tal modo que o espectador, diante do palco, sinta-se instigado a refletir profundamente sobre si mesmo e sobre o mundo em que habita, embora toda a ação dramatizada ali transcorra num cenário e numa cultura bem diversa da sua. Arthur Miller, autor de algumas das peças mais importantes da cultura ocidental, pode ser citado como um desses dramaturgos fundamentais para entendermos a alma humana. 

Arthur Asher Miller, filho de um casal de imigrantes judeus polacos, nasceu em Nova Iorque, no ano de 1915, e faleceu na cidade de Roxbury, estado de Connecticut, em 2005.  Viveu, portanto, um longo período e pôde, como dramaturgo, jornalista e cidadão norte-americano, vivenciar momentos dramáticos da História humana e do seu país, como a Segunda Guerra Mundial e a Crise de 29 (ou Grande Depressão). 

Este último fato histórico teve impacto direto na vida do autor de A morte de um caixeiro-viajante porque afetou, diretamente, a vida financeira de sua família: seu pai, empresário do ramo têxtil, viu-se falido e obrigado a mudar, com a família, para o bairro do Brooklyn. Esse acontecimento dramático na vida do autor vai ser retomado na peça Depois da queda, mais precisamente no embate entre o protagonista Quentin e o seu pai surpreendido pela bancarrota dos negócios.  A peça é, na verdade, um acerto de contas do autor com o seu passado, e esse confronto entre pai e filho, num momento de crise financeira, representa o que Arthur Miller viveu na juventude, daí Quentin poder ser tomado como seu alter ego. Desse modo, o teatro que ele vai desenvolver refletirá, sobremaneira, a sua experiência de vida.  Sem cair, obviamente, no mero registro autobiográfico: a crítica feroz ao american way-of-life e às injustiças sociais impostas pela competitividade capitalista estão no cerne de boa parte de sua obra teatral.  Um exemplo claro disso encontra-se na já referida peça A morte de um caixeiro-viajante (Death of a salesman), escrita em 1949 e pela qual ganhou o prêmio Pulitzer.

Nessa obra, de uma carpintaria dramatúrgica impressionante, o ambiente naturalista vai sendo envolvido pouco a pouco pelo onírico e pelos efeitos delirantes da memória do protagonista, o caixeiro-viajante Willy Loman. Miller retrata a queda desse homem, cujos alicerces éticos e morais foram erguidos sobre a frágil segurança da mentira e dos sonhos de grandeza, com rigor psicológico e olhar crítico.  São “fraturas no sonho americano’, nas palavras de Otavio Frias Filho, que vão sendo expostas nesse caso. Diante das atitudes do protagonista, somos levados, pelo talento dramatúrgico de Arthur Miller, a dupla reação: ora aderimos à sua causa, ora nos opomos a ele com quase nojo. Aderimos à sua causa ao percebermos que ele está sendo engolido pela máquina capitalista e sem se dar conta disso. Mas rejeitamos, com veemência, o modo com que ele, na posição de pai e marido, vai, ao longo do tempo, estragando os filhos e sujeitando a esposa ao seu comportamento obsessivo, egoísta e estúpido. O conflito familiar que se instaura aí, com uma força assustadora, é resultante dessa cultura forjada a partir das exigências de um sistema econômico que leva alguns indivíduos a buscarem de forma predatória o seu lugar ao sol. O fracasso de Willy Loman, como pai, marido e caixeiro-viajante, expõe, assim, a fragilidade de um projeto de vida cujo valor maior se encontra alicerçado na supremacia da aparência física sobre a do conhecimento sistematizado – este último, representado pela figura vitoriosa do jovem Bernard. São palavras de Willy dirigindo-se aos filhos Biff e Happy: “Foi isso mesmo que eu quis dizer, o Bernard pode ter as melhores notas da escola, entende, mas quando sair para o mundo, entende, vocês dois vão estar cinco vezes na frente dele.  Por isso é que eu agradeço a Deus do céu vocês dois serem feito dois Adônis”. No entanto é ele, Bernard, que, trilhando o caminho apontado pelo sonho americano, triunfa como advogado.

Dentro do otimismo do sonho americano não há lugar para fracassos, não há lugar, enfim, para indivíduos como Willy Loman. As palavras da professora Daise Lilian Fonseca Dias, no seu artigo “O fracasso do sonho americano em A morte do caixeiro-viajante de Arthur Miller”, iluminam mais ainda o que foi dito: “Seu sonho fracassou porque estava centrado na fantasia e em ideias tão vagas e contraditórias quanto as que seus antepassados idealizaram e que até hoje impulsionam o homem americano para uma busca frenética pelo sucesso econômico, sem, contudo, permitir a ideia de um fracasso”.

O teatro de Arthur Miller desnuda, de forma corajosa, todas essas contradições presentes no arcabouço do tão propalado sonho americano. Miller é, ainda, nas palavras da professora da Universidade Federal de Campina Grande, Daise Lilian Fonseca Dias, “o poeta da consciência política”. Essa sua consciência política estava, de certo modo, ligada às ideias comunistas. Por conta disso, em 1956, após ser denunciado pelo diretor de teatro e cineasta Elia Kazan, viu-se intimado a depor perante o Comitê de Atividades Antiamericanas do Congresso. Num gesto de extrema nobreza, recusou-se a apontar colegas ao Comitê. Na peça Depois da queda (After the fall), o autor enfoca, de maneira crítica, essa passagem lamentável da História da democracia americana. E é sobre essa peça, a cuja montagem tive a oportunidade e a felicidade de assistir em Brasília, no teatro do CCBB (Centro Cultura do Banco do Brasil), que falo na resenha abaixo:

Um Arthur Miller de encher os olhos


O bom texto teatral, como qualquer obra de arte, é aquele que nos faz penetrar num mundo vasto, do qual só podemos emergir outro. Uma obra assim nos permite perceber as relações humanas nos seus mais diversos matizes, dos conflitos amorosos ao embate político ou ideológico, da amizade mais sincera à traição que sempre aniquila. Vemos o ser humano, nesse caso, em sua plenitude: capaz de mesquinharias e de gestos heroicos. Tomando emprestado o discurso de Nietzsche, humano, demasiado humano, é assim que o vemos. A sua alma vaza pelos poros. Ali, no palco, na figura dos atores e das atrizes, a vida se descortina assustadoramente bela e trágica diante de nós. É para fora do nosso eixo de comodidade que somos arrastados todo o tempo. É nossa consciência que é fustigada sem trégua.

Tudo isso pode ser atribuído à peça que Arthur Miller escreveu após a morte da atriz Marilyn Monroe, com quem foi casado de 1956 a 1961. Depois da queda, escrita em 1964, mostra, de modo impiedoso e, às vezes, bem-humorado, o cenário político dos Estados Unidos durante a caça aos comunistas (e aqui o autor dessacraliza também a visão romântica do intelectual engajado), sua relação com a família e, obviamente, com o mito Merilyn Monroe. Arthur Miller não fala diretamente da sua vida. É na figura de Quentin, um advogado bem sucedido, e de Maggie, uma pop star depressiva, que ele traz à tona o seu passado.  É, claramente, uma obra autobiográfica, mas que vai além do expor os percalços amorosos e familiares do autor.

Esta nova montagem da peça do dramaturgo norte-americano, ganhador do Prêmio Pulitzer de 1949, tem tradução e direção de Felipe Vidal e conta com a participação de um elenco afinado: Simone Spoladore, por exemplo, se sai muito bem no papel de Maggie/Marilyn Monroe. Lucas Gouvêa (Quentin/Arthur Miller), com memória invejável, leva sua fala ácida e caudalosa de ponta a ponta sem grandes escorregões. Gostei, particularmente, da atuação da atriz Thais Tadesco (Holga, Rose): sensível e ágil na passagem de uma personagem a outra. Repito: o elenco é afinado. E é isso, aliado à qualidade magistral do texto, que faz com que o espectador se mantenha ligado durante as três horas de duração do espetáculo.  A peça fez sua estreia nacional aqui em Brasília no dia 19 de outubro de 2012, no CCBB (escrevo esta resenha no dia 10 de novembro, um dia antes de ela encerrar sua temporada por estas bandas). Daqui, parte para uma turnê nacional (só não sei se será apresentada apenas em teatros do CCBB).  Fiquem, portanto, bem atentos, pois este é um espetáculo teatral imperdível.

(Este texto foi publicado, primeiramente, na revista eletrônica Diversos Afins )

quinta-feira, 4 de julho de 2013

A questão de Paulo





Por Anderson Fonseca

Há romances que são um tratado teológico como Ulisses de James Joyce ou O Castigo de Dostoievski, a tentativa que se nota em romances do gênero é conciliar o bem e o mal mascarados em personagens ou diálogos típicos a tratar do assunto.

O romance Um, de Geraldo Lima, pode ser classificado como teológico, embora não fosse intenção do autor.

O personagem central do romance, Paulo, mesmo nome do personagem bíblico, é um ex-seminarista que se encontra dividido entre duas mulheres, Ana e Ariadne. Tal como o personagem da Bíblia, Paulo se põe a questionar sua fé, justamente porque ambas as mulheres se tornam a presença invisível do conflito do bem e do mal na carne e apesar do desejo ser aceito por ele, apesar do pecado ser às vezes apresentado como uma vontade inexpurgável, Paulo, ainda sim, anseia o Bem como forma de libertação de sua condição limítrofe. Este Bem é a visão de Deus que aparece no inicio – episódio que também faz referência à conversão de Saulo à fé cristã e a mudança do seu nome para Paulo -; a visão, mesmo posta em dúvida (pois como – se pergunta Paulo – Deus o escolheria para revelar sua natureza imutável?) é palco da busca religiosa (o religare do narrador-personagem com a fé).

Cada uma das mulheres desempenha um papel central nessa busca de conciliação de Paulo com a religião. Ana, assim como a personagem bíblica de mesmo nome, aparece no romance sorrindo. O sorriso de Ana é o palco de abertura para o conflito de Paulo. No inicio, quando lemos a obra, imaginamos que ela representasse o caminho para graça divina de que necessita Paulo. E, no entanto, enganamo-nos, Ana, na verdade, é a carne, o pecado, o mal do qual Paulo deseja fugir, enquanto Ariadne, a outra mulher de sua vida, é – como o mito – o fio que o conduz de volta ao estado de graça. Em Ana, Paulo vive a tentação do pecado, e em Ariadne, a oportunidade de reencontrar-se e conciliar-se com Deus.

Mas o centro de seu tormento é a incerteza sobre a revelação divina. Como Deus o escolheria para revelar-se – pergunta-se o personagem – se ele é um pecador? E tal como o livro de Jó, em que um acontecimento desencadeia um discurso teológico em defesa da justiça de Deus, o romance de Geraldo Lima – a partir do aparecimento de Deus para Paulo no seu apartamento – desencadeia um discurso sobre a relação entre fé e razão, entre o humanismo e teocentrismo, e a metafisica do bem e mal. Talvez o autor, seguindo a filosofia agostiniana, tenha elaborado seu argumento, numa tentativa arriscada de provar que o homem pode reencontrar sua humanidade abraçando a fé. Mas, quanto a isso, é um risco maior ainda fundar este argumento, visto que o homem, desde o renascimento, encontrou sua humanidade na idealização de si mesmo.

O romance de Geraldo Lima encontra-se deslocado em uma sociedade mergulhada num discurso ateísta. E o romance não aponta nenhum caminho para retornar a fé, nem pretende, nem sugere, age como o romance deve ser: um emaranhado de discursos que povoam nossa mente de leitor lançando-nos em diferentes abismos. Como escreveu o salmista, “quando olho o abismo o abismo me olha”, olhar o romance Um, é ver-se perdido numa teia de incertezas que permeiam nosso século. Superar a dúvida e encontrar a fé, eis o caminho. Mas Paulo opta por outro, nem a fé nem a razão, senão a si mesmo. A resposta que ele encontra é a resposta buscada pelo homem: não deve o homem dividir-se entre RAZÃO X FÉ, ele mesmo é a resposta. O romance termina, portanto, de forma nietzschiana, elevando o homem acima do bem e do mal.

O que é o homem senão vazio, aí está o achado de Geraldo Lima: ao afirmar-se acima da fé e da razão, ao não escolher nem um, nem outro, Paulo encontra-se a si mesmo, encontra seu deus interior, mas eis que este deus é vazio, um ser sem “contorno” (LIMA, 2009, p.114), e no fim, ei-lo dividido novamente entre o “desespero e o fascínio” (LIMA, 2009, p.115).

O dilema central do romance: a divisão conflituosa do homem entre o céu e a terra, fé e razão, é caracteristicamente barroca, o que leva-nos a chamar o romance Um, de Geraldo Lima: romance barroco. As características desse estilo presente em sua obra são: prosa lírica (a imagem de Ana como o pecado e Ariadne a graça divina), e sacra (quando o narrador busca reconciliar-se com Deus depois de se reconhecer como indigno).

Um, figura, pois, entre os romances de temática teológica que mais souberam explorar o tema. A pergunta que me faço, ao acabar de ler o romance, é: há diferença entre o sagrado e o profano num texto literário?


LIMA, Geraldo. Um, LGE Editora, Brasília, 2009.