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sábado, 21 de abril de 2012

A saga do nada


Por Geraldo Lima


Não há mais sol nas vidraças, e as secretárias já retornam para casa após retocar a maquiagem. Vêm pela calçada, deslumbrando os homens estacionados nos bares e lanchonetes. Passam — e o perfume permanece atiçando os instintos.

Sem a passagem delas, a tarde estaria incompleta, despida do rugido amoroso do ruge, do grito rubro dos batons, das insinuações vermelhas dos esmaltes, dos “aromas nítidos e envolventes”; e as bolsas felizes: sedutora geometria; ainda os pezinhos no casulo de fino couro, de camurça — abruptos seios, ancas virulentas, nádegas imponentes... Nunca as teremos, mas de qualquer forma é muito bom observá-las coordenando os movimentos graciosos; é alentador poder ao menos desejá-las na mais infinita distância; é um lenitivo para o coração imaginar cenas dignas de Hollywood com elas, ou com uma delas: há sempre uma preferida, não é verdade? Meu Deus, eu disse cenas dignas de Hollywood? Não, não é bem assim que acontece no limbo de cada um aqui: sei que impera o sexo explícito!

As que vêm realçadas dentro duma saia justa: as mais cobiçadas — passam e suas cordilheiras carnosas permanecem ondeando na memória. “Nada mais clássico que uma saia justa. Nada mais moderno que esta saia justa. O clássico revisitado ganha ares e personalidade contemporâneos.” Ó, vasto mar dos desejos, permita que o meu barco navegue saciado em suas límpidas águas! (Peço-lhes desculpas por esses arroubos passadistas: um dos nossos aqui se diz poeta e, depois de ingerir algumas cervejas, põe-se a psicografar esses versos do século dezenove, e haja guardanapo! Na verdade, ele é um poeta estacionado na garagem do tempo, criou teia de aranha na imaginação e... mas não é isso que importa agora.) — O que importa agora? Os seios de uma delas à mostra, sazonados.

Meu Deus!

O fato é que as secretárias (nem todas são secretárias, sabemos disso, mas imaginá-las assim excita ainda mais, compreende? Detalhes do tipo: de que maneira incendiária cruzam as pernas; o que é proposital e o que é apenas displicência humana; a infinita bondade de seu perfume...  Coisas assim seqüestram nossos pensamentos, e nem sempre nos achamos aqui, ou atrás das mesas abarrotadas de papéis inúteis; ou ainda nos surpreendem enquanto digitamos no computador...), o fato é que as secretárias desfazem o cinza da paisagem a esta hora da tarde. Tardinha. Tarde inflada de desejos. As secretárias... que mais importa senão vê-las, revê-las, revesti-las com o ordinário tecido dos nossos olhos? — Vida boba.  — Mas ao menos isso, meu camarada.

Elas nunca nos viram. Nunca nos verão. E Deus sabe disso. Deus sabe de toda  crueldade e indiferença possíveis nos homens, mesmo nessas belas aprisionando a tarde em torno de seus artifícios. Nós, no entanto, já as perdoamos. Somos infinitamente bons? Não. Elas é que são bonitas e reduzem o que poderia crescer de ira e indignação em nós a quase nada. Ou a nada. Conseguem nos desarmar  apenas passando a alguns metros de nossos radares, às léguas dos canteiros de nossas mãos, onde brotam flores generosas. Mas há tempos decidimos: pouco importa a indiferença, o desprezo, a imponência, o escárnio delas para com a nossa ínfima presença nesse quadrilátero de concreto cravado na Capital da República; elas existirem e passarem por aqui quase sempre, ou sempre, se possível, é tudo o que nos basta. Nos contentamos com tão pouco porque nada temos. Vê-las é tudo.

Quando uma delas some por alguns dias, ou por vários dias, ou mesmo para sempre, ficamos preocupados, nos entristecemos de verdade. Pensamos: ora, ela deve estar doente. Quem sabe saiu de férias? São humanas, não são? Lá se vai uma semana. Três. Findou-se o mês, e ela ainda não retornou. Não retornará. É como perder uma namorada: dói lá no fundo. Já passei por isso. E o pior é ter de começar tudo de novo: escolher uma outra, dar-lhe um nome...

A banca de revistas do lado já se encontra em completo repouso. O inferninho de automóveis se converteu ao quase-silêncio, ao quase-nada, e já é possível conversar sem ser preciso encostar o ouvido à boca do outro. Aliado a esse quase-silêncio, deflagra-se o golpe da solidão, e é por isso que normalmente nos refugiamos aqui nos bares e lanchonetes. Se é sexta-feira, não retornamos tão cedo para casa. Somos os retardatários. Não há mesmo motivo mais sério que nos arraste daqui, tipo: família reunida, filho fumegando com quarenta graus de febre, compras para o fim de semana, aniversário do filho do vizinho, apanhar as crianças no colégio etc. etc. etc. Somos livres?  — Um dar de ombros responde a isso? — Cada um sabe o que faz da própria vida. De qualquer forma, isso não é motivo para se deflagrar uma discussão infindável. Este é o  fato relevante: a noite nos tem engolido  aqui, passando a língua turva em nosso íntimo desbotado. Mas ainda não é bem isso que  importa agora.

Posso imaginar que já estejam a perguntar impacientes: Quem são esses tipos, tipinhos, sujeitinhos ordinários entregues à farra de desfiar a carne lodosa dos comentários lúbricos? Esses que, apenas observando belas mulheres retornando suadas para casa, chegam ao êxtase. — Suadas, mas perfumadas! Que idiota poderia pensar que elas sairiam à rua sem se produzirem? Pois bem: quem somos? quantos somos? por que somos? como somos? desde quando somos? Perguntas, perguntas. Daremos voltas e voltas e voltas, ainda assim não conseguiremos nos explicar, nos revelar por inteiro, mesmo sendo uma imprudência. — Uma impudência. Assim, de supetão, sem meias palavras, a seco, posso lhes dizer que nada somos, ou que não somos nada, me parece mais enfático. Tipos comuns, quase sempre rondando as imediações do zero, vacilando na borda do abismo do zero absoluto. Um zero à esquerda. Um zero ainda mais à esquerda. Estacionamos. Ficamos. “O tempo passa/ e eu sem ninguém.” Músicas assim têm nos traduzido muito bem: a baixa qualidade comovendo a baixa qualidade.

Sejamos mais objetivos ao narrar: este aqui do meu lado direito é o Gérson, o irônico, que acorda a alegria com a gargalhada de negro sem banzo. Um que consome seus dias no ambiente repetitivo de um banco. Este outro aqui é o nosso Olavo Bilac; ele dribla o tédio das repartições públicas compondo sonetos. Um que caminha tranqüilo para o nada. E eu?  Sou este terno de linho cinza, surrado, com o cheiro horrível dos putrefatos.

Algumas particularidades:

De Gérson: a) um lugar-comum: gosta de loiras, sendo negro; assim sendo... b) a estampa: quase sempre de branco.

De Alberto, o poeta: a) conhece muito bem a obra de Camões: escreve imitando o mestre; b) sendo branco, é branco.

Do narrador: bem, seguem as reticências...

Já não temos mais a encantadora visão das nossas secretárias: as belas já não ornam mais a tarde com o colorido de suas vestes, não inebriam mais os narizes do Setor Comercial Sul com a essência floral de seus perfumes, nem nos arrancam mais suspiros com o balé do rio do andar, transbordando sensualismo pelas margens do corpo. — Mesmo porque já não é mais tarde. Isto é a noite! 

E de repente, eis-nos metidos num seminário de lamentações baratas.

1º painel. Lamentações de Gérson: sua ex-esposa anda querendo esfolá-lo, tirar-lhe toda a grana, a paz, a cervejinha dos fins de semana. Um inferno. Mulher impiedosa, cretina.

2º painel. Nosso Camões, alagado pelo álcool, já tropeça na língua, sacaneia as palavras chutando-lhes as partes íntimas. O ritmo agora é de solavancos. Poetas bêbados são muito engraçados: querem recitar Deus e o mundo.

3º painel. E eu já naquela vontade louca de abrir o cadeado do coração, jorrar feito uma torneira aberta no limite. Falar de mim. Permitam que eu fale de mim, da minha vidinha fodida de advogado que nunca saiu do jugo dos outros, dando ainda uma merda de assistência jurídica a uma empresa montada para foder a alma dos trabalhadores. Olhe, faz assim: deixa ele entrar na justiça, você sabe, essa coisa é morosa, a lei... ah, a Lei! É por isso que eu não sou nada, meus amigos, sou um tipo ressentido, nada esperto. Espertos são aqueles caras lá na empresa, enriquecendo enquanto esfolam os outros. É melhor parar por aqui: lamentações, lamentações. Alguém poderia contar uma piada?

Lembro-me de ter dito que há sempre uma preferida, que no meio da constelação nós selecionamos sempre uma estrela, Mintaka, Alnilam, Alnitak, e aí entra uma série de fatores: um deles é o brilho diferente que ela sobre nós emite. É o arrebatamento. Pois eis a minha. Vou rebobinar o filme até o exato momento em que ela passava por aqui. Ei-la então!  Eis a minha eleita! a mais gostosa de todas com seu corpinho leve, a cintura modelada para caber todinha no círculo das mãos. E hoje ela veio ainda mais irresistível, trajando um macaquinho de linho azul-celeste; uma fileira de botões  dourados parte do vale dos seios e desce até a mina do umbigo. A deusa Ginástica não permite nenhum estrago no corpo da minha pequena. E ela está passando. Veja como move os quadris, com que delicadeza segura a bolsa com alças de pérolas (falsas?)  e pingentes, a elegância com que transporta o corpinho de boneca. Sintam, sintam a influência do seu desodorante perfumado para o corpo inteiro. Nunca me aproximei dela (sei que nunca vou me aproximar), mas posso imaginar  a arte de suas unhas esculpidas para encantar, côncavas, evidentes, finas navalhas tingidas de sangue. A pele macia, revitalizada por mil cosméticos: creme revitalizador, máscara energética, loção tônica, creme fluído de limpeza, óleo energético concentrado. O deus Cosmético. Passou. Minha predileta acaba de passar. — Está indo para os braços do namorado, ou do esposo, ou do amante. Todas, mais cedo ou mais tarde, vão para os braços de alguém: um grande felizardo. E nós aqui cobiçando todas elas, a sua carne doce.

Nunca um de nós aqui se levantou para abordá-las na calçada: isso seria um contra-senso, quebraria as regras do jogo. — O máximo que alguém poderia fazer é ir apanhar cavalheirescamente o lencinho bordado em ouro que uma delas (propositadamente?) deixasse cair. — Mas isso jamais aconteceu, nem acontecerá: em que século você pensa que estamos?Por que é impossível que uma delas, numa bela tarde de verão, lance em nosso rumo o mais irresistível dos olhares e, como que tocada pela flecha do deus do amor, sinta arder no peito o incêndio da paixão? — Porque a modernidade, meu camarada, não permite esse tipo de fantasia. É preciso cair na real. Não estamos mais no século de José de Alencar. A vida moderna é uma bosta. —Ah, sinto nostalgia de um tempo que não vivi.  

Não temos a menor chance. E elas continuam a passar ao largo. Um lago quilométrico, profundíssimo, nos separa. Passam a salvo dos nossos desejos: os mais ínfimos? os mais intensos?  Isso não iria comovê-las: são tão felizes.  Por que não seriam felizes? Todas as coisas de que precisam  estão estampadas nas revistas de moda, de fofocas, de fotonovelas. A minha predileta, por exemplo, saboreia o perfil do galã da novela das oito. Por que seriam infelizes? São amadas, cobiçadas... — Vamos estuprá-las sempre com os nossos olhares duros. 
  
Eis a prova de que já tomamos todas, doses e doses de conhaque. Cessou a delicadeza, a elegância. Agora é a escrotice geral. Está na hora, meus amigos, de levar nossos corpos daqui. Olhe só como termina a nossa farra: daqui vamos rolando por aí, batendo na porta de todas as espeluncas, ou então vamos acabar nos braços duma dessas putas que fazem ponto perto dos hotéis. — Podres! Já bebemos demais. Acabou a delicadeza, a ternura. Aqui a lei das trevas, oscilações do todo como se a vida tivesse escoado para essas bandas seus restos mortais.
 
Ao inferno, meus amigos!

Eis o fim. O fim da noite. O nosso fim. O fim do fim. E nossas belas? Com quem estarão agora? No quarto de algum motel vendo filme de sacanagem, fazendo sacanagem? Talvez estejam em casa, a família reunida em torno do televisor. Mas pode ser que não seja assim. E quem as beija de leve neste instante? Com que ternura (a mesma com que eu a beijaria?), com que ternura ele a morde, engolindo os seus mamilos, arrancando gemidos da sua carne, e desliza a língua até o remanso do umbigo, penetra a espessa vegetação negra ao redor da bocetinha (que eu lamberia tão afoito: um porco fuçando a terra úmida, repleta de odores). Ah, o seu perfume para o corpo todo, a loção para dourar pêlos, pôr neles também a cor do ouro, “auri sacra fames”, a cobiça do sexo. O creme para amaciar as mãos (meu corpo nunca pediu tanta amabilidade, posto que rude, acostumado mesmo com a aspereza da solidão), as cutículas bem feitas: inimitáveis dobras ao redor das unhas. Unhas são farpas de amor e ódio. O creme antitranspirante para as axilas “aplicar uma fina camada uniformemente nas axilas” sabonete neutro de óleos vegetais e glicerina amêndoas xampu natural de abacaxi, de maçã verde creme para os lábios e contorno da boca o batom vestindo os lábios (lábios que eu morderia loucamente como se fossem morangos maduros) e o vestido tubo em crepe vermelho com um provocante decote em V nas costas caindo por terra a visão mais linda deste mundo! a calcinha em renda com lycra branca e meia fina da cor da pele modelando ainda mais as pernas as coxas (ah, as coxas!) meu Deus vou enlouquecer essa proximidade tanta entrei por completo no mundo dela suas revistas eu indo à banca timidamente para comprá-las bijuterias envolvendo o pescoço pulseiras douradas brincos brincos as esmeraldas incrustadas nos anéis nos meus olhos a visão mais linda deste mundo e os sapatinhos de salto alto sobre o tapete, perto da cama...  

domingo, 1 de janeiro de 2012

Amanhã acordaremos mais tarde

                               O Castelo dos Pirineus, de René Magritte

Por Geraldo Lima

21 de dezembro de 2012, tarde chuvosa, ressaca, um princípio de amnésia e melancolia.

Ao abrir os olhos num esforço imenso, percebi que o mundo ainda estava intacto. Pelo menos ali, no apartamento onde eu morava, na Asa Norte, até onde minhas vistas afetadas pela dor de cabeça alcançavam, tudo estava em ordem, e não havia sinal algum de hecatombe ou da fúria de Deus. Grunhi qualquer coisa como, putz, fodeu!, e rolei para o outro lado da cama, quase batendo a cara na parede. Lídia deveria estar ali, mas não estava. O lugar dela na cama estava frio, como se nunca tivesse sido usado.

Enquanto realizava esse movimento brusco, de rolar sobre o lençol amarfanhado e malcheiroso, uma imagem desfocada emergiu na memória, mas logo se apagou. Tentei trazê-la de volta, redesenhá-la com nítidos contornos, evitando as pinceladas impressionistas, de quase borrão, mas o esforço deu em nada. A imagem que pareceu querer me revelar algo meio sinistro imergira do limbo da minha mente como um flash. Depois do clarão, apagou-se, e nenhum esforço mental parecia capaz de acendê-la de novo.

Não consegui retomar o sono e nem resgatar a imagem.  Levantei-me então e, trôpego, avancei rumo ao banheiro. Nesse curto trajeto a imagem reapareceu como um fotograma deteriorado. Tentei reter o movimento ascendente do estômago rumo à garganta, temendo que, nessa desordem de substâncias estragadas, ela se precipitasse de novo no vazio. No fotograma deteriorado pelo mofo e pela umidade, apareceram os contornos delicados de um rosto de mulher. Lídia?

Voltei um pouco mais vazio do banheiro. E fraco também. Mal me aguentando sobre as pernas. Sentei na borda da cama e, amparando com uma das mãos a cabeça fustigada pela dor, tentei decifrar o mistério daquela imagem. O rosto ia se tornando mais nítido, como se uma mão invisível fosse, pouco a pouco, formatando-o em minha mente. 

A imagem ampliou-se. Do tamanho de um pôster agora. Um rosto de mulher, perfeito, como se corrigido no photoshop. Não, não era o rosto de Lídia.

21 de dezembro de 2012, a data fatídica. Agora me lembro de parte do que houve na antevéspera. Ou do que não houve. Do que esperávamos que houvesse logo após aquela despedida insana no sexto andar de um prédio na Asa Sul.  O fim do calendário maia marcando também o fim dos tempos. O fim da linha para a humanidade. O fim da minha vida de atritos com Lídia. Game over, my love! O trem descarrilando e se precipitando de vez no abismo. 
 
Brindamos, foi isso o que fizemos. Brindamos ao fim do mundo. Lídia ainda estava do meu lado, tenho quase certeza, ali, na sacada do apartamento. Alguém subiu numa cadeira e fez um discurso ébrio e sem sentido. Mesmo assim aplaudimos. No estado em que nos encontrávamos, lembro-me bem agora, qualquer asneira que alguém dissesse seria aplaudida com entusiasmo.

– Já é quase meia-noite, Lídia alertou. 

– O último drinque então antes que o mundo acabe!, alguém propôs.

A garrafa de uísque correu de mão em mão. E foi nesse passa e repassa a garrafa que a minha mão esbarrou numa mão de pele macia e quente. Lídia?! Uma corrente de energia e tesão fluiu para dentro do meu corpo, e só entendi o que aconteceu em seguida depois que a mulher, afastando a boca da minha, disse com voz desesperada:

–  Pra que perder tempo, benzinho, se o mundo acaba logo mais?, e senti de novo o gosto ácido de bebida e angústia vazando para dentro de mim.

Ouvi a voz de Lídia? Um quase gemido afastando-se em direção ao precipício? Não sei, não sei. Meus sentidos, avariados pelo álcool e pela cocaína, me traiam a todo instante. Tudo estava dilatado e acontecendo num ritmo alucinante. Ouvi de novo um gemido, um praguejar e vozes se chocando em quase delírio. De repente a imagem de Lídia foi sugada para dentro de um buraco imenso.  

Do que posso me lembrar agora, como se do interior de um redemoinho, a mulher me arrastou cada vez mais para longe de Lídia, enquanto os outros se engalfinhavam numa suruba louca. Embora muito do que aconteceu tenha se perdido na desmemória da embriaguez, o cheiro daquela mulher ainda está grudado na minha roupa. E tento associá-lo agora ao cheiro de Lídia, seu cheiro sempre adocicado, mas não encontro elo entre eles. Não sei como ela se chama, não houve tempo nem bom senso para lhe perguntar o nome. O liame entre um ser e outro havia se tornado bastante precário naquele momento. Se tudo ia se acabar logo mais, assim que o relógio marcasse meia-noite e o calendário maia chegasse ao término, que sentido havia em querer saber o nome do outro?    
          
Texto publicado, originalmente, no site O BULE, dentro da série 'Contos do fim do mundo'. 

terça-feira, 4 de outubro de 2011

Sueli




Por Mariel Reis

às vezes ele me bate. não é toda noite, não. só quando não trago dinheiro. aí ele se zanga. tem muita mulher doida por ele e que se eu não fizer minha parte, posso dar adeus. eu não complico. enquanto ele fala, vou para o banho. me livro da catinga dos outros homens, me produzo. ele, lá, na cama, reclamando. xinga mesmo. bate na cara da tua putinha. abro o zíper e uma chupetinha rápida dobra o malandro. com uma boquinha de veludo dessas e você tá dura. não entendo. o papo muda. a viração não deu muito. otário tá em extinção, sentencia. amanhã você vai faturar mais pro seu amorzinho, não? belisca a minha coxa. sim, meu amor. amanhã tem mais. ele dá umazinha mixu­ruca. finjo. vai garanhão. mete fundo, na sua sue­lizinha. no fundo, um outro cliente. de outro tipo. praquele que a gente abre as pernas com prazer. e a gente é que paga. minha mãezinha, ele geme. minha mamãezinha. me castiga. morde o bico do meu peito. refeito, veste a roupa. me avisa que vol­ta amanhã. nada de artimanhas. quer o dinheiro. nem um tostão a mais ou a menos. me esbofeteia a cara. segura meu pescoço com as mãos como se fosse me esganar. perco o fôlego. meus pés saem do chão, a vista embaralha. mortinha de amor.

Conto extraído do livro 'Vida cachorra', de Mariel Reis.

terça-feira, 23 de agosto de 2011

Névoa


                              Aos portões da eternidade, de Vicent van Gogh

Por Geraldo lima


Já ouve os ruídos de sempre, logo que o sol atravessa as vidraças e as cortinas e avança sobre o breu dos quartos. Não ouve com a mesma nitidez de antes, mas pode distinguir ainda o ronco dos motores dos ônibus entupidos de gente sonolenta, sem ânimo; passos que ressoam na calçada rumo ao trabalho, supõe; um passarinho que canta todas as manhãs na copa da mangueira, um sabiá, tem quase certeza (meu Deus, o que faz um sabiá aqui, longe, longe do seu mundo?!); uma tosse, uma garganta que se livra do catarro logo cedo na casa vizinha.

Todo dia é assim, e há anos ele assiste a esse espetáculo, passivo, quase alheio. Houve um tempo, porém, em que era parte pulsante dele, um dos seus protagonistas. Agora, muito pouco lhe resta ainda para extrair da vida. Sabe que não tarda a noite eterna, avessa à luz, por isso procura sempre se adiantar ao movimento incessante do dia: é o primeiro a se levantar, abrir a porta e respirar o arzinho frio da manhã que se inaugura. — Pai, não passa daí, viu? Nada de ir pra rua — já ouviu mais de uma vez a filha recomendando, proibindo, delimitando seu território.

Antigamente, era ele quem ia à padaria comprar o pão e o leite. Quando todos acordavam, o café já estava pronto e a mesa posta. Hoje, é essa inutilidade que levanta e nada mais pode fazer. Que não pode nem atravessar a fronteira que separa a casa da rua.  O mundo tornou-se perigoso, vasto, indecifrável: uma armadilha para os velhos e as crianças.  O mundo-monstro. O além-mar, o além-portão. O que a mente, gasta, já não pode compreender. O que os olhos, minimizados, já não podem abarcar.

Da sala dá pra ouvir o burburinho de agora e o de muito tempo atrás, com outros sons, obviamente, outros destinos. Esse barulho de roda sobre o asfalto ainda molhado de sereno é da carroça de Minervino, não tem dúvida. Passou a vida toda ouvindo isso, como pode não ter certeza? A voz de dona Efigênia conversando com o leiteiro, ah, o leite que ele vende não é que nem aquela água rala que a gente compra na padaria. Não, não, é leite da fazenda mesmo, saído há pouquinho do úbere da vaca. Vai comprar é desse leite, queira sua filha ou não.
  
Ah, demorou tanto a decidir se comprava ou não o leite que o homem já foi embora. Nem sombra também de dona Efigênia. Aliás, a rua lhe parece agora muito diferente. Que terá acontecido? Mundaréu de carro indo e vindo.  Tem mais barulho aqui fora do que ele consegue ouvir lá de dentro. Também a audição anda meio fraca ultimamente. — Pai, cadê o aparelho pro ouvido, hein? Como o senhor vai ouvir alguma coisa se não usa? Parece criança. Usar até que ele usa, mas não o tanto que devia. Põe e logo retira: o trem lhe dá gastura, é um incômodo insuportável. Prefere ouvir tudo minguado mesmo, retalhos de conversas, palavras mutiladas, sem adorno, sem sentido. Agora, o silêncio é uma ilha onde ele, náufrago do tempo, sente-se seguro e em paz.

Bem que ele queria atravessar a rua, ir até a padaria em frente, mas essa névoa que cobre tudo não deixa. De uns tempos pra cá, as manhãs têm sido assim: vestidas com essa névoa rala, mas persistente.  Pra piorar, sua vista anda muito fraca, quase não o deixando reconhecer as pessoas nem as coisas do dia-a-dia. Juntando-se a isso o fato de a sua memória estar falhando frequentemente, tem-se o quadro clínico completo da sua decadência.  Uma merda! É até motivo de riso. Tratam-no agora como se fosse criança. — Pai, o senhor já almoçou, já se esqueceu?  — Ah, é mesmo, concorda, enquanto é açoitado pelo riso dos netos.

Isso não acontecia quando Joana ainda estava entre eles. Agora, que está velho e só, todos podem fazer o que bem quiser com ele.     

 O rapazinho que o ajudou a atravessar a rua tinha bem as feições do filho de dona Ilda, mas pareceu não o reconhecer. Estranho, na padaria ninguém o reconheceu também. Mas custava eles terem vendido o pão e o leite pra ele pagar depois? Um tempo atrás, não era assim: podia entrar ali sem um tostão no bolso e sair com um saco cheio de pão, que o dono confiava. Ah, também ele tinha que esquecer onde morava logo agora? Pai de quem? Não, não se lembrava. Que aflição! Que desespero silencioso e trágico.

Tudo, tudo parece fazer parte de outro mundo agora. Tem coisa que está aqui e que não estava há pouco tempo atrás. Esse prédio aí, isso não existia. Essas casas apagadas pela névoa lhe parecem familiares, mas muitas lhe dão a impressão de terem nascido, agora, de uma fôrma que ele desconhece totalmente.  Mesmo assim vai se arriscar a ir um pouco mais adiante, até a esquina. Antes de seguir, olha para trás e é como se alguém tivesse passado uma borracha na paisagem, apagando o mundo de onde ele havia emergido: tudo o que lá está, acabou de brotar do nada.

Poderia entrar em pânico, mas já está bastante velho para se desesperar à toa assim. Para quem já passou por situações muito mais complicadas do que essa e tirou de letra, isso é nada. O que tem que fazer é ir em frente.  Tem quase certeza de que a casa do seu compadre Gérson fica só um pouco mais adiante. Vai aproveitar então esse passeio pra lhe fazer uma visitinha, assim mesmo, sem avisar. Um dedo de prosa com ele, logo de manhã, vai lhe fazer bem, pois tem vivido muito só, sem o calor das conversas com os velhos amigos.  


O diabo é que ninguém parece conhecer mais os outros nessa cidade. — Não, não mora ninguém aqui com esse nome, não. O senhor tem certeza que é esse o nome? Ora, por acaso ele está gagá ou louco? Dá vontade de dizer umas coisas, mas é melhor deixar pra lá. Essa gente não merece nem o seu desprezo. Não faz muito tempo, e todo mundo se conhecia. Fulano era filho de sicrano, neto de beltrano, e pronto. Entrava na casa de qualquer um a hora que fosse. Agora, mal abrem a porta. Parece que tá todo mundo se borrando de medo.

Resolve mudar de plano e virar à esquerda, descendo a rua. Vai só um pouco mais adiante e depois decide o que fazer. Sabe que tem que voltar pra algum lugar, só não se lembra bem pra onde. É bem capaz que esse lugar também nem exista mais.  Há tempos, talvez, ele esteja andando assim pela rua, sem rumo certo, barata tonta em meio à multidão. As ideias estão meio confusas, mas não é nada com que se deva preocupar demais. O negócio é ir tocando a vida. Quem já viveu tanto não vai se assombrar com pouca coisa.

A cidade agora está toda de pé, numa agitação danada. Isso até que o distrai e o anima. Quem sabe encontra um conhecido e acaba entrando num bar pra tomar uma pinga, como nos velhos tempos. Sente uma vontade doida de gritar, de apertar a mão dos passantes, de dizer bom-dia, como antigamente. Onde está aquele calor de antes? O que houve com aquele mundo? Não é possível reconhecer mais nada, nem ser reconhecido.

A névoa.  Ah, a névoa!  

Apesar desse quadro desanimador, sente uma sensação gostosa de liberdade, como se já não lhe importasse mais a ideia de um lugar fixo para onde devesse voltar. Embora esteja cansado, sente-se uma criança disposta a brincar o dia inteiro. Tem energia de sobra. Não fosse essa névoa que o segue por onde ele vai, como uma maldição ou o prenúncio da noite que não clareia nunca, poderia ir até o fim do mundo sem temer cair no abismo.

As pernas, só para contrariar o restante do corpo, fraquejam e ele é obrigado a sentar num dos bancos da praça. Não vai demorar ali, pois ainda tem muito chão pra andar. A cidade cresceu absurdamente e ele deve levar o dia todo indo de uma ponta a outra. Mas isso não tem importância: ele é livre e vai para onde bem quiser.

Sem que tivesse percebido, a névoa tornou-se densa, e, por mais que ele abra os olhos, já não consegue ver mais nada.

Há um princípio de pânico que ele tenta administrar com sabedoria e calma. Não resta dúvida de que agora é preciso ouvir com atenção redobrada. Os olhos, ele constata, já não funcionam mais. Tem a impressão de que outras partes do seu corpo começam a deixar de funcionar, mas prefere não pensar nisso agora. Tudo o que precisa fazer é ouvir com atenção.

Então ele ouve a voz que brota do interior da névoa. Uma voz com a qual ele conviveu durante muitos anos. Ela soa nítida, musical, inconfundível: é como se ele ouvisse Joana falando ali, bem perto dele, tão perto que dá a impressão de que a voz amada escapa de dentro da sua cabeça e não do interior da névoa. Mas ele refuta essa impressão que só o faria parecer um louco. É de lá, do interior da névoa espessa, que ela vem, a voz da esposa morta há anos. É lá que Joana está perdida e implora pela sua ajuda. Joana chama, e ele, sem vacilar, vai ao seu encontro.


Do livro, ainda inédito, A saga do nada.

segunda-feira, 11 de julho de 2011

MESA DE BAR



Por Geraldo Lima


Tinha uma garrafa de cerveja entre mim e ele — fria, indiferente a tudo. Entre mim e ele, aquela garrafa com sua armadura de isopor. Devia restar ainda meia garrafa de cerveja entre os meus olhos e os dele. Talvez menos. Ou nada, provavelmente. Ele enchia e virava um copo após o outro, pouco se importando se eu estava bebendo ou não.

Estava ali para ampará-lo, para lhe dar razão, mas, quase sem querer, eu ia desviando a minha atenção para coisas fúteis, gravando imagens como esta: a pele do isopor era azul — um azul já meio desbotado, danificado por rabiscos e pequenas escavações — e alguém gravara ali o nome e uma data qualquer. Havia também um coração trespassado por uma flecha bastante rústica, e, dramatizando ainda mais a cena, duas gotas de sangue azul-claro pendiam paralelamente em busca do nada. Pensei numa mulher já meio grogue fazendo aquele desenho, inspirando-se não no cara sentado ao seu lado, cheio de planos, todo solícito, mas no outro que lhe arruinara a vida, o quase-cafetão que lhe enchera a cara de bolachas durante muitos anos. Que história mais louca poderia ser contada a partir daquele lugar-comum!

Mais uma vez ia desviando a minha atenção, fugindo do problema, da realidade ébria e deselegante. A imaginação ia aflorando, e eu podia ver, inclusive, uma mulher passando em frente ao bar e me pôr a contar todas as flores da sua blusa antes que desaparecesse do outro lado. Uma mulher com flores na blusa acabara de passar. Ela brotou do lado direito e, ao passar, deixou escorrer uma olhadela para dentro do bar. Essa olhadela veio até mim, significativa, mas, subitamente, como se tivesse se arrependido, a mulher a recolheu à penumbra dos olhos. Insisto. Agora ela vai passar em câmara lenta, como naquela propaganda de sabonete — uma constelação de lindas mulheres flutuando ao ritmo de uma música clássica —, e vai passando, leve, as flores desprendem-se da blusa, as pétalas, rebelando-se contra o cálice, dançam demoradamente antes de chegar ao chão. Sou tomado de intensa emoção diante dessa imagem. Sinto que estou trêmulo de tanta emoção.  A beleza pode nos arrastar até o inferno!  O olhar da mulher, demorando agora uma eternidade dentro do meu, queima a minha alma e, quando ela se afasta, já não reproduz o mesmo mover brusco de asas que fogem.

Essa minha fuga repentina queria apenas barrar o progresso de algum pensamento ruim que estivesse lá no fundo, cutucando as paredes do meu crânio, louco para vir à tona.  Eu estava era desejando uma parede bem espessa, intransponível. Como eu ansiava por uma espécie de Muro de Berlim se interpondo entre mim e ele naquele instante! Havia apenas a garrafa e a fragilidade do isopor. Suas palavras então alcançaram em cheio os meus ouvidos, e eu compreendi, de uma vez por todas, que já não era mais possível ignorar a realidade.

 Palavras: radiação atômica. Contaminado, entreguei-me ao amargo da sua voz, — Aquele desgraçado está transando com a minha mulher, você entendeu?,  ele havia jogado o corpo pra frente e quase cuspia na minha cara.  Como não poderia ter entendido, se aquela era a décima vez que ele repetia aquilo? Dava até a impressão de que ele estava querendo dizer que aquele desgraçado estava transando com a minha esposa também.

Meu Deus...

Enchi os copos. A espuma, no meu, subiu até escorrer pela borda, lenta, preguiçosa. Parecia alguém chorando. Alguém se derramando, jorrando de si. Ele levou o copo até a boca e, numa talagada só, tomou tudo. Bateu o copo na mesa. Ele então veio com o copo do alto e o bateu violentamente na mesa. Vi o copo descendo vertiginoso e, instintivamente, movi-me para trás. No instante mesmo em que o copo começou a descer, antevi a miríade de cacos. O copo, intacto, ali: um milagre. O meu ainda estava cheio. A espuma se assentara; havia, em todo o líquido, uma paz, uma placidez de lago. Mas os olhos dele suplicando um comentário, um conselho, palavras que dissipassem a névoa diante deles, — Eu sei que você já me disse, mas... você tem realmente certeza do que está me dizendo? Pode ser só fofoca... a Maiara me parece incapaz de...   — Eu vi! Porra, eu vi!

Senti um calafrio. Ficar sabendo por intermédio de terceiros é uma coisa; ver, presenciar, outra bem diferente: só o esboço dessa cena terrível (sua mulher nos braços de outro, e não importa se despida ou não, o efeito é o mesmo) provoca em minha garganta uma secura tal, que imagino que morrer se assemelha a isso. Só não consigo entender como Celso vira tudo aquilo e não reagira na hora.

Fugira?

Tapara os olhos?

Desmaiara? 

— O que você fez na hora, cara?

Ele virou o copo novamente, sôfrego, o copo vazio. Seus gestos, quase inconscientes, eram frouxos e punham em perigo a frágil existência do copo.  Eu não tinha para onde me mover — ou fugir.  Virei-me para o dono do bar e fiz o gesto com o dedo indicador, pedindo mais uma. Enchi os copos. — Eu tô arrasado... Se eu mato aquele desgraçado... tô cheio de razão, não tô? Indiquei-lhe o copo cheio, ele, no entanto, ficou com aquele olhar parado, líquido, cravado em mim, o corpo indo e vindo, vez e outra pendendo para os lados. Ia voltar carregado para casa: oitenta e cinco quilos nas minhas costas. E se eu ficasse bêbado também, trocando as pernas, é que a coisa ia ficar bonita. De repente os olhos dele se estancaram lá naquela rachadura que ia do pé da mesa até a parede. A rachadura serpenteava da parede até o pé da mesa. A rachadura era um aleijão indo do pé da mesa até os limites da parede. Da parede até o pé da mesa, aquele esboço de precipício... Ah, eu poderia ficar nessa brincadeira a tarde toda, nesse vai e volta sem fim. Mas o que ele realmente estava vendo ali? Uma cicatriz?  De modo que a rachadura estava lá, e os olhos dele também. Uma rachadura que ia do piso até os olhos, dos olhos ao coração, do coração ao nada...

Estávamos fugindo. 

Até então ele não tocara no copo de cerveja, e eu não quis interromper o seu repouso, a sua distração, e aquilo ficaria como desculpa por eu não mover nenhuma palavra de dentro de mim que fosse capaz de consolá-lo. Eu precisava dizer algo, mas o quê? E como dizê-lo? Sempre fui uma lástima nessa coisa de consolar amigos. Se eu chego a um velório, fico ali, em volta, me esquivando, rodeando sem saber como me aproximar dos parentes do falecido e lhes dirigir um “aceitem os meus pêsames”. Qualquer coisa que eu diga me parece extremamente idiota. Virei o último gole e, como não tinha nada mais importante a fazer, fiquei batendo com a quina do copo na mesa. Esse ruído trouxe o meu amigo de novo à tona. E com ele a comoção. O drama. O aperto na garganta.

— O que está me deixando mais desgraçado da vida é que um amigo... porque aquele miserável se dizia meu amigo... seu amigo também, tá me entendendo? Nosso amigo... um filho da puta daquele... abri a porta da minha casa pra ele... você também... é bom ficar esperto... e ele me faz uma desfeita dessas...

 — Onde foi que você viu os dois? Foi na sua casa? na rua? num...

 — Não importa onde foi, porra... Pra mim, mulher de amigo meu é homem, tô certo ou não tô? Confiamos nele, não confiamos? Então?

Daquele jeito eu realmente não poderia aconselhá-lo, se ele estava a todo instante querendo me fazer ver que eu também poderia estar em perigo, que a segurança do meu lar havia sido violada também pela ingratidão de um “amigo”. Ia lhe dizer para me deixar fora daquilo, que eu confiava na minha esposa. Ia dizer, mas não disse, pois me faltava a segurança, a firmeza, a certeza absoluta. Senti um aperto no coração, um princípio de vertigem: pensava no nosso “amigo” e via claramente nele a capacidade de seduzir até os mortos. Desde o princípio sabíamos disso, no entanto, ingenuamente, confiamos nele. E como geralmente estávamos longe de casa, tomando umas e outras... 

Como era possível a esposa de Celso, tão pacata, com seus olhos de anjo, dona de casa exemplar (eu seria capaz de pôr minha mão no fogo por ela), ter feito uma coisa daquela? Custava-me acreditar naquilo. A minha, mais fogosa (e a palavra “fogosa” aqui me causa arrepios), tinha sua vida apenas de casa para o trabalho, do trabalho para casa, a não ser que...

Era isto que eu temia: essas conjecturas, esse mover-se por entre espinhos, esse antecipar-se aos fatos. O veneno da desconfiança. Fraqueza e dor. Por onde o Davi andava naquele exato momento? Veio-me então a imagem destruidora: ele chegando à minha casa, tocando a campainha; enquanto aguarda que a minha esposa venha abrir a porta (o calhorda sabe direitinho que não estou em casa!), ajeita o cabelo, a gola da camisa e, assim que ela abre a porta, ele sorri — o mais lascivo dos sorrisos, dentes e desejo expostos —, e tudo fica claro, uma claridade que me cega, e, como um canal de TV que sai do ar, fica tudo chuviscando à minha frente. Não vejo mais nada. Não quero ver mais nada!

— É uma merda mesmo, cara! Então aquele filho da puta fez isso com você, Celso? Fez isso com um amigo... Então, imagine o que ele não é capaz de fazer com um inimigo, hein? Ergui os olhos para encontrar nos olhos dele a mesma chama de indignação, o mesmo lampejo de morte, mas deparei com o vazio. Ele se debruçara sobre a mesa. —Tá chorando, Celso?  Ergueu a cabeça bamba, o olhar embaçado, — Se eu matar aqueles dois, tô cheio de razão, não tô? Tanta coisa que eu poderia lhe dizer naquela hora, mas me faltava convicção, aquela mesma que, em outros tempos, não me deixaria vacilar ao dizer-lhe: — É uma questão de honra, né, cara? Ninguém vai te condenar por isso.  Mas não lhe disse nada, não valia a pena lhe dizer coisa alguma. Eu nem estava raciocinando direito.

 Silêncio incômodo. Vontade de sair correndo, voltar logo pra casa.  — Diz pelo menos que eu devo dar um tiro no meu ouvido... qualquer coisa, caralho!  Lembrei-me então de Capitu, de Ema Bovary, de uma prima que traíra o marido aparentemente sem motivo algum, por pura sacanagem.  Poderia lhe falar sobre aquilo, mas literatura naquele momento não encaixava muito bem. E em que a suposta sacanagem da minha prima poderia ajudá-lo?

De repente bateu-me uma moleza, uma melancolia meio besta, me senti fraco como Bentinho, um merda como Carlos Bovary, um sujeito sem atrativos como o ex-marido da minha prima, como todos os tipos bonzinhos, supercorretos — e frouxos. O Celso não ia sair daquela lengalenga, não ia ter coragem mesmo de dar tiro em ninguém.

— Nós somos uns bostas, Celso.

Ele ficou me olhando assim com aquele olhar bêbado, arrasado, não sei se concordando ou se indagando que diabos eu queria dizer com aquilo. O dono do bar desceu mais uma, indiferente ao que estava acontecendo. Quantas garrafas de cerveja nós já tínhamos tomado?  Se ele dissesse que eram trinta, teríamos como contestar? A minha memória estava prejudicada: o álcool e a angústia roubavam-me o equilíbrio e a lucidez. Tudo começava a ficar turvo à minha frente, e, até que eu tivesse certeza de alguma coisa, o dono do bar ia faturar um pouco mais. E para envenenar o ambiente, para insuflar mais ainda a dor e a vontade de beber, achou de colocar uma musiquinha doída pra tocar. Um homem, com o coração destroçado, reclamava do desamor da mulher amada. Vidinha fodida. Parecia até que o mundo todo era só ingratidão.

O certo é que a vida me parecia mais precária ainda naquele instante: um copo de vidro nas mãos de Celso, um isopor cheio de escoriações, um piso com feridas expostas, gangrenadas.
                                                       


Do livro de contos ainda inédito ‘A saga do nada’.