sábado, 26 de fevereiro de 2011

MENTES MAQUIAVÉLICAS



 
Por Geraldo Lima

O que tem me assustado e me deixado intrigado nos últimos tempos é a capacidade de a mente humana forjar maldades e planos maquiavélicos para se dar bem e arruinar a vida de milhares de pessoas. Falo daquelas mentes que trabalham, nas trevas (excluo aqui a ideia de religião; situo o caso puramente no espaço da ética, da prática humana), para criar meios de se apoderar dos bens públicos, de se beneficiar de posições estratégicas que ocupam na sociedade para agir de forma ilegal, de se perpetuar no poder fazendo uso do poderio militar e burocrático que detém sob seu comando.

O que acabo de dizer parece meio abstrato, vago, mas posso elencar aqui três fatos recentes para ilustrá-lo. Vivemos isso aqui em Brasília, com a ação orquestrada por um grupo de pessoas, com cargos estratégicos no governo, para saquear o erário público.  Alguém já esqueceu o escândalo da Caixa de Pandora? Não pode esquecer, não! E é preciso gravar bem a cara dos que dela participaram. Ainda hoje amargamos os prejuízos herdados da ação nefasta desses indivíduos: mato tomando conta das cidades, o caos nos hospitais públicos, rombo nas contas do governo etc. Agora mesmo, no Rio de Janeiro, um grupo de policiais malfeitores (e como é triste dizer isso!) foi preso pela Polícia Federal. Policiais prendendo policiais: uma inversão de valores terrível. Que faziam de errado essas mentes que deveriam ser talhadas para cuidar do cidadão? Associavam-se aos traficantes para ganhar dinheiro dando-lhes proteção, informando-os da ação da polícia, extorquiam bandidos, aproveitavam-se da situação no Morro do Alemão para manter o esquema criminoso. Vexame para a corporação! Vexame para a sociedade que construímos! Distante daqui, lá no Oriente Médio, na terra dos faraós, da antiga civilização egípcia, o ditador Hosni Mubarak foi enxotado do cargo pela ação firme do povo egípcio. Assistimos à sua queda em tempo real – eis aí o poder da mídia eletrônica. O homem se agarrou ao cargo por longos trinta anos. Aproveitou-se da situação, o assassinato do presidente do qual era o vice, e assumiu o poder ad eternum. Ou quase isso, pois o povo, nas ruas, deu-lhe um belo pé na bunda. Mas durante esse tempo todo em que esteve no poder, quanto ele não desviou de recursos que eram destinados a melhorar a vida do povo? Estão lá os bancos suíços bloqueando sua fortuna.     

Fico pasmo ainda com tudo isso (vão me dizer, com ar de conformismo: Mas o ser humano sempre foi assim!) porque, ao longo dos séculos, não tem sido outro o esforço de pensadores e pessoas de boa-fé: inculcar nos indivíduos o respeito à ética e à moral, ou seja, ao semelhante (estou lendo “A Potência de Existir”, do filósofo francês Michel Onfray, e lá está ele nos ensinando: “A construção de um cérebro ético constitui o primeiro degrau para uma revolução política digna desse nome. Foi outrora a ideia maior dos filósofos ultras do século dito das Luzes”).

O que se percebe é que, para essas mentes-aleijão, o prazer maior é forjar canalhices em meio ao desejo da maioria de ver o mundo, o país, a cidade, a rua, o local de trabalho seguindo em ordem e em paz. Digo prazer porque me veio à mente (e a minha procura trabalhar na luz) a indagação do meu filho mais velho: “Pai, esses corruptos devem sentir prazer em armar esses golpes todos, não é?” Quando o meu filho diz que eles “devem sentir prazer”, compreendo que o mal está entranhado no indivíduo até o mais fundo da sua mente, como uma droga, de modo que tudo o que ele faz de errado é resultante da busca de satisfação para esse vício. Pode ser isso, e Freud explicaria tudo. Mas pode ser também que, entre nós, a falta de uma Lei rigorosa (dura lex, sed lex, ou seja, a lei é dura, mas é a lei), que deixe essa gente ruim mofando por anos e anos na cadeia, não iniba a busca dessa satisfação.

quarta-feira, 2 de fevereiro de 2011

BOM-DIA, MEUS ANJINHOS!


 
Por Nilto Maciel

Padre Coutinho passava tempos a observar a abóbada da igreja, as figuras, os desenhos. Admirava os anjos gordinhos, as nuvens, o céu imaginado pelo pintor. Cansava o pescoço de tanto olhar para o alto. Gostava também de ir e vir pelos corredores, andar até as portas de frente do templo, espiar a rua, voltar-se e caminhar até o altar. Quando aparecia algum fiel, escapulia sorrateiro, como se o temesse, como se não quisesse contato nenhum com ele, ou como se estivesse em pecado. Alcançava o pátio que levava aos fundos, aos seus aposentos ou dos padres idosos. Gostava de cuidar deles. Sua missão havia algum tempo, embora não fosse enfermeiro. Cuidava especialmente de padre Diógenes.

Antes de dormir, depois das rezas, depois de tudo, deitado, luz apagada, silêncio, uma tosse aqui, um chiado ali, ia e vinha por outros corredores, via e revia outras abóbadas. A igreja da cidadezinha, as ruas de pedras lisas, os meninos, a mãe. Meu filho, você vai ser padre. Levou-o à presença do vigário. Precisava fazer a primeira comunhão. Coutinho passou a frequentar a igreja todo dia. E aprendeu tudo com padre Diógenes: missa, latim, orações. Bem como outras primícias da vida. O pároco o sentava nas pernas. Não dissesse nada a ninguém. Deus não gostava de menino mal-educado. A mãe se entusiasmava cada vez mais com a possibilidade de ver o garoto vestido de batina. Estive com padre Diógenes. Gosta muito de você. É um santo. O pai andava longe, noutra cidade, talvez casado com outra. Chegada a hora da reclusão, o menino chorou.

Passados os anos, padre Diógenes, envelhecido, perdeu de repente a fala e quase todos os movimentos. Mandaram-no para uma casa de repouso religiosa. Padre Coutinho se encarregou de cuidar dele e de outros idosos. O antigo sacerdote, combalido, triste, de olhar perdido, nem lembrava aquele das missas, do latim, das orações, dos carinhos. Na hora das refeições, sentava o ancião na cadeira de rodas e o conduzia a um quarto. Trazia a sopa quente e a mostrava a Diógenes. Trancava a porta e sorria. O outro o observava sério e nada dizia. Em seus olhos havia espanto. O jovem erguia a batina e baixava a cueca. Onanizava-se até conseguir despejar no prato algumas gotas. Aproximava-se mais do doente, que resmungava pedaços de palavras incompreensíveis. Agora tome a sopinha, meu anjinho decaído. O ancião balançava a cabeça para lá e para cá, a rezingar monossílabos, chorar baixinho. Ou toma a sopa toda ou fica com fome até amanhã. Levava-lhe à boca a colher cheia de sopa. Abra bem a boca e engula tudo, sem resmungo. No meio da refeição, deitava o ancião de bruços na cama, retirava-lhe a roupa e lambuzava sopa nas nádegas. Depois eu o banho, padre Diógenes. À noite, acordava-o para tomar cápsulas. O velhinho se retorcia na cama, como se dissesse não. Fechava a boca sem dentes. O outro lhe mostrava um chicote. Ou tomava o remédio ou apanhava. Baixava de novo a cueca e repetia os gestos da noitinha. Besuntava-lhe a cara com o creme. Beba, engula. Se não quiser, não vai dormir tão cedo. Morto de sono, o antigo pároco abria a boca e recebia o líquido, como se tomasse vinho ou comesse hóstia. De manhã, Coutinho voltava a contemplar os anjinhos no teto da igreja. Benzia-se, ajoelhava-se diante do altar e corria sorrateiro para o quarto dos anciãos. Bom-dia, meus anjinhos!

                                       Fortaleza, junho de 2006.   
 
Nilto Maciel é escritor e vive em Fortaleza, Ceará. É autor de vários livros, entre eles: Itinerário (contos, 1ª ed. 1974, Ed. Do Autor, Fortaleza; 2ª ed. 1990, João Scortecci Editora, São Paulo, SP); A guerra da donzela (novela, 1ª ed. 1982, 2ª ed. 1984, 3ª ed. 1985, Editora Mercado Aberto, Porto Alegre, RS); O cabra que virou bode (romance, 1ª ed. 1991, 2ª ed. 1992, 3ª ed. 1995, 4ª ed. 1996, Editora Atual,  SP).Blog:Literatura sem Fronteiras www.literaturasemfronteiras.blogspot.com