domingo, 1 de janeiro de 2012

Amanhã acordaremos mais tarde

                               O Castelo dos Pirineus, de René Magritte

Por Geraldo Lima

21 de dezembro de 2012, tarde chuvosa, ressaca, um princípio de amnésia e melancolia.

Ao abrir os olhos num esforço imenso, percebi que o mundo ainda estava intacto. Pelo menos ali, no apartamento onde eu morava, na Asa Norte, até onde minhas vistas afetadas pela dor de cabeça alcançavam, tudo estava em ordem, e não havia sinal algum de hecatombe ou da fúria de Deus. Grunhi qualquer coisa como, putz, fodeu!, e rolei para o outro lado da cama, quase batendo a cara na parede. Lídia deveria estar ali, mas não estava. O lugar dela na cama estava frio, como se nunca tivesse sido usado.

Enquanto realizava esse movimento brusco, de rolar sobre o lençol amarfanhado e malcheiroso, uma imagem desfocada emergiu na memória, mas logo se apagou. Tentei trazê-la de volta, redesenhá-la com nítidos contornos, evitando as pinceladas impressionistas, de quase borrão, mas o esforço deu em nada. A imagem que pareceu querer me revelar algo meio sinistro imergira do limbo da minha mente como um flash. Depois do clarão, apagou-se, e nenhum esforço mental parecia capaz de acendê-la de novo.

Não consegui retomar o sono e nem resgatar a imagem.  Levantei-me então e, trôpego, avancei rumo ao banheiro. Nesse curto trajeto a imagem reapareceu como um fotograma deteriorado. Tentei reter o movimento ascendente do estômago rumo à garganta, temendo que, nessa desordem de substâncias estragadas, ela se precipitasse de novo no vazio. No fotograma deteriorado pelo mofo e pela umidade, apareceram os contornos delicados de um rosto de mulher. Lídia?

Voltei um pouco mais vazio do banheiro. E fraco também. Mal me aguentando sobre as pernas. Sentei na borda da cama e, amparando com uma das mãos a cabeça fustigada pela dor, tentei decifrar o mistério daquela imagem. O rosto ia se tornando mais nítido, como se uma mão invisível fosse, pouco a pouco, formatando-o em minha mente. 

A imagem ampliou-se. Do tamanho de um pôster agora. Um rosto de mulher, perfeito, como se corrigido no photoshop. Não, não era o rosto de Lídia.

21 de dezembro de 2012, a data fatídica. Agora me lembro de parte do que houve na antevéspera. Ou do que não houve. Do que esperávamos que houvesse logo após aquela despedida insana no sexto andar de um prédio na Asa Sul.  O fim do calendário maia marcando também o fim dos tempos. O fim da linha para a humanidade. O fim da minha vida de atritos com Lídia. Game over, my love! O trem descarrilando e se precipitando de vez no abismo. 
 
Brindamos, foi isso o que fizemos. Brindamos ao fim do mundo. Lídia ainda estava do meu lado, tenho quase certeza, ali, na sacada do apartamento. Alguém subiu numa cadeira e fez um discurso ébrio e sem sentido. Mesmo assim aplaudimos. No estado em que nos encontrávamos, lembro-me bem agora, qualquer asneira que alguém dissesse seria aplaudida com entusiasmo.

– Já é quase meia-noite, Lídia alertou. 

– O último drinque então antes que o mundo acabe!, alguém propôs.

A garrafa de uísque correu de mão em mão. E foi nesse passa e repassa a garrafa que a minha mão esbarrou numa mão de pele macia e quente. Lídia?! Uma corrente de energia e tesão fluiu para dentro do meu corpo, e só entendi o que aconteceu em seguida depois que a mulher, afastando a boca da minha, disse com voz desesperada:

–  Pra que perder tempo, benzinho, se o mundo acaba logo mais?, e senti de novo o gosto ácido de bebida e angústia vazando para dentro de mim.

Ouvi a voz de Lídia? Um quase gemido afastando-se em direção ao precipício? Não sei, não sei. Meus sentidos, avariados pelo álcool e pela cocaína, me traiam a todo instante. Tudo estava dilatado e acontecendo num ritmo alucinante. Ouvi de novo um gemido, um praguejar e vozes se chocando em quase delírio. De repente a imagem de Lídia foi sugada para dentro de um buraco imenso.  

Do que posso me lembrar agora, como se do interior de um redemoinho, a mulher me arrastou cada vez mais para longe de Lídia, enquanto os outros se engalfinhavam numa suruba louca. Embora muito do que aconteceu tenha se perdido na desmemória da embriaguez, o cheiro daquela mulher ainda está grudado na minha roupa. E tento associá-lo agora ao cheiro de Lídia, seu cheiro sempre adocicado, mas não encontro elo entre eles. Não sei como ela se chama, não houve tempo nem bom senso para lhe perguntar o nome. O liame entre um ser e outro havia se tornado bastante precário naquele momento. Se tudo ia se acabar logo mais, assim que o relógio marcasse meia-noite e o calendário maia chegasse ao término, que sentido havia em querer saber o nome do outro?    
          
Texto publicado, originalmente, no site O BULE, dentro da série 'Contos do fim do mundo'. 

6 comentários:

  1. Te acompanho pelo O Bule, seus textos são ótimos!
    Parabéns pelo belo trabalho realizado lá e aqui.
    Feliz ano novo.

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  2. Gabriela Ziegler, que maravilha vê-la por aqui!Grato por sua presença e pelo comentário. Um abração!

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  3. Olá, Paula, fico feliz de saber que meus textos fazem sentido para você. Obrigado por sua leitura e pelo comentário. Nos vemos então aqui e lá, n'O BULE. Um abração!

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  4. Geraldo!
    Que ilustre surpresa conhecer seu espaço, nesses tropeços virtuais que damos...
    Me arrisco nos contos as vezes, mas me identifico mais com a poesia.
    Voltarei mais vezes!
    Forte abraço!

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  5. Oh, Thiago, grato pelo seu comentário. Volte sim. Um abração.

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