Por Geraldo Lima
Allegro ma non troppo (editora Oito e
Meio, 2016) é o primeiro romance da escritora e jornalista brasiliense
Paulliny Gualbert Tort, que até então só se aventurara no conto, com participação
em antologias e publicações em revistas e sites.
A história contada
no livro é ambientada, na sua maior parte, em Brasília e arredores, mas leva o
leitor também ao ambiente exótico e cativante da Chapada dos Veadeiros, em
Goiás. É narrativa ágil e de grande movimentação, que não deixa o leitor cair
em pasmaceira. Aborda, em linhas gerais, o tema da busca pelo filho desgarrado.
Outros temas, no entanto, estão presentes, como o conflito familiar, a
incapacidade de se ligar afetivamente a alguém, a busca por um sentido verdadeiro
para a vida etc. Não escapa também à escrita em tom mordaz de Paulliny um
retrato crítico e esmaecido do modo de vida da classe média, principalmente a
que habita nas entrequadras do Plano Piloto.
O diálogo com outras narrativas, dos tempos
bíblicos aos atuais.
Estreia de
sucesso na narrativa mais longa, esse primeiro romance de Paulliny Tort foi
semifinalista do Prêmio Oceanos 2017, um dos mais prestigiados prêmios
literários a contemplar autores de língua portuguesa. Sem dúvida, esse feito a
coloca como uma das escritoras contemporâneas que despontam como grande
promessa de que a escrita feminina (ou a literatura feita por mulheres)
firma-se de fato em terras tupiniquins. E esse acontecimento literário torna-se
mais instigante ainda quando constatamos que o romance de Paulliny traz como
narrador em primeira pessoa um homem, o protagonista Daniel. Ou seja, a jovem
autora, a partir do olhar masculino, desenvolve um tema que nos foi
apresentado, pela primeira vez, no Evangelho de Lucas. Trata-se da famosa
Parábola do Filho Pródigo [Lucas 15:12 – 32].Mas vamos ao que aproxima a
narrativa romanesca da jovem escritora brasiliense da narrativa bíblica, na
qual Jesus expõe seus ensinamentos, e o que as distancia ao mesmo tempo.
Em ambas as histórias,
há a figura do filho que decide, num determinado momento da vida, deixar a casa
dos pais e sair pelo mundo. Na narrativa
do evangelista Lucas, é o filho mais moço que parte após receber do pai a sua
parte da herança. Na de Paulliny, é o filho mais velho (João) que parte, dois
anos antes da morte do pai, um Senador da República com o qual tinha uma
convivência conflituosa.[Aqui, é a mãe que se angustia com a partida e
posterior sumiço do filho.] Como é do conhecimento dos leitores do Novo
Testamento, o filho mais novo dissipa em farras o que recebeu como herança e,
em dificuldade financeira, retorna para a casa paterna em busca de perdão e
trabalho. O antagonismo se dá, nesse
caso, em relação ao filho mais velho, que, tendo ficado o tempo todo ao lado do
pai, ajudando-o na lida diária, sente-se injustiçado ao vê-lo receber o filho
pródigo com festa. Na história criada por Paulliny, há também esse antagonismo
entre os irmãos João e Daniel, que vai sendo exposto ao longo da narrativa e se
acentua mais fortemente ao final. Será possível uma reconciliação entre eles? E
que mistérios prendem tão fortemente a mãe ao filho mais velho? No texto
bíblico, entendemos que a explicação comovente e sábia do pai tenha sido aceita
pelo filho indignado.
Há ainda, como
elemento complicador desse estranhamento entre os dois irmãos do romance Allegro ma non tropo, o fato de Daniel
sentir-se menos acolhido pelo olhar dos outros por ser fisicamente diferente do
irmão. Nas palavras de Daniel, o fato de o irmão se parecer fisicamente com a
mãe, loira, alta, bonita, torna-o privilegiado e acima de qualquer suspeita,
enquanto ele, moreno e franzino, que se diz parecer com ninguém, figura-se suspeito,
por exemplo, ante o olhar dos porteiros. “O porteiro, novo no prédio, não me
deixou subir sem ser anunciado. Duvidou que eu fosse filho da madame.” Nesse
trecho, Paulliny deixa entrever um problema que afeta sobremaneira a população
negra no Brasil: a vigilância mais acirrada sobre o indivíduo negro, seja o de
pele mais escura, seja o de pele um pouco mais clara. Entrar em lugares mais
sofisticados, de classe média ou rica, só pelo elevador de serviço ou depois de
passar por severa revista. Embora a autora use a palavra “moreno” para
caracterizar a cor da pele de Daniel (caracterização rejeitada, hoje, por boa
parte da população afrodescendente), é nessa linha da questão racial que a
narrativa adentra.Mas, na realidade, sem ir além dessa insinuação de
discriminação racial, mesmo porque o foco da sua narrativa é outro: a busca
pelo filho desgarrado. E é nesse ponto que sua história envolvendo esse tipo de
busca, ou de tema, nos leva a outra história, esta pertencente à moderna
literatura brasileira. Trata-se do maravilhoso livro Lavoura arcaica, de Raduan Nassar.
No livro de
Paulliny, é o irmão mais novo, Daniel, o incumbido pela mãe de procurar pelo
irmão mais velho que partiu sem indicar paradeiro. No de Raduan Nassar, cabe ao
irmão mais velho, Pedro, trazer de volta à casa paterna o filho fujão (é como
fuga que é vista a partida de André). Em ambas as histórias, os protagonistas
são os narradores, mas cada um imprime um tom próprio ao seu discurso: poético
e extremado em André (Lavoura Arcaica),
prosaico e irônico em Daniel (Allegro ma
non tropo). No entanto, o sentido de possessão, de embate violento no campo
da moral, dos costumes familiares, o uso da linguagem poética em estado puro,
vibrante, presentes no romance Lavoura
arcaica, não fazem parte da configuração narrativa de Allegro ma non troppo.A narrativa de Paulliny não busca a densidade
psicológica ou trágica que podemos observar na obra de Raduan. É narrativa mais
fluida, que dá conta da movimentação do protagonista na busca pelo irmão, em
Alto Paraíso, cidade mística situada na Chapada dos Veadeiros, em Goiás, ou nos
arredores de Brasília. É, em suma, narrativa que prima pelo tom de oralidade.
Outros pontos de
contato ou de afastamento entre os dois livro podem ser apontados: se em Lavoura arcaica há o elemento religioso
defendido com severidade e força pelo pai, em Allegro ma non troppo aparece o elemento místico, que é visto pelo
narrador-personagem com reserva e ironia. Aliás, esse é o principal elemento
que Daniel aponta como motivo de afastamento entre ele e o irmão: João enverada,
cada vez mais, pelos caminhos do misticismo, enquanto ele vai sendo tragado
pelo ceticismo. As duas histórias são dramas familiares que ilustram bem a
grande dificuldade de convivência entre as pessoas quando tomadas por ideias
extremas e apaixonadas. O sentido de liberdade e de busca pela própria
essência, mesmo que isso se dê de forma enviesada e incompreensível para os
demais, está presente tanto no livro de Raduan quanto no de Paulliny. Mas a
proximidade entre as duas obras acaba aí.
A
ligação com a música e alguns aspectos da vida do protagonista
Allegro ma non tropo [do italiano,
significa “rápido, mas não muito”] é uma expressão do universo da música
clássica e, segundo a Wikipédia, “é um andamento utilizado para indicar ao
músico que a execução deve ser moderadamente rápida. Em geral, o movimento allegro é executado com pulsão rápida e
expressão leve e alegre”. No caso do livro de Paulliny, podemos observar que a
narrativa segue um ritmo ágil, acelerado, mas sem a pressa exagerada que
resulta num atropelo de cenas desconexas. [A referência à música, tanto a
erudita quanto a popular, é uma constante ao longa da história.]
Embora o tema
seja pesado [o conflito familiar e existencial do protagonista, um músico
erudito em busca de afirmação profissional e compreensão dos problemas afetivos],
o uso da ironia quebra em parte essa sisudez e mantém a história num andamento
mais leve, o que permite, através do olhar do narrador-personagem, que outros
elementos ao redor sejam mostrados. É assim que, através dum olhar mais
descolado do seu mundo interior, Daniel, em sua jornada de busca pelo irmão,
apresenta ao leitor o universo místico da cidade de Alto Paraíso, com seus
tipos excêntricos, as cachoeiras que atraem tantos turistas ao vilarejo de São
Jorge [também na Chapada dos Veadeiros, a 300 km de Brasília] e os arredores da
Capital, até então desconhecidos para ele.Porém, os tipos que aparecem nesses
lugares marcados pelo misticismo [tipos geralmente em busca de autoconhecimento
ou de um sentido pleno para a vida] nem sempre são vistos com olhar complacente
por Daniel, que, não raro, destila aí sua verve irônica e contaminada pelo
ceticismo. “O Devananda usava um turbante branco enrolado na cabeça. Parecia
indiano, mas não era. Tinha sotaque de cearense, o que sabotava toda a sua
elaborada aparência de guru das montanhas.” É essa descrença, que o faz
desconfiar dos discursos pretensamente místicos, religiosos, e sua incapacidade
de se ligar mais fortemente a alguém que caracterizam mais fundamente a sua
vida. A sua relação instável e insegura com as mulheres é também um contraponto
com a forte personalidade do irmão, um notório conquistador e amante contumaz.
O seu caso com
Marina é bem emblemático: ela se entrega, declarando-se
apaixonado por ele, mas, no momento de ele se entregar também, recua,
justificando seu ato insensível: “Devia estar sentindo ao mesmo tempo muita
raiva e muita vergonha. Quase a puxei de volta para dizer que a amava, mas
fiquei com medo. Com medo de que ela acreditasse e ficasse e eu não conseguisse
mais afastá-la de mim. Eu não queria uma Marina para sempre”.
Paulliny se
revela uma excelente criadora de personagens. Em Alto Paraíso, por exemplo, o
protagonista se envolve com uma série de personagens estranhos e cativantes ao
mesmo tempo. E é com pesar que vemos esses personagens sumirem da história, já
que, em sua busca pelo irmão, Daniel vai e volta ao seu ponto de origem, perdendo
contato com essas pessoas no mínimo interessantes, como Berta, a simpática jovem
descendente de alemães, Gabriela, a garçonete mulata, exuberante e,
aparentemente, inacessível, e Ronald, com sua figura jovem já detonada pela
vida extravagante que leva, mas cheio de afeto.Todos esses personagens, cada um
a seu modo, em função de sua inquietude, mereceriam uma história à parte.
Todos, de certa maneira, são indivíduos que escaparam dos limites da casa dos
pais e se jogaram no mundo em busca de sentidos outros para a vida.
[Texto publicado, originalmente, no Correio das Artes e na revista Diversos Afins]
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