Por Geraldo Lima
Todos os Abismos convidam para um mergulho, romance de Cinthia Kriemler
publicado pela Editora Patuá em 2017, não é um livro de leitura fácil. Não que
apresente, em relação à linguagem ou à construção frasal, maiores dificuldades
para a fruição da leitura. O texto é costurado, na sua grande extensão, com
frases curtas, diretas, sem malabarismos verbais. Nada de linguagem poética,
tudo muito seco, sem rodeios, calcado num realismo brutal. Como um soco. É isso: a narrativa adotada por
Cinthia quer, na verdade, funcionar como um soco que desperte a consciência do
leitor! A narrativa quer, enfim, arrastar sem titubeios esse leitor para dentro
da zona nebulosa e trágica da protagonista.
É aí que a coisa se complica, que a
leitura torna-se uma prova de fogo, exigindo do leitor ou da leitora nervos de
aço, estômago para digerir situações de violência das quais temos conhecimento,
muitas das vezes, apenas pelos jornais ou por conversas de terceiros. Essas
narrativas, sem nos forçar a um mergulho profundo no tormento mental e no dia a
dia da personagem, mantêm-nos ainda numa posição bastante confortável. E é essa
posição de conforto que a narrativa de Cinthia nos tira. E aqui chegamos a mais
uma das razões de ser da literatura: levar-nos até o mais fundo da alma
humana.
Cinthia Kriemler, nascida no Rio de
Janeiro mas residindo em Brasília desde 1969, já está no seu quinto livro
publicado, sendo que o quarto, Na
escuridão não existe cor-de-rosa (contos, Editora Patuá, 2015), foi
semifinalista do Prêmio Oceanos 2016. Todos
os abismos convidam para um mergulho é seu primeiro romance.
Narrado em primeira pessoa pela
protagonista Beatriz, uma assistente social com sérios problemas pessoais, o
romance nos apresenta, sem suavizar o discurso, a realidade sombria e trágica
de mulheres e crianças que sofrem violência doméstica e abusos sexuais. Além
desse contexto social em que Beatriz atua como profissional, numa casa abrigo,
temos acesso também ao universo das suas relações pessoais e afetivas, com
todos os conflitos que lhe atormentam a alma: a perda da filha para a
depressão, a relação ambígua com o ex-marido Bernardo, os atritos com a mãe e o
irmão e os encontros sexuais estéreis com estranhos.
A narrativa ocorre, na maior parte do
tempo, no presente, um presente asfixiante e que não deixa brechas para o
ingresso num futuro de redenção e paz. Quando se descola desse tempo presente,
a narrativa descortina aos nossos olhos a vida pregressa da
narradora-personagem, com seu passado traumático, e a causa de seu lento e
progressivo mergulho no abismo do vício, tanto das drogas quanto do sexo. Essa
estratégia de narrativa adotada por Cinthia não permite ao leitor o
distanciamento que uma narrativa no tempo passado poderia propiciar, com a
ideia de que tudo são fatos passados. O tormento da personagem Beatriz é algo
que acontece agora, neste exato momento, diante dos olhos do leitor ou da
leitora, enquanto a narrativa se desenrola. “Nem eu sei de onde vem esta raiva.
Eu não sou assim. Nunca me exaltei desse
jeito. Tenho que respirar fundo. Daqui a uns minutos vou conversar com esse
sujeito anormal” (pág. 44).
Beatriz não é do tipo que podemos
alçar facilmente à categoria de heroína. É, antes de tudo, uma anti-heroína.
Incumbida de salvar vidas humanas, ela própria precisa ser salva das ruínas em
que sua vida pessoal está soterrada. Sua compulsão sexual leva-a aos mais
degradantes ambientes, dos quais retorna ainda mais insatisfeita. É também uma representante da classe média
com suas fissuras e vazios. Uma mulher branca, com livre trânsito na sociedade,
mas que sempre vai dar num beco sem saída ao fraquejar e ceder ao vício. Muito pouco nela nos desperta simpatia. A sua
existência paradoxal nos atordoa, levando-nos da compaixão à raiva em poucos
segundos. Como pode alguém, cuja função é resgatar pessoas soterradas nos
escombros da violência, descer às vezes tão baixo em busca de satisfação para
um desejo que é só válvula de escape? “Bunker. É a única palavra no néon vulgar
iluminando a porta de entrada para o inferno. Os degraus estreitos, sujos,
convenientes. Barro, cuspe, vômito, bebidas. Uma gosma permanente que mais
nenhuma água limpa. (...) Um cigarro. A mão que acende o cigarro. Grande,
suada. O corpo roçando o meu. Por trás. O cheiro de bebida, de maconha” (pág.
109). Mas aí, lembrando-nos da sua infância traumática, marcada por abusos, do
remorso que lhe corrói a consciência pelo que aconteceu à filha Laura, do quão
desgastante é a lida com o sofrimento alheio [sem a expectativa, às vezes, de
obter sucesso], da própria complexidade da existência humana e de que não
devemos esquecer “a variedade do mundo
humano e de sua vida psíquica”, como nos alertou Freud no seu O mal-estar na cultura, então,
lembrando-nos disso tudo, conseguimos vislumbrar uma Beatriz humana, retratada
em plena vertigem da sua queda.
E é por apresentar “o poder de
comunicar umas almas com as outras”, como queria Lima Barreto para a
literatura, e por nos convidar a esse mergulho em águas tão tormentosas, em que
a vida humana borbulha intensa e inquietante, tirando-nos da zona de conforto,
que vale a pena ler esse primeiro romance de Cinthia Kriemler.
[Texto publicado, originalmente, no JORNAL OPÇÃO e no SUPLEMENTO LITERÁRIO DE MINAS GERAIS]
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