A minha vida anda muito agitada, corrida à beça. Vou assumindo compromissos e, de repente, já angustiado, descubro que o tempo é curto para cumprir todos eles. Mas será mesmo que o tempo encurtou? que está passando mais rápido? “O dia está passando mais rápido e isso me assusta”, escreveu uma jovem dia desses no twitter. E eu pensando que somente nós, a galera das antigas, é que tem essa sensação de que os dias e os anos estão passando mais rápido. Tudo está acelerado. E o resultado dessa aceleração é que nos falta tempo tanto para cumprir os compromissos assumidos quanto para a reflexão. Nossas ações acontecem e caem no vazio.
Há, eu sei, uma explicação científica para esse encurtamento dos dias. Teria a ver, segundo cientistas da Nasa, com os terremotos do Chile e de Sumatra. Mas não vou entrar em detalhes aqui sobre as consequências dessas catástrofes naturais. Poderia citar, também, para a sensação de sufoco e falta de tempo, o ditado popular que diz assim: “Para quem trabalha, os dias parecem curtos”. Pode ser isso: estamos trabalhando demais e nos distanciando da profecia do ócio criativo de Domenico De Masi.
Mas prefiro pensar essa questão de um viés mais metafísico.
Talvez o que tenha se acentuado seja a nossa consciência do presente e a nossa expectativa em relação ao futuro, em contraposição a uma visão de mundo mais centrada no passado. Os antigos viviam mais ligados à tradição, àquilo que permanecia intacto anos após anos. Hoje, como diria Karl Marx, “tudo que é sólido se desmancha no ar”.Cabe ainda entendermos que o presente é uma fração do tempo já contaminada pelo passado e pelo futuro. Em si, o tempo presente dura uma fração de segundos, pois logo já é passado, tendo sido antes a expectativa de futuro. Jorge Luis Borges, no texto O Tempo, do livro Borges Oral, indaga a partir do pensamento de Santo Agostinho: “Consideremos o momento presente. O que é o momento presente? O momento presente é o momento que consta de um pouco de passado e de um pouco de futuro. O presente, em si, é como um ponto finito da geometria. O presente em si não existe”.
Então me vem esta ideia: temos, hoje, uma vida mais ligada ao que vai acontecer do que ao que já aconteceu. A angústia maior, imagino, origina-se disto: vivemos nesse presente em que o futuro chega mais rápido, e as coisas acontecem numa velocidade mais intensa por conta da tecnologia. Não foi outra a impressão que tiveram os artistas no início do século XX com o aparecimento do automóvel, do telefone, do rádio etc. A ideia de velocidade contaminou o pensamento moderno. E aqui estamos nós, neste início de século XXI, enredados por essa sensação de rapidez no passar dos dias.
Há os que vivem ainda a expectativa de retornar ao interior para reencontrar o sossego numa cidadezinha pacata, como aquela do poema “Cidadezinha qualquer”, de Drummond, em que ele descreve a mansidão e o tédio do passar lento da vida e das coisas:
Casas entre bananeiras
mulheres entre laranjeiras
pomar amor cantar.
Um homem vai devagar.
Um cachorro vai devagar.
Um burro vai devagar.
Devagar... as janelas olham.
Eta vida besta, meu Deus.
A pergunta é: Com a globalização e as novas tecnologias chegando aos mais distantes rincões, ainda podemos encontrar uma cidadezinha assim, onde nos parece que o tempo parou ou não tem a mínima pressa de passar?E mais: havendo ainda, poderia a pessoa, já contaminada por toda essa agitação dos grandes centros urbanos, acostumar-se com ritmo tão lento? Quando me pego tecendo projetos nesse sentido, bate-me essa dúvida e penso que estou mesmo condenado a viver nessa correria. Porém, sei que esse estilo de vida não é saudável. O mínimo que posso fazer, então, é desacelerar, encontrar momentos para a reflexão, para que os meus atos não sejam apenas uma sucessão de ações vazias. O pensamento não pode se assemelhar assim a objetos descartáveis. O que nos faz falta hoje é uma maior duração das coisas, dos sentimentos e das ideias.
Que a vida de Lima Barreto renderia um romance todos nós sabíamos, só que, até então, caso eu não esteja enganado, ninguém havia se habilitado a escrevê-lo. Assis Coelho, depois de defender sua tese de mestrado sobre a vida e a obra do autor de “Triste fim de Policarpo Quaresma”, encheu-se de entusiasmo e escreveu esse romance.
Narrando em detalhes os passos e descompassos de Lima Barreto, Assis nos faz penetrar no universo suburbano e angustiado desse autor. Podemos visitar, através da sua narrativa realista, o Rio de Janeiro do início do século XX.Assim, o livro é, também, um documento histórico que nos permite entender o panorama do Rio naqueles conturbados anos do século XX. Além disso, é um meio para acompanharmos a vida do escritor carioca até a sua morte. A existência de um autor marcado pela genialidade e pelo preconceito dá o tom de drama que perpassa a narrativa de Assis Coelho.
Para os que quiserem comprar o livro “Lima Barreto, um caminhante libertário”, basta acessar o site da Editora Baraúna: www.editorabarauna.com.br
ALGUNS COMENTÁRIOS SOBRE “LIMA BARRETO, UM CAMINHANTE LIBERTÁRIO”:
Seguir os passos do autor de O Triste Fim de Policarpo Quaresma pelas ruas do Rio de Janeiro, no início do século XX, e conhecer de perto seu dia-a-dia de miséria e revolta, de lucidez e embriaguez, agora já é possível. Para tanto, basta mergulhar na leitura deste romance de Assis Coelho, que nos apresenta, com grande sensibilidade, o cotidiano do amargo e genial Lima Barreto.
Geraldo Lima, escritor e professor.
O texto de Assis Coelho cativa pela linguagem, interessa pelo assunto, reflete pela intensidade. As descrições perpetradas com a autoridade de uma testemunha ocular registram um cenário que expõe a condição humana, revelam dores que atravessam o tempo e o espaço. "Eram dores tão parecidas, eram dores tão semelhantes sob peles de cores diversas." Desse modo, Assis consegue representar o todo pela parte por meio de um Lima feito do barro brasileiro, matéria universal. Refletem mazelas não só do Rio do início do século XX, mas também as que assolam o Brasil de hoje ou, talvez, o Brasil de sempre.
Juscelino Sant’Ana, professor e Mestre em Linguística Aplicada.
Assis Coelho ficcionaliza em breves páginas a vida do escritor Lima Barreto, enfatizando as relações familiares e as dificuldades com a bebida; a oposição aoestablishment;e a acuidade do olhar que ele lançou, por meio de suas obras, sobre uma cidade que se transformava, ignorando a maioria de seus cidadãos. É do entrelaçamento dessas três ordens que se nutre tão bem o texto de Francisco, valorizando, sobretudo, o caminhante que só a morte pode deter, liberto, afinal, das desditas contra as quais lutou durante sua vida.
Maria Isabel Edom Pires, doutora em Literatura Brasileira (UNB)
De uma maneira bem particular, Assis Coelho narra a vida de Lima Barreto e nos deixa uma saudade de tempos não vividos por nós. Cita lugares pitorescos, descreve imagens de sonhos e revoltas. Em certo momento cita: "...Saiu assobiando um novo chorinho de nome "carinhoso" que um rapaz chamado Pixinguinha havia composto...". Que momento importante aquele. A bebida, o hospício, os preconceitos enfrentados por Lima Barreto, a descrição do Rio antigo e suas paisagens maravilhosas que se estendem pelo tempo. Assis nos retrata tudo isso de maneira que a vontade é de se chegar ao final do último capítulo.
Dora Duarte, poetisa.
Assis Coelho traz-nos à lembrança exemplo de um brasileiro de convicta e destemida brasilidade, que se impôs contra um regime republicano opressor e uma sociedade xenófoba, deslumbrada, exploradora e hipócrita, de um Rio de Janeiro no ocaso do séc. XIX e início do XX. Valendo-se, ora da onisciência, ora da onipresença, numa panvisão histórico-urbana, o autor mergulha na mente e alma de seu biografado, expondo com minúcias o sofrido sonhador de utopias possíveis contra “... um Brasil com seu povo servil”.
Ronaldo Alves Mousinho, Presidente da Academia de Letras de Taguatinga-DF.
Assis Coelho é escritor e professor de Inglês da Secretaria de Educação do Distrito Federal. Formou-se em Letras no CEUB e fez mestrado na UNB. Publicou os livros de conto “Labirintos” e “Homens de Fumaça”.
A próxima entrevista do coletivo literário O BULE (www.o-bule.blogspot.com), a ser publicada até o dia 10 de dezembro, será com o escritor Esdras do Nascimento, que nasceu em 1934, no Piauí, e hoje vive no Rio de Janeiro. Já foram entrevistados pelos colunistas d’O BULE os escritores Moacir C. Lopes (1927-2010), Nelson de Oliveira, Ana Paula Maia, Italo Moriconi, Luís Henrique Pellanda e Marcelo Mirisola. As entrevistas d’O BULE são conhecidas por serem feitas coletivamente, ora com a participação de convidados e leitores, e por suas perguntas impertinentes.
E para essa entrevista em especial, queremos participações especiais, dentre elas você, leitor. Caso queira participar da entrevista com o escritor Esdras do Nascimento, envie para o e-mail coisaprobule@yahoo.com.br 4 (quatro) perguntas e uma minibiografia com o link do seu blogue ou site.
Até o dia 05 de dezembro escolheremos as perguntas mais pertinentes (ou impertinentes). Capricha então!
Os vidros fechados quase o impedem de ouvir o chiado das rodas deslizando sobre o asfalto molhado, o repenicar dos pingos da chuva fina (mas persistente) no vidro dianteiro. Entrevê apenas, através dos vidros respingados, tiras de vegetação rasteira, úmida, devorada quase toda pelas mansões do Park Way / e o empreendimento imobiliário se amplia, estendendo-se, cada vez mais, em direção a Valparaíso, a Luziânia, ao sítio que mantém pros lados de Cristalina, num entremeado de condomínios, cidades, cidadelas, assentamentos // desordem de casas casebres casarões, motéis postos de gasolina prédios ruínas /// súbito, uns resquícios de cerrado resistindo heroicamente aos avanços do homem e suas máquinas.
Que ninguém se iluda: não se trata de um ecologista — o ser ao volante apenas constata friamente esses rasgos no corpo do cerrado, sem que isso possa, no entanto, desviar-lhe a atenção, acelerar-lhe os batimentos cardíacos, inundar-lhe a alma de angústia e revolta. Com o mesmo olhar com que analisa um processo, registra agora essas alterações lentas e progressivas na paisagem. Tudo isso seria mesmo inevitável, sentencia: o crescimento populacional, a ausência de uma política habitacional séria, a esperteza de alguns vigaristas desaguando no mar da desordem, no loteamento desenfreado de cada palmo de terra nos arredores da Capital...
Mas que fastio pensar em tudo isso! Que perda de tempo se desgastar tentando encontrar solução para esse caos. No futuro, vaticina, tudo isso aqui será uma megalópole, de Planaltina a Luziânia, um mundo só. Talvez cheguem até o seu sítio, na ânsia de se juntarem também a Cristalina. Depois, premidos pela necessidade ou pela ganância, perguntar-se-ão com ar de desbravadores, — E por que não emendar com Paracatu?
Ah, como é difícil esvaziar a mente! A todo instante, assalta-o a imagem do tribunal, arrastando-o para o julgamento, para a reflexão. E ele aproveita essa ida ao sítio exatamente para se desvincular desse universo de leis e sentenças. Do conceito de certo e errado. Sentir-se livre, quase outro, é tudo o que almeja.
A chuva persiste. Persiste, também, a prudência, a falta de pressa de chegar ao sítio. Não fosse isso, nem teria notado a figura esguia de uma mulher pedindo carona, perto da entrada do Catetinho, protegida apenas por um pedaço de plástico. Devia estar com metade do corpo encharcada. Devia estar congelada sob aquelas roupas mínimas. Devia estar ali há horas tentando comover os carros.
Sempre se orgulhou de ser um homem prudente, incapaz de agir por impulso, daí quase não se reconhecer na súbita decisão de frear o carro e dar carona à mulher.
Contrai a barriga murcha, dando passagem à mão desvairada que busca, com a ponta dos dedos, tocar-lhe os pêlos pubianos, ralos, ásperos. Mas que sensação primordial essa de adivinhar pelo tato o vão úmido entre as coxas! E a mão vai deslizando com muito custo até tocar uma carne magra, grudada aos ossos, tão grudada aos ossos que parece não haver ali cavidade alguma. A mulher, incomodada com a pressão dos dedos, retira a mão que a escava abaixo do ventre em busca de reentrâncias, — Você está dirigindo, recrimina-o com uma voz inexpressiva, exausta, — Não tem problema, ele retruca, consigo fazer as duas coisas ao mesmo tempo, e tenta desabotoar-lhe a calça, procura avidamente por um zíper, mas a mulher retira-lhe novamente a mão trêmula, — Tô é com fome, moço, andei a noite toda. Só então ele se dá ao trabalho de observar atentamente a figura ao seu lado, muito diversa agora daquela que ele vislumbrou ao lado da pista sob a chuva rala (que persiste), uma ninfeta, pensou de chofre, a calça de cós baixo e o bustiê deixando à mostra uma barriguinha com piercing e tudo. Nota, no entanto, sua barriga magra, sem piercing, o rosto seco e a boca meio puxada para um lado, o olhar embaçado, denunciando uns resquícios de álcool ou droga, — O que você fez durante a noite pra ter andado tanto assim? A mulher se tranca numa frágil redoma de cansaço e tristeza, deixando escapar apenas um leve sorriso de deboche e mistério. Mas aos poucos, com enfado, vai revelando fragmentos da sua vida: mora no Jardim Ingá, com a mãe e o filho de dois anos, — Como você se chama? Hesita, como se revelar o nome fosse se desnudar ou se desarmar de vez, — Nara. Talvez nem seja o nome verdadeiro, mas, de qualquer forma, é um belo nome, — O que faz na vida? — Nada. Mente, deduz, deve fazer programa, sabe-se lá como, em que condições, com que espécie de gente. Agora, desvencilhando-se do desejo cego do início, ele, um quase-ministro do STF, um homem de notável saber jurídico e reputação ilibada, começa a sentir nojo ao imaginar que ela nem se lavou ainda, — Transou muito?, indaga, e ela continua a olhar para fora, deixando-se evadir para o interior da paisagem molhada, melancólica. Parece que falar rouba-lhe energia, esfacela sua pobre existência. Enfado e gelo. Seu corpo, então, se deixa violentar, permite que as mãos brancas e trêmulas rompam seus limites. Os dedos, grossos e lisos, tentam alcançar, por dentro do bustiê, seu peito murcho, — Me paga um lanche?, pede, impondo à voz um tom de sedução. A melodia dessa voz, ainda que mutilada pelo cansaço e pela fome, arrasta a presa para os seus labirintos. Ávido, o homem procura envolver, na concha da mão, os seios flácidos, mínimos. A mulher, embora esteja fraca, sem couraça, amplia os seus recursos: acaricia-lhe o rosto, despenteia-lhe os cabelos brancos e ralos. A razão, porém, começa a se impor novamente, restabelecendo a conexão entre os neurônios, plugando-se ao que ele considera sua fonte de sabedoria: os preceitos da justiça. Então vai parar numa lanchonete qualquer e correr o risco de deparar com um advogado conhecido? Mas meritíssimo, o senhor aqui, nesse fim de mundo?!, e no outro dia toda a magistratura estaria sabendo, todos os acólitos, toda a plebe, mas que alegria dos adversários, que farra pelos corredores dos tribunais (suspendam os julgamentos, suprimam os artigos, ignorem os acórdãos, os mandados de busca e apreensão, neguem habeas-corpus, todos os recursos, arquivem os processos), ih, o riso avassalador dos técnicos e analistas judiciários, o palavrório dos advogados nos debates públicos, transmitidos ao vivo pela TV, o promotor, ah, aquele promotorzinho que o odeia, um iniciante ávido para se expor na mídia, ah, canalha (homo homini lupus ), aqui tens o meu ser abatido, aviltado, destroce ainda mais a minha alma, arraste o meu nome para o lamaçal! — Quer que eu faça um boquete?, — O quê?!, ele deixa escapar num susto, — Um boquete, não sabe o que é isso? Começa a se sentir ridículo: que faz ali, escavacando aquela mulher sem eira nem beira? Ainda que estejam só os dois no interior do carro, sob o cerco da chuva rala, não pode furtar-se à pressão de uma consciência que não o abandonará jamais. Pode parar o carro e pedir que ela desça. Exigir que ela desça, se for preciso. Mas por que não o faz? Por que não lhe dá um pé na bunda ali mesmo, logo depois de Valparaíso? Como se estivesse adivinhando-lhe os pensamentos, a mulher desliza a mão sobre sua braguilha, despertando o que já estava quase adormecido. O incêndio, que parecia controlado, volta a se alastrar. Ainda não está livre do desejo insano, por isso lhe indaga com voz abafada, vacilante, — E você tem camisinha? — Não, ela responde lacônica, e, depois de um breve silêncio, pergunta, — será que posto de gasolina vende? Ah, então ele vai parar agora num posto de gasolina para comprar camisinha e correr o risco de ser surpreendido por um dos colegas de tribunal ( nos limites já do estado de Goiás!), logo aquele que anda de olho numa das vagas do STF, — Mas meu caríssimo, que fazes aqui a esta hora? e quem é aquela no carro? a tua filha? mas ela não se encontrava nos Estados Unidos? e continuaria a falar assim, uma interrogação após a outra, quase um inquérito inteiro, tentando minar o seu futuro, canalha!, e no outro dia toda a magistratura estaria sabendo, as manchetes dos jornais, sensacionalistas, arrastando a sua imagem de homem público, íntegro, ( e repete para si mesmo, de notável saber jurídico e reputação ilibada) para o lixo, ele, o mais cotado para assumir uma das vagas no STF, dono de um trabalho intelectual expressivo, voltado para o engrandecimento da justiça, para o bem do Estado, ad majorem Dei gloriam, e de repente o escândalo, o linchamento em praça pública, que chance lhe dariam de se defender? de justificar seu ato absurdo? os princípios da lei seriam suficientes para julgá-lo? Dura lex sed lex, parece ouvir a própria voz sentenciando, e Pôncio Pilatos, lavando mais uma vez as mãos, oferece-o enfim à sanha da multidão ignara, e a filha mais velha vindo de Nova York, acompanhada do noivo ianque, de cara rosada e gorda (um típico filho do Tio Sam), só para indagar-lhe atônita, — Mas pai, que loucura foi essa?! & as socialites, com as quais sua esposa sempre toma chá, joga gamão, promove eventos beneficentes, todas todas negando ( uma, duas, três vezes até) fazerem parte do círculo de amizade da sua família, e imagine ser surpreendido em plena felação, como aquele ator norte-americano ( ou inglês, não se recorda bem), acusado de atentado ao pudor ao ser pego fazendo sexo oral com uma prostituta (como é mesmo o nome dela? só se lembra de que era negra), um escândalo em escala mundial, a noiva dele, coitada, tão bonita e sofrendo tanto!, a esposa dele esvaindo-se em lágrimas, a filha vindo dos Estados Unidos (o noivo de cara gorda e rosada a tiracolo, sem entender bulhufas do que está acontecendo, — What’s the problem? ) só para lhe jogar na cara, — Mas pai, o senhor não pensou no mal que faria à sua família?, e a farra então nos corredores do tribunal, os jornais escancarando seu nome, com foto e tudo, jogando anos e anos de um laborioso trabalho intelectual no lixo, no esgoto.
Raiva e nojo. Todos os sentidos parecem funcionar agora. Há um cheiro forte, denso, quase irrespirável no interior do carro. Vê, nitidamente, os pés sujos, encardidos, de quem vagou a noite inteira em busca de nada, deixando marcas incriminadoras. Corpo seco, vazio. Olhar arrasado, sem sol. Quando chegar ao sítio, vai lavar as mãos milhares vezes, na ânsia de se livrar da presença desse ser na sua pele. Vontade de pedir que a mulher desça, mas, dominado ainda por sentimentos e sensações contraditórios, vacila: sente pena ( a chuva ainda persiste), sente raiva (nunca fez nada parecido assim na vida), sente medo (deseja tanto que nada dê errado, que é bem capaz de acontecer um acidente por puro escárnio do destino: o carro derrapar, sair da pista, bater numa árvore, e, no outro dia, os jornais estamparem: ACIDENTE DE CARRO MATA JUIZ E PROSTITUTA. Vexame para a família! Passaporte para o inferno!), sente vontade de escancarar os vidros e respirar ar puro, pois o interior do carro, embora o ar-condicionado esteja ligado, tornou-se sufocante. Parece faltar-lhe espaço. A vida, submetida assim a uma convivência tão estreita com o oposto, torna-se insuportável. Irrespirável! Mas, apesar de tudo isso, inexplicavelmente não se liberta do desejo, e arrasta-o ainda a vontade de bolinar na mulher, tocar de novo na sua vulva seca, hermética, fria, como se durante todo esse tempo estivesse tentando seduzir um cadáver. Contra todas as leis da prudência, decide: vai até o fim. E, apartado ainda do homem sensato que sempre foi, acelera o carro, ignorando a pista molhada, a irregularidade das construções, a melancolia da paisagem úmida e devastada.
(Texto publicado, originalmente, na revista eletrônica Bestiário, no jornal Correio das Artes e no blog Bar do escritor)