domingo, 13 de março de 2011

GENEROSIDADE E SARCASMO NA NARRATIVA DE FERNANDO MARQUES



 
Por Geraldo Lima


Título: Contos canhotos
Contos, LGE Editora, 2010  
Autor: Fernando Marques
Preço: 30,00

A produção literária em Brasília mostra-se cada vez mais intensa e com qualidade, prova disso é o livro Contos Canhotos (LGE Editora, 2010), do jornalista, professor universitário, escritor e compositor Fernando Marques. O volume traz vinte e sete contos, divididos em duas partes: Primeiro Tempo e Segundo Tempo. São textos curtos, de no máximo quatro páginas, com temática variada, focada em situações do cotidiano, nos contrastes sociais e na precariedade da vida humana. Revelam, em suma, a capacidade de o autor captar variados aspectos da vida moderna com olhar crítico e, às vezes, bem humorado.

Na leitura desses contos de Fernando Marques, devemos observar, com atenção, o modo como ele lida com alguns personagens, em especial o tipo metido a esperto, a Macunaíma, ou o quarentão que se comporta ainda como um jovem, enchendo a cara e se metendo em fria. “De fora, lembrava o Piquet com 20 anos de atraso, o adolescente vetusto na pândega irresponsável” (sobre o protagonista do conto No hospital, que, de vítima, passa a réu). O narrador, geralmente em terceira pessoa, mostra-se, às vezes, implacável com essas figuras. É sarcástico e irônico ao ponto de nos fazer rir da desgraça do personagem. “Fiel ao próprio modus operandi, exibidos nos episódios recentes, quebrou o jejum para perguntar quando seria ouvido. Pediu pressa, ora essa. Exigiu pressa da polícia, teve a coragem. Responderam, ríspidos, que se calasse” (do conto  Na delegacia, que é, na verdade, continuação dos contos Noturno, Pizzarelli na danceteria, No hospital).

Embora o autor dispense a alguns dos seus personagens esse tipo de tratamento, revela-se, no entanto, generoso em relação a outros. Às prostitutas, por exemplo, é reservado um olhar mais condescendente e cúmplice. Chega a dizer: “Ninguém mais dedicado a seu ofício que as moças de vida fácil. Fossem assim os deputados.” É, no mínimo, divertido ver como elas conseguem depenar os otários ou deixá-los na mão, por exemplo, após a promessa de uma transa em troca de uma carona. É sempre o quarentão perdido na noite, à deriva, ou o jovem classe média desfilando com o carro do pai. Nesse mundo cão, somos levados a concordar com o narrador do conto Pizzarelli na danceteria: “Os pobres se entendem. Ele no carro, à espera. Mas quem sente pena de otário?”.

Como ninguém está imune às influências dos autores com que mais se identificou, impossível seria dizer-se escritor sem ter absorvido essas influências, podemos identificar no texto de Fernando Marques a presença da narrativa elíptica de Dalton Trevisan e o recurso machadiano de se dirigir ao leitor, muitas vezes em tom sarcástico. O estilo de Fernando Marques brota daí, dessa mescla entre os dois grandes autores nacionais. A sua narrativa dispensa os malabarismos verbais, as frases complicadas, o vocabulário rebuscado. Com certeza o leitor se sentirá muito à vontade lendo esses contos canhotos, e talvez se identifique com algumas das situações narradas, tendo vivido algo parecido ou simplesmente presenciado na rua. 

Dois aspectos podem ser ainda destacados em alguns contos desse livro de Fernando Marques: a presença de Brasília como espaço onde ocorrem algumas situações narradas e a representação do negro como protagonista. Podemos ver isso na tríade composta pelos contos Pizzarelli na danceteria, No hospital e Na delegacia. Aliás, essa tríade de contos, somando-se a ela o conto Noturno, é o ponto alto do livro. Sarcasmo, lirismo e melancolia mesclam-se aí numa narrativa ágil e arrebatadora. Só esses textos bastariam para provar o talento e a maturidade narrativa de Fernando Marques.       
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Fernando Marques é professor universitário, jornalista, escritor e compositor. Publicou Retratos de mulher (poesia, Varandas) e duas peças  teatrais: Zé, adaptação em verso do drama Woyzeck, de Büchner, e o livro-disco Últimos – comédia musical em dois atos (ambos pela Perspectiva). Autor da comédia  A quatro, encenada  em Brasília. www.fernandomarques.art.br

sábado, 26 de fevereiro de 2011

MENTES MAQUIAVÉLICAS



 
Por Geraldo Lima

O que tem me assustado e me deixado intrigado nos últimos tempos é a capacidade de a mente humana forjar maldades e planos maquiavélicos para se dar bem e arruinar a vida de milhares de pessoas. Falo daquelas mentes que trabalham, nas trevas (excluo aqui a ideia de religião; situo o caso puramente no espaço da ética, da prática humana), para criar meios de se apoderar dos bens públicos, de se beneficiar de posições estratégicas que ocupam na sociedade para agir de forma ilegal, de se perpetuar no poder fazendo uso do poderio militar e burocrático que detém sob seu comando.

O que acabo de dizer parece meio abstrato, vago, mas posso elencar aqui três fatos recentes para ilustrá-lo. Vivemos isso aqui em Brasília, com a ação orquestrada por um grupo de pessoas, com cargos estratégicos no governo, para saquear o erário público.  Alguém já esqueceu o escândalo da Caixa de Pandora? Não pode esquecer, não! E é preciso gravar bem a cara dos que dela participaram. Ainda hoje amargamos os prejuízos herdados da ação nefasta desses indivíduos: mato tomando conta das cidades, o caos nos hospitais públicos, rombo nas contas do governo etc. Agora mesmo, no Rio de Janeiro, um grupo de policiais malfeitores (e como é triste dizer isso!) foi preso pela Polícia Federal. Policiais prendendo policiais: uma inversão de valores terrível. Que faziam de errado essas mentes que deveriam ser talhadas para cuidar do cidadão? Associavam-se aos traficantes para ganhar dinheiro dando-lhes proteção, informando-os da ação da polícia, extorquiam bandidos, aproveitavam-se da situação no Morro do Alemão para manter o esquema criminoso. Vexame para a corporação! Vexame para a sociedade que construímos! Distante daqui, lá no Oriente Médio, na terra dos faraós, da antiga civilização egípcia, o ditador Hosni Mubarak foi enxotado do cargo pela ação firme do povo egípcio. Assistimos à sua queda em tempo real – eis aí o poder da mídia eletrônica. O homem se agarrou ao cargo por longos trinta anos. Aproveitou-se da situação, o assassinato do presidente do qual era o vice, e assumiu o poder ad eternum. Ou quase isso, pois o povo, nas ruas, deu-lhe um belo pé na bunda. Mas durante esse tempo todo em que esteve no poder, quanto ele não desviou de recursos que eram destinados a melhorar a vida do povo? Estão lá os bancos suíços bloqueando sua fortuna.     

Fico pasmo ainda com tudo isso (vão me dizer, com ar de conformismo: Mas o ser humano sempre foi assim!) porque, ao longo dos séculos, não tem sido outro o esforço de pensadores e pessoas de boa-fé: inculcar nos indivíduos o respeito à ética e à moral, ou seja, ao semelhante (estou lendo “A Potência de Existir”, do filósofo francês Michel Onfray, e lá está ele nos ensinando: “A construção de um cérebro ético constitui o primeiro degrau para uma revolução política digna desse nome. Foi outrora a ideia maior dos filósofos ultras do século dito das Luzes”).

O que se percebe é que, para essas mentes-aleijão, o prazer maior é forjar canalhices em meio ao desejo da maioria de ver o mundo, o país, a cidade, a rua, o local de trabalho seguindo em ordem e em paz. Digo prazer porque me veio à mente (e a minha procura trabalhar na luz) a indagação do meu filho mais velho: “Pai, esses corruptos devem sentir prazer em armar esses golpes todos, não é?” Quando o meu filho diz que eles “devem sentir prazer”, compreendo que o mal está entranhado no indivíduo até o mais fundo da sua mente, como uma droga, de modo que tudo o que ele faz de errado é resultante da busca de satisfação para esse vício. Pode ser isso, e Freud explicaria tudo. Mas pode ser também que, entre nós, a falta de uma Lei rigorosa (dura lex, sed lex, ou seja, a lei é dura, mas é a lei), que deixe essa gente ruim mofando por anos e anos na cadeia, não iniba a busca dessa satisfação.

quarta-feira, 2 de fevereiro de 2011

BOM-DIA, MEUS ANJINHOS!


 
Por Nilto Maciel

Padre Coutinho passava tempos a observar a abóbada da igreja, as figuras, os desenhos. Admirava os anjos gordinhos, as nuvens, o céu imaginado pelo pintor. Cansava o pescoço de tanto olhar para o alto. Gostava também de ir e vir pelos corredores, andar até as portas de frente do templo, espiar a rua, voltar-se e caminhar até o altar. Quando aparecia algum fiel, escapulia sorrateiro, como se o temesse, como se não quisesse contato nenhum com ele, ou como se estivesse em pecado. Alcançava o pátio que levava aos fundos, aos seus aposentos ou dos padres idosos. Gostava de cuidar deles. Sua missão havia algum tempo, embora não fosse enfermeiro. Cuidava especialmente de padre Diógenes.

Antes de dormir, depois das rezas, depois de tudo, deitado, luz apagada, silêncio, uma tosse aqui, um chiado ali, ia e vinha por outros corredores, via e revia outras abóbadas. A igreja da cidadezinha, as ruas de pedras lisas, os meninos, a mãe. Meu filho, você vai ser padre. Levou-o à presença do vigário. Precisava fazer a primeira comunhão. Coutinho passou a frequentar a igreja todo dia. E aprendeu tudo com padre Diógenes: missa, latim, orações. Bem como outras primícias da vida. O pároco o sentava nas pernas. Não dissesse nada a ninguém. Deus não gostava de menino mal-educado. A mãe se entusiasmava cada vez mais com a possibilidade de ver o garoto vestido de batina. Estive com padre Diógenes. Gosta muito de você. É um santo. O pai andava longe, noutra cidade, talvez casado com outra. Chegada a hora da reclusão, o menino chorou.

Passados os anos, padre Diógenes, envelhecido, perdeu de repente a fala e quase todos os movimentos. Mandaram-no para uma casa de repouso religiosa. Padre Coutinho se encarregou de cuidar dele e de outros idosos. O antigo sacerdote, combalido, triste, de olhar perdido, nem lembrava aquele das missas, do latim, das orações, dos carinhos. Na hora das refeições, sentava o ancião na cadeira de rodas e o conduzia a um quarto. Trazia a sopa quente e a mostrava a Diógenes. Trancava a porta e sorria. O outro o observava sério e nada dizia. Em seus olhos havia espanto. O jovem erguia a batina e baixava a cueca. Onanizava-se até conseguir despejar no prato algumas gotas. Aproximava-se mais do doente, que resmungava pedaços de palavras incompreensíveis. Agora tome a sopinha, meu anjinho decaído. O ancião balançava a cabeça para lá e para cá, a rezingar monossílabos, chorar baixinho. Ou toma a sopa toda ou fica com fome até amanhã. Levava-lhe à boca a colher cheia de sopa. Abra bem a boca e engula tudo, sem resmungo. No meio da refeição, deitava o ancião de bruços na cama, retirava-lhe a roupa e lambuzava sopa nas nádegas. Depois eu o banho, padre Diógenes. À noite, acordava-o para tomar cápsulas. O velhinho se retorcia na cama, como se dissesse não. Fechava a boca sem dentes. O outro lhe mostrava um chicote. Ou tomava o remédio ou apanhava. Baixava de novo a cueca e repetia os gestos da noitinha. Besuntava-lhe a cara com o creme. Beba, engula. Se não quiser, não vai dormir tão cedo. Morto de sono, o antigo pároco abria a boca e recebia o líquido, como se tomasse vinho ou comesse hóstia. De manhã, Coutinho voltava a contemplar os anjinhos no teto da igreja. Benzia-se, ajoelhava-se diante do altar e corria sorrateiro para o quarto dos anciãos. Bom-dia, meus anjinhos!

                                       Fortaleza, junho de 2006.   
 
Nilto Maciel é escritor e vive em Fortaleza, Ceará. É autor de vários livros, entre eles: Itinerário (contos, 1ª ed. 1974, Ed. Do Autor, Fortaleza; 2ª ed. 1990, João Scortecci Editora, São Paulo, SP); A guerra da donzela (novela, 1ª ed. 1982, 2ª ed. 1984, 3ª ed. 1985, Editora Mercado Aberto, Porto Alegre, RS); O cabra que virou bode (romance, 1ª ed. 1991, 2ª ed. 1992, 3ª ed. 1995, 4ª ed. 1996, Editora Atual,  SP).Blog:Literatura sem Fronteiras www.literaturasemfronteiras.blogspot.com

sexta-feira, 7 de janeiro de 2011

AS FALSAS AUTORIAS



Por Geraldo Lima

É público e notório que a internet encurtou a distância entre as pessoas. A facilidade de comunicação através de e-mail, Facebook, Orkut, MSN etc. é a comprovação do que acabo de dizer.  

Nesse espaço virtual, a informação circula livre e, às vezes, sem critérios. Um texto pode ser repassado ad infinitum  e sofrer, nesse percurso, modificações.  Isso, no entanto, não é novidade. Os textos orais, compilados tempos depois, sofrem também esse tipo de intervenção: os copistas podem introduzir ali modificações que alterarão o sentido do texto. Os textos bíblicos são um bom exemplo disso.

Esse preâmbulo todo tem um único objetivo: arejar o ambiente para que eu fale de um fenômeno que tomou conta da internet: os tais textos atribuídos, de maneira equivocada ou não, a alguns escritores e artistas, como Luís Fernando Veríssimo, Arnaldo Jabor, Charles Chaplin, Artur da Távola e, acabo de descobrir, nosso poeta-mor Carlos Drummond de Andrade.
 
Tocadas pelo caráter positivo de muitos desses textos, as pessoas vão repassando-os numa cadeia infinita, sem se preocuparem com a veracidade da autoria. O importante, nesse caso, é o teor da mensagem. Logo, o impulso maior é passar adiante essa mensagem tocante, instrutiva e apaziguadora. É um processo contagioso. Como nos diz Jean Baudrillard, “... a mídia moderna tem em si uma potência viral, e sua virulência é contagiosa”. E esse vírus, esse texto de falsa autoria, mas engraçado ou edificante, vai bater, sem dúvida, na sua caixa de mensagens.

A essa altura da crônica, alguém já deve estar me indagando indignado: E qual o problema de se repassar esses textos, seu estraga-prazeres, se a intenção é sempre a melhor possível? A princípio, não vejo nenhum problema, mas para alguns autores cujo nome aparece nesses textos talvez haja sim. Alguns sentiram a necessidade de negar publicamente a autoria do texto atribuída a eles.  Ariano Suassuna, por exemplo, negou, num programa de TV, a autoria de uma carta que começou a circular na internet após a derrota do Sport na Libertadores. Na carta, entre outras coisas, havia provocações à torcida de outros times pernambucanos, coisa que o autor de O Auto da Compadecida jamais faria, ainda que seja torcedor apaixonado do Sport.

O que me deixa pasmo é a facilidade com que as pessoas vão tomando esses textos como verdadeiros em relação à sua autoria. Se você conhece o texto de Luis Fernando Veríssimo, jamais vai tomar como de sua autoria um texto que apresente um humor grosseiro, sem sutilezas, e de linguagem deselegante. O mesmo pode-se dizer do texto de um Jabor, sempre inteligente. O estilo deve ser inconfundível. A temática também. Desde 1999, circula na internet um poema atribuído ao ganhador do Nobel de 1982. Trata-se do poema La marioneta, ou a despedida de Gabriel García Márquez. De teor sentimental, o poema espalhou-se pela rede e chegou a ser comentando em importantes jornais. Como se descobre a falsa autoria do tal poema? O uso insistente da invocação a Deus. Marxista e humanista, o autor de Cem anos de solidão dificilmente faria uso desse recurso.  Linguagem e conteúdo, nesse caso, estão distante do estilo do autor colombiano.
Recebi, dia desses, um texto atribuído a Carlos Drummond de Andrade. O título do poema: Eterno. De cara tomei os primeiros versos como sendo, realmente, do autor de A rosa do povo; os outros, porém, destoavam em muito do seu estilo. Não dava para engolir aquilo como obra do poeta itabirano. Eis os primeiros versos: “Eterno é tudo aquilo que dura uma fração de segundo,/mas com tamanha intensidade, que se petrifica,/e nenhuma força jamais o resgata”. Caramba, isso é lindo! E é lindo não só pela mensagem, mas por apresentar um estilo elegante, refinado. Nota-se, por trás de cada verso, o labor do poeta, o domínio da técnica e da língua. Aí vem a segunda estrofe e a coisa desanda. É como se você saltasse do lombo de um mangalarga marchador para o de um pangaré trotão. Vejam se não tenho razão: “Fácil é ouvir a música que toca./Difícil é ouvir a sua consciência./Acenando o tempo todo,/mostrando nossas escolhas erradas”. Onde que isso é Drummond?! Você pode achar que é bonito, que é construtivo, sei lá, mas a quebra de estilo é violenta. Sai-se do alto padrão de expressão para o simplismo da construção frasal.

Pesquisando na internet, descobri variações desse texto, onde  os versos de Drummond ( os verdadeiros!) vêm ora no início, ora no meio,  ora no final. O que mostra as intervenções que cada copista  faz no texto, adaptando-o, talvez, ao seu gosto e, por que não dizer, ao seu estilo.  O poema de Drummond, cujo título é Eterno, passa longe do tom otimista e edificante desse texto ( ou textos) que circula na rede.  Nesse poema, Drummond apresenta-se irônico como em muitos dos seus textos, e logo no início deixa isso bem claro: “E como ficou chato ser moderno./Agora serei eterno.” Aqui o eu  lírico afirma sua intenção de ser eterno, talvez por enxergar no espírito do moderno apenas o transitório, a precariedade da existência. Nos textos apócrifos, tudo isso desaparece. E continuará desaparecendo na grande rede da globalização

(Texto publicado, originalmente, no Jornal Opção, em Goiânia, e no blog O BULE)        

segunda-feira, 27 de dezembro de 2010

UMA TARDE NO CINE BRASÍLIA



Por Geraldo Lima

Há anos morando no Distrito Federal, pela primeira vez fui ao Festival de Brasília do Cinema Brasileiro.  Instigado pela exibição de um documentário dirigido por um amigo, arranjei tempo e disposição e fui, à tarde, assistir à Mostra Brasília 35mm.

Antes de iniciar a exibição dos curtas e do longa, ainda assistimos a um bom trecho do filme Rico ri à toa (1957), de Roberto Farias. A película, que foi restaurada, nos dá uma boa mostra dos áureos tempos da chanchada brasileira. Música, dança, humor, romance, trama policialesca e trapalhadas dão ao filme um ar de graça e ingenuidade impossíveis nos dias de hoje. Quem viveu naquela época, revendo o filme, deve pensar: bons tempos que não voltam mais. E dai-lhe Tropa de Elite!

Mas vamos aos curtas e ao longa que seriam exibidos em seguida.

O primeiro a ser exibido foi I-juca Pirama, de Elvis Kleber e Ítalo Cajueiro. Como o título indica, trata-se da transposição para a tela de cinema, com a técnica da animação, do belíssimo poema de Gonçalves Dias. A dupla de jovens cineastas conseguiu manter a integridade física e temática do poema e, ao mesmo tempo, dar-lhe um sentido de contemporaneidade.  A saga do índio tupi, prisioneiro dos Timbiras, culmina nos dias atuais. Ao mostrar o índio presa da aculturação e da violência dos centros urbanos, mais especificamente com a morte do índio Galdino numa parada de ônibus do Plano Piloto, Elvis Kleber e Ítalo Cajueiro fazem-nos enxergar que o índio brasileiro continua a ser sacrificado, só que, agora, não mais num ritual antropofágico de assimilação da bravura do guerreiro inimigo. No presente, não há bravura nem honra, apenas a rendição e a violência gratuita. Dessa forma, os cineastas transitam da visão idealizada do índio, no Romantismo, para uma leitura crítica da sua condição atual. A poesia e o cinema se unem, nesse caso, para ampliar nossa visão acerca da realidade indígena no Brasil.

 Uma aula de literatura sobre o Romantismo brasileiro ilustrada com a exibição desse curta, de inegável qualidade técnica, permitiria, aos estudantes, uma dupla leitura da história: o índio enquanto ser natural, integrado à natureza, e o índio aculturado, apartado dos seus valores culturais. 

Procura-se, de Iberê Carvalho, é uma história de ficção para crianças. História singela de uma menina rica que, diante do sumiço do cachorro de estimação, sai destemida à sua procura. O interessante desse curta é que ele tem como cenário a periferia e a área nobre de Brasília. Com isso, permite, ainda que de maneira idealizada, o encontro e a confraternização entre pessoas de classes sociais diferentes. Não deixa de ser uma história edificante. Vale destacar a interpretação dos atores mirins que, segundo os realizadores do filme, não fizeram corpo mole diante da carga de trabalho.

O terceiro curta, Profana Via Sacra, de Alisson Sbrana, tem como personagem central nada mais nada menos que o jornalista e poeta Reynaldo Jardim, cuja trajetória de vida já deixou sua marca no jornalismo cultural (criou o Caderno B do Jornal do Brasil) e na literatura (foi um dos teóricos do Neoconcretismo). 

O curta tem o mérito de não apresentar o poeta num longo e cansativo bate-papo. A linearidade é rompida pelo caráter híbrido do filme, que faz uso da entrevista, da declamação, da animação e da interpretação. Ora o poeta conversa descontraído com o cineasta Ronaldo Duque, ora declama seu poema abstrato em meio às formas modernistas e concretas de Brasília. A “tradução visual” do poema Profana Via Sacra, como bem definiu o jornalista Severino Francisco na Crônica da Cidade (Correio Braziliense), é um dos momentos mais belos e inovadores do curta. Ali, imagem, texto e voz se unem em plena harmonia, extraindo o máximo de significado da poética de Reynaldo Jardim. É a dimensão lírico-profana da sua poesia que nos salta aos olhos: Cristo e Che Guevara fundem-se numa só imagem.
O curta de Alisson Sbrana vale tanto como objeto estético (é, de fato, uma obra de arte), quanto como documento histórico: através dele, as próximas gerações poderão ter uma visão mais ampla e densa da poesia neoconcreta e da figura irreverente do poeta Reynaldo Jardim.       

Por último, o longa O Mar de Mário, de Reginaldo Gontijo e Luiz F. Suffiati. Esse documentário, independente das suas qualidades técnicas e do seu experimentalismo, já se destaca no cenário cultural brasileiro por registrar, primeiramente em VHS e depois em formato digital, a figura e as ideias do cineasta Mário Peixoto diretor do antológico filme Limite –, no momento em que ele encontrava-se no ostracismo. Cabe à dupla de cineastas brasilienses esse feito. Bom para a história do cinema nacional e imprescindível para penetrarmos no universo intelectual e criativo desse cineasta de vanguarda.

Embora possam ser feitas algumas observações críticas ao filme, por exemplo, o tempo de duração poderia ser menor, há que se destacar o seu valor estético: Gontijo e Suffiati mesclam entrevista com o cineasta e trechos do seu filme Limite. Noutros momentos, reproduzem cenas do filme de Mário usando duas atrizes. Alternam, também, filme colorido e preto e branco; exploram, às vezes, o negativo de cenas gravadas por eles mesmos. Num dos mais expressivos momentos do documentário, Mário Peixoto, com a humildade do gênio que virou as costas para a fama, indaga aos jovens cineastas qual a diferença entre cinema e vídeo. Ouve, atento, a explicação dada por Gontijo, e, em seguida, deixa claro seu descontentamento ao assistir à exibição de Limite num televisor. Ali, podemos notar a aguda consciência estética que o orientou na concepção desse filme tão à frente do seu tempo.  Eu diria que esse é o momento mais emocionante do filme, mais ainda do que aquele em que ele fala do seu embate com o pai. Nesse momento, Mario não deixa dúvida de sua opção radical pela construção de uma obra de arte verdadeiramente transgressora. É uma lição de integridade artística que precisa ser vista pelas próximas gerações. Daí, a importância estética e histórica do documentário O Mar de Mário. 

A partir do que vi no Cine Brasília, no 43º Festival de Brasília do Cinema Brasileiro, não me resta dúvida: a Capital da República já dispõe, na produção cinematográfica, de diretores capazes de realizar obras de inquestionável valor estético. Saímos daquela produção de filmes quase amadora, para uma produção marcada, claramente, pelo profissionalismo, pela criatividade e pelo excelente acabamento técnico.