sábado, 4 de junho de 2011

UM MINICONTO DO LIVRO TESSELÁRIO.


        
XI. Vômito. 

Por Geraldo Lima
 
Situação mais ridícula aquela: o Sol prestes a desabrochar, o dia acordando,  laborioso, responsável, e ele, ali, de quatro junto ao vaso, a cara quase lá dentro, o azedume recendendo, sobressaindo-se ao odor agradável do desodorizador, comida estragada, carne, vinagrete, arroz, feijão tropeiro, e a cerveja e a vodka fermentando tudo, ácido, e acordara de madrugada com um deserto na garganta, quase um litro d’água ingerido, e o Saara  resistindo, até o estômago começar a se mover de dentro de si mesmo, subindo, vindo à tona  pelo cano da garganta, um bolo inchando, impossível retê-lo mais, por fim o jorro, duas, três... setes vezes, como se não fosse sobrar mais nada dentro dele, esvaziando-se na marra, contraindo-se num parto de alto risco, via oral, e suando frio, o tal friozinho da morte, e mais um jorro, e outro mais, manhãzinha quase, um dia começando já estragado, uma broca na cabeça, perfurando, lembrar-se nessa hora dos zelos da mãe, o chá de boldo preparado por ela, melhor ainda os conselhos dados ali no banheiro mesmo, pensar no futuro, não estragar a vida com esses vícios, a mãe orando baixinho, Deus Pai Todo poderoso, dava até pra sentir-lhe  a  mão sobre a cabeça, terna, milagrosa; lembrar-se do irmão nessa hora, desejando tanto que ele o encontrasse ali, junto à parede, definhando, sem forças até para suportar as contrações estomacais, e o carregasse até o chuveiro, resmungando, é bom que se diga, mas zeloso também, sempre sóbrio, correto; lembrar-se também da esposa que nem existia ainda, mas que, se Deus quisesse, estaria por aí nalgum lugar, ela que por certo viria ficar ao lado dele, amparando-o junto ao vaso, uma companheira de verdade, na alegria e na tristeza, tão perfeita que talvez nem existisse, daí a solidão, o vazio, e ele  suando frio junto à parede, achando o vaso tão distante agora, a felicidade então nem se fala, não restava mais nada dentro dele, a não ser  a sensação de que ficaria ali para sempre, colado aos azulejos, à espera  apenas da morte ou de um milagre qualquer.


O Tesselário foi publicado pelo Selo 3 x 4, da Editora Multifoco, e pode ser adquirido, por enquanto, em http://www.editoramultifoco.com.br ou http://www.editoramultifoco.com.br/tresporquatro/
 

terça-feira, 3 de maio de 2011

TRÊS VOZES FEMININAS E A DOR DO ABANDONO



Por Geraldo Lima
                                             
Antes de tudo, é preciso dizer que Marilene Felinto, em Obsceno Abandono, escreve nos limites do dilaceramento, do esgotamento físico e psíquico do ser. Escreve rasgando/cortando “com tesoura cega e bruta”, como nos versos do poeta Armando Freitas Filho.  Escreve com ódio, expondo as entranhas da personagem.  

Esse discurso raivoso, ou queixoso, presente na novela de Marilene Felinto, enunciado por uma voz feminina marcada pela dor,  pode ser rastreado ao longo dos tempos. O eco mais nítido que nos chega aos ouvidos, no momento mesmo em que lemos Obsceno Abandono, vem do texto de Eurípedes (Medéia)  e das Cartas de Sóror Mariana Alcoforado. E por que essas duas vozes? O que pode haver de proximidade entre o vociferar de uma personagem de Eurípedes, em plena Grécia Antiga,  o lamentar de uma freira portuguesa que viveu na segunda metade do século XVII e primeira  do século XVIII e as reivindicações raivosas da  personagem de Obsceno Abandono, essa  amante  do terceiro milênio?

Primeiro, Medéia. Tão radical é a sua opinião,  a sua decisão, que bem poderia ser dela a fala da personagem de Obsceno Abandono: “Não estou neste mundo para agradar ninguém, muito pelo contrário”. Para Junito de Souza Brandão (Teatro Grego — Tragédia e Comédia, Editora Vozes),  “Medéia é a tragédia do amor transmutado em ódio mortal”. Assim como a  personagem de Obsceno Abandono, Medéia também se arrepende do que fez por amor a Jasão, que a troca por outra, com o objetivo de se elevar socialmente (argumenta que é aos filhos que deseja beneficiar com essa ascensão social). A loucura cometida por Medéia? Traiu a sua pátria, matou o irmão, induziu outros ao crime para ajudar o seu amado. Por isso, encontra-se exilada. E, o pior: corre o risco de ser banida de Corinto. Por conta desse arrependimento, ela pede ajuda aos deuses para vingar-se do esposo. Sente-se ultrajada.  Terrível é a sua vingança, e ela comete o pior dos crimes: mata os próprios filhos.  Segundo a Ama e O Coro, Medéia é terrível, é uma alma violenta. Ela não ouve conselhos. A sua paixão é explosiva. Alguém poderia dizer da personagem de Obsceno Abandono quase a mesma coisa. A sua recusa à maternidade é quase tão violenta quanto o gesto assassino de Medéia. “ — Filhos?Você sabe muito bem que não quero filhos. Jamais vou ter um filho.”  E ainda justifica a sua recusa: “Filho não é curativo para a solidão de ninguém...”. Em Medéia, pela voz do Coro, há também esse argumentar desfavorável à existência dos filhos: “Assim pretendemos que aqueles mortais que ficaram absolutamente fora do casamento e que não geraram filhos ganham em felicidade daqueles que se tornaram pais. Os que não têm filhos não podem julgar se a paternidade é para os mortais uma fonte de alegrias ou de dores, pois lhes é desconhecida, eles escapam a muitas angústias. Mas aqueles que veem crescer em suas casas esses tenros descendentes, que preocupação lhes rói a vida inteira!”.
                                          Medéia, de Eugène Delacroix                                        

O fato de Medéia deter certos conhecimentos  (como sacerdotisa conhece os poderes mágicos de ervas e raízes) a torna mais perigosa ainda para  os seus contemporâneos. Além disso, ela argumenta, refuta, negocia. Num mundo onde a mulher não tem voz ativa, isso faz dela um ser diferente, estranho à cultura grega. Não bastasse isso, ela ainda tem plena consciência da condição feminina do seu tempo. Tem consciência e enuncia isso. “Minha ciência me atrai ódios (julgada inofensiva por uns, de modo mui diverso por outros), é para eles objeto de escândalo”. E continua: “O homem, dono do lar, sai para distrair-se de seu tédio junto de algum amigo ou de pessoas de sua idade; mas nós, é preciso não termos olhos a não ser para ele. Dizem eles que levamos em nossas casas uma vida isenta de perigos, ao passo que eles combatem com a arma na mão; é falso. Eu preferiria tomar parte em três combates a dar à luz uma só vez”.  Sabe ela que à mulher, naquele tempo, não cabia nenhum direito, apenas aceitar a decisão do macho, o que a sociedade havia estabelecido como convenção. Daí Jasão querer que ela compreenda e aceite a sua decisão de esposar outra mulher. Medéia se opõe: acha que fez muito pelo seu amor. A personagem de Obsceno Abandono  também cobra pelo que investiu na sua relação amorosa.  “Eu nunca me entreguei tanto, me inaugurei tanto para uma pessoa.” O que está dito aí é que, dos amantes que ela teve, Charles foi aquele a quem ela mais se dedicou. Medéia  teve só a Jasão, mas mesmo assim bem poderiam ser dela essas palavras.  As que são proferidas por ela dão, no entanto, conta da sua indignação: “Eis o que fiz por teu respeito, ó mais covarde dos homens! E tu me atraiçoas!”.

Quanto ao modo de  vingar-se é que ambas divergem: Medéia quer fazer justiça com as próprias mãos.  Tem  com quem dialogar, ouvir conselhos, mas o seu discurso é extremado: a decisão está tomada e não há volta. Não há convergência. Não há ponderação. Já a personagem de Obsceno Abandono alimenta outro tipo de vingança: reivindica a criação de uma legislação que possibilite o castigo do homem que abandona a amante após desfrutar do seu corpo.  “— Uma pessoa não pode fazer isto com a outra — deveria haver uma lei, um decreto cheio de artigos, parágrafos, itens e subitens que proibissem esse tipo de usurpação das ilusões, de fraudes amorosas.”

Num mundo em que a mulher já conquistou a sua liberdade, direitos importantes, é possível pensar assim: ver lacunas na legislação vigente e reivindicar a ampliação desses diretos, ainda que contrariamente aos costumes da nossa sociedade monogâmica e cristã. No mundo de Medéia não havia ainda espaço para esse tipo de reivindicação, embora ela tivesse plena consciência da opressão sofrida pelas mulheres. (Na Medéia de Sêneca já se cobra um  julgar com equidade, à luz do Direito, mas esse já é um outro mundo. Fiquemos com a Medéia de Eurípedes.) Então, para quem reivindicar novos diretos se não há direito algum? Para Medéia, solitária num meio que a julgava bárbara, estranha à  cultura grega, restava somente a violência, ou seja, fazer justiça com as próprias mãos. Para a personagem de Obsceno Abandono, que se sente ignorada pela  cidade de São Paulo ( sequer é esmagada pelos edifícios), resta também apenas a solidão, ou pior, aceitar a ideia de que essa solidão é mesmo o seu destino, “Meu único caminho teria sido aceitar a marca de nascença, ficar sozinha, viver só”. Bem poderiam ser dela as palavras cantadas por Gil, “Tenho que aprender a ser só”. A sua solidão deve ampliar-se porque, para  o que ela reivindica, ainda não há amparo legal: Charles continuará impune, amparado pela Lei. (Já estamos em pleno Estado de Direito, é a modernidade de fato, mas ainda há lacunas.) Medéia, embora alcançando êxito no seu intento, irá amargar mais solidão ainda: já exilada em Corinto, terá que se exilar de novo — agora sem os filhos e o esposo que a traiu. 

A solidão e a dor são elementos que unem essas duas mulheres separadas pela muralha dos séculos. Mas o que as une mais ainda é a indignação, o fato de se sentirem lesadas após terem se dedicado tanto ao parceiro. Embora amante, a personagem de Obsceno Abandono sente-se traída: havia a expectativa de viver com Charles, acha que conquistou esse direito, sobrepondo-se mesmo aos direitos da esposa dele.  O seu desejo esbarra na recusa de Charles, no que para ela é só covardia. Medéia, esposa de Jasão, vê-se trocada por outra, a filha de Caronte. É vítima do jogo de interesses. Da mesma maneira, sente-se com mais direito que a outra (deu filhos a Jasão, arriscou-se por ele), mas, no mundo em que vive, na condição de mulher e exilada, não lhe cabe direito algum, apenas aceitar o que já foi decidido. Se há covardia no gesto de Jasão, está amparado pelos costumes da sociedade grega. Da mesma maneira, o gesto de Charles — abandonar a amante e voltar para a família  — será sempre bem visto pela  nossa sociedade. Entre os valores da sociedade da Grécia Antiga e os da sociedade contemporânea parece haver um fosso intransponível. Dessa maneira, para a sociedade grega da época, louca é Medéia por não aceitar a decisão do marido de esposar outra mulher; já para a nossa  sociedade,   louca é  a personagem de Obsceno Abandono por querer que Charles deixe a esposa e os filhos para viver com ela. Entre esses dois mundos, a cultura impõe maneiras bem diversas de se encarar a realidade do matrimônio. Mas o destino é um só: Medéia e a personagem de Obsceno Abandono pagarão com a solidão por isso.

Se algum dia as amantes serão amparadas pela Lei e poderão assistir ao castigo  imposto ao ex-amante, não sabemos. Sabemos, contudo, que a sociedade está sujeita a mudanças. Do mundo de Medéia até o nosso, muita coisa mudou, inclusive o universo feminino. Que mulher, hoje no Ocidente, teria que aceitar passivamente o que foi proposto a Medéia?  No texto de Eurípedes, pela voz do Coro, essa nova realidade já era vaticinada: “Aproxima-se o dia em que a mulher será reverenciada e uma injuriosa reputação já não pesará sobre ela”. Já no texto de Obsceno Abandono não há nada que aponte para a possibilidade de que as reivindicações da personagem venham a concretizar-se.

E Sóror Mariana Alcoforado? Que aproxima suas Lettres Portugaises da  novela Obsceno abandono e da peça Medéia? A dor do abandono, os lampejos de arrependimento, o discurso confessional, reivindicatório. Ainda nas palavras de  Masaud Moisés ( A Literatura Portuguesa, Cultrix), “Perpassa-as um violento sopro de paixão incontrolada, insana, superior a todas as inibições e convenções e a todo impulso da vontade e da consciência moral”.  Em todos esses textos, há a presença de uma subjetividade latente expondo a alma dilacerada das três personagens. O tom aí é da voz feminina que, mesmo trazendo as marcas da cultura do seu tempo e os limites da sua condição social, se expõe toda, confessional, crítica, dilacerada. No caso das Cartas Portuguesas, tomadas aqui como verídicas e escritas mesmo por uma religiosa que viveu parte do século XVII e parte do XVIII, essa limitação está presente no uso de um vocabulário mais casto, menos violento, mas nem por isso incapaz de transmitir o sentimento de abandono a que a autora está sujeita. Inconcebível seria pensar Sóror Mariana Alcoforado empregando um vocabulário igual ao da personagem de Obsceno Abandono. Esta, livre, dona do seu próprio destino, pode fazer uso do vocabulário que bem quiser, pois não tem que dar satisfação a ninguém. Daí os xingamentos como forma de atingir ou agredir o ex-amante. Já Sóror Mariana Alcoforado, nos limites do claustro, cerceada pela religiosidade (e que se leve em conta de que não se trata de um ser ficcional),  soa meiga, sofrida, e nada a impele a lançar mão de vocábulos rudes para atingir o seu ex-amante. “Perdi a minha reputação; expus-me aos furores de meus pais e parentes, às severas leis deste  Reino contra as religiosas... e à tua ingratidão, que me parece a maior de todas as desgraças.”  Medéia, bárbara (do ponto de vista da cultura helênica), terrível, indócil, faz ecoar a sua voz raivosa nos salões do palácio de Corinto. Quando baixa o tom de voz, é apenas como subterfúgio, manobra para levar a contendo o seu plano de vingança. Dessas três vozes, a  mais  frágil é, sem dúvida,  a de Sóror Mariana Alcoforado, daí o tom choroso do seu discurso e a sua propensão a perdoar o amante que não responde às suas cartas. 

Interessante é observar como o modo de Sóror Mariana Alcoforado se vingar do ex-amante, o marquês de Chamilly, diverge do de Medéia (marcado pela violência explícita) e o da personagem de Obsceno Abandono (intermediado pela Lei). Romanticamente, ela imagina que, morrendo, poderá atingir o homem que a abandonou: “Um fim trágico obrigar-te-ia, sem dúvida, a pensar muitas vezes em mim...  A minha memória te seria cara, e quiçá esta morte extraordinária te causaria uma sensível comoção”. Observe que o tom aí atinge o mesmo grau de dramaticidade que em Medéia e em Obsceno Abandono. “Depois do ultraje ao meu leito, eu não te poderia permitir viver feliz insultando minha dor...” (Medéia). “Como é que pode? Como é que pôde? Este buraco de raiz arrancada, esta erosão em que vai se transformando aos pouco a minha vida, à medida que você me abandona.” (Obsceno Abandono).  E ainda essa afirmação da personagem de Obsceno Abandono fazendo ecoar em nossos ouvidos a determinação de Medéia: “Tripudiar da minha cara e da minha dor é que você não vai, nunca mais”.

A indignação  demanda as mesmas palavras para se fazer explícita, seja em que época for. Daí essa proximidade entre as vozes, essa coincidência de discursos. E essas vozes femininas estão marcadas pelo ressentimento e pela revolta ( mais explicitamente no texto de Eurípedes  e no de Marilene Felinto),  o que as faz pender ora para o simples desejo de vingança, sem nenhum efeito sobre a realidade, ora para a disposição de se contrapor à realidade vigente, buscando romper os limites que as aprisionam. Camus, em O Homem Revoltado, nos dá bem a ideia de como isso se processa: “O ressentimento é muito bem definido por Scheler como uma auto-intoxicação, a secreção nefasta, em vaso lacrado, de uma impotência prolongada. A revolta, pelo contrário, fratura o ser e o ajuda a transbordar”. Ainda no terreno das proximidades, das existências limítrofes, uma passagem  liga  o universo de Sóror Mariana Alcoforado ao da personagem de Obsceno Abandono: ambas sentem-se como se tivessem sido um simples  troféu no rol de conquistas dos ex-amantes. “De sangue frio formaste a tenção de me abraçar, e consideraste a minha paixão como um troféu, sem que o teu coração jamais fosse comovido estranhavelmente...” (Sóror Mariana Alcoforado) “Na verdade, eu nunca passei de um lucro na sua contabilidade amorosa, um lucro dispensável e desimportante, um lucro supérfluo.” (Obsceno Abandono)

Ainda que a personagem de Obsceno Abandono reivindique uma nova legislação que possa punir o amante ingrato, podemos subentender nas referências à atitude de Macsuel e ao gesto suicida do homem em Paris um desejo de punir o ex-amante de forma mais violenta (como no caso de Medéia)  ou de modo a causar o remorso (no caso de Sóror Mariana Alcoforado). Assim como Macsuel, na sua loucura, matou a mulher que o traiu, ela, a personagem de Obsceno Abandono, na sua ira, deve alimentar esse mesmo desejo, embora o espírito de civilização (que Jasão acusava não haver em Medéia) não a deixe explicitar isso.  Já o suicídio é parte do desespero de quem não encontra ninguém com quem dialogar, alguém que chega à conclusão de que nasceu mesmo foi para ser só. Desse modo,  Obsceno Abandono encontra-se entranhado no discurso das Cartas de Sóror Mariana Alcoforado e nos diálogos desafiadores de Medéia. 

Se em Sóror Mariana Alcoforado encontramos uma voz vacilante, que vai da condenação ao arrependimento do que foi dito, e em Medéia uma voz tonitroante, obsessiva, intransigente,  em Obsceno Abandono a protagonista parece mesclar as duas atitudes: às vezes parece tão certa da sua postura, do seu discurso, dos seus sentimentos, noutras deixa transparecer laivos de fraqueza, de uma alma feminina que se debate entre manter a independência e o desejo de se render. Claro, o tom final é de certeza, de manter a dignidade acima de tudo, ainda que exposta à mais dura solidão.

Nas três histórias, as personagens femininas dirigem-se a um homem que já não está presente, e, se às vezes está, mantém-se frio, racional, como é o caso de Jasão. Se a voz masculina soa sempre contida, ardilosa, negociadora, escorregadia, a voz feminina — seja no caso da fala dramática (Medéia), ou pelos embates/discursos da personagem de Obsceno Abandono através de e-mails, telefonemas e cartas — soa sempre apaixonada, transbordante, inconformada. No caso de Sóror Mariana Alcoforado, a situação é ainda pior, pois não há uma outra voz respondendo do outro lado: nas cartas soa apenas a sua voz chorosa.  O silêncio do amante amplia a sua solidão, o seu abandono.

Embora distintos na forma e no gênero, além de pertencerem a épocas diferentes, esses três textos estão ligados pelos mesmos sentimentos: a dor do abandono e o espírito da paixão. Esse discurso apaixonado e a presença marcante da dor é que dá o tom trágico dessas relações.  E o que pesa aí é o modo como as três personagens se expõem, deixando à mostra sua alma dilacerada, suas fraturas, suas obsessões.
 

domingo, 10 de abril de 2011

SOBRE MICRONARRATIVAS


Por Geraldo Lima

Quando se fala de narrativa curta, vem sempre à nossa lembrança o famoso miniconto do guatemalteco Augusto Monterroso: “Quando acordou o dinossauro ainda estava lá”.  É, sem dúvida, um caso espantoso de síntese e expressividade. É essa capacidade de construir um universo de significação intensa em poucas linhas que caracteriza o miniconto. Construir e deixar os vazios para que o leitor os preencha.  “No miniconto, muito mais importante que mostrar é sugerir, deixando ao leitor a tarefa de ‘preencher’ as elipses narrativas e entender a história por trás da história escrita”, informa-nos a Wikipédia.  Dessa maneira, mais do que qualquer outro texto narrativo, o miniconto exige do leitor uma coparticipação efetiva na construção final da história.

Talvez não seja consenso, mas gosto de distinguir miniconto de microconto ou nanoconto. Para mim, o miniconto ainda comporta um número maior de palavras, de linhas ou de páginas. Nele seria ainda possível descrever um pouco mais a situação narrada. Já no microconto ou nanoconto, eliminam-se ao máximo as informações sobre espaço, tempo, personagem e assunto. Cabe ao leitor, num grau mais intenso de coparticipação, imaginar o restante das informações ou da história. O texto de Augusto Monterroso é, para mim, o exemplo clássico do microconto. E é interessante perceber como esse tipo de texto curtíssimo se adapta muito bem às exigências de síntese, por exemplo, do twitter. Seguindo essa lógica, venho compondo, há alguns meses, micronarrativas (a série Lascas) para serem publicadas, primeiramente, nessa rede social. Algumas são compostas, diretamente, no microblog, obrigando-me eliminar, sistematicamente, os excessos. Eis uma das Lascas: Disse que não, que gritaria, mas depois gemeu, chamando-o de meu amor. O exercício de síntese e de busca de máxima significação que se exige do autor, nesse caso, é muito grande.

Outros escritores famosos escreveram também micronarrativas, como é o caso do estadunidense Ernest Hemingway, que nos legou esta pérola: “Vende-se: sapatos de bebê, sem uso” (For sale: baby shoes, never Worn). No Brasil, Dalton Trevisan tornou-se um mestre na criação de micronarrativas, tanto que o seu livro Ah é? (Editora Record, 1994) é tido como o marco da produção de microcontos, na sua configuração contemporânea, em terras tupiniquins. Marcelino Freire, em 2004, reuniu um time de escritores e os desafiou a escrever uma narrativa com no máximo 50 letras. O resultado desse desafio foi a publicação, em 2004, da coletânea Os cem menores contos brasileiros do século, pela Ateliê Editorial.  Embora muitos possam não concordar, coloco alguns poemas-minuto ou poemas-piada de Oswald de Andrade e alguns poemas mais narrativos de Manuel Bandeira (“Poema tirado de uma notícia de jornal” seria um deles) como exemplos de microcontos entre nós. Cito este poema de Oswald para que o leitor concorde ou não comigo:

O medroso

A assombração apagou a candeia
Depois no escuro veio com a mão
Pertinho dele
Ver se o coração ainda batia.

A intenção do autor, obviamente, foi compor um poema dentro das diretrizes modernistas, rompendo com o estilo clássico, parnasiano. O tom coloquial e narrativo, no entanto, dão-nos a ideia clara de estarmos lendo uma narrativa curta. Nesse caso, a fronteira entre os gêneros praticamente desaparece.

Mais do que nunca a produção de micronarrativas tem crescido entre os autores brasileiros, ora dando realce ao humor, ora ao drama. Novos talentos têm surgido a cada ano, o que levou, inclusive, o escritor Wilson Gorj a criar o selo 3 x 4  (incorporado pela Editora Multifoco), destinado a publicar, principalmente,  microcontos. O blog O BULE, seguindo essa tendência,  preparou, recentemente, um Especial de Micronarrativas com alguns escritores que têm focado sua produção nessa área, são eles: Wilson Gorj, Felipe Valério, Angela Schnoor, Hélverton Baiano, Ana Mello, Tiago Moralles, Raphael Gancz e Chico Pascoal.

Aos poucos esse gênero literário vai ocupando seu espaço. Se ele  será alçado ao patamar da grande literatura, só o tempo nos dirá. Por enquanto, encontrou nas novas tecnologias o suporte ideal e vai se disseminando.

quinta-feira, 31 de março de 2011

ONDE COMPRAR O LIVRO 'TRINTA GATOS E UM CÃO ENVENENADO'



Quem se interessar em comprar o meu livro TRINTA GATOS E UM CÃO ENVENENADO, publicado recentemente pela Ponteio Edições, pode encomendá-lo nos seguintes endereços:

Site da Livraria Saraiva. http://migre.me/49B6E   
(Pode ser encomendado também diretamente na livraria física da Saraiva.)
 
Site da FNAC http://migre.me/49Bkk
                     http://migre.me/49BD5
 (Em vinte dias, poderá ser comprado diretamente nas lojas da FNAC; já pode ser encomendado por telefone.)

Site da Loja Singular http://migre.me/49BNi
 
Site da Livraria Travessa http://migre.me/49BRE

(Em breve estará à venda na Livraria Cultura.)

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Resenha

A peça “Trinta gatos e um cão envenenado” trata, basicamente, de uma tragédia familiar. Vidas que deveriam seguir juntas, unidas por laços de afetividade, estão em pleno processo de ruptura, de esfacelamento. A impossibilidade de afeto inviabiliza a convivência. Qual a causa de tudo isso?  Por que Zeza nutre tanto rancor pelo pai?  O que há de lucidez na sua loucura? O texto é um mergulho radical na sua existência e revela de forma poderosa a organização familiar contemporânea, com as suas crenças e mitos.


Trinta gatos e um cão envenenado
1ª edição, 2011
Peça de teatro
Autor: Geraldo Lima
ISBN: 978-85-64116-05-4
Ponteio Edições
Preço: R$ 21,00