sábado, 24 de março de 2012

Silhuetas na sacada


Por Geraldo Lima


1

Estávamos entre a morte e o verão, e você escancarou a porta da sacada para que o ar entrasse com a música da passeata. Da rua chegavam vozes emocionadas, transportadas até a nossa sacada pela força do vento. Era como um chamado primitivo, então agitamos as nossas bandeiras (vermelhas, obviamente), o pouco de ilusão que ainda nos restava. Poderíamos estar lá, no meio dos manifestantes, gritando slogans, palavras de ordem — afinal, fora num cenário assim que nos vimos pela primeira vez —, mas preferimos nos manter distantes, como se de tudo aquilo só pudéssemos colher algumas poucas lembranças. Já não acreditávamos mais na força de qualquer manifestação? Havíamos perdido o rumo. E, num dado momento, o eixo da nossa história pendeu para o fim: não para aquele happy end bastante comum nas histórias de amor, nos contos de fada — a infelicidade haveria de bater à nossa porta. Tolice, era apenas a realidade, a dura e deselegante realidade. Então, assim que a passeata sumiu, recolhemos as bandeiras e retornamos ao nosso casulo, no entanto algo havia mudado: o silêncio e a cisma imperavam sobre nós.                                                                                                                                                                                                                              
2


1º de maio de 1978, você se lembra? Que coisa fantástica! Jamais havia visto tantas bandeiras tremulando, nem aquela quantidade imensa de pessoas reunidas em torno de um mesmo ideal, buscando um mesmo objetivo, todos ali marchando (desculpe-me pelo marchando) como se fôssemos inaugurar um novo mundo. Tudo bem, o Muro ainda estava lá, as repúblicas também. O mundo todo ainda estava intacto. Nossas vidas estavam ainda no princípio de tudo, e a incerteza não se destacava no horizonte. Éramos assim: crentes, dogmáticos, indo a fundo nas questões. Foi lá que eu o vi pela primeira vez: no meio da multidão, destacaram-se seus cabelos longos e sua barba ainda por fazer. Um desleixo completo, mas foi o bastante para me atrair: sua imagem sem retoques arrebatou-me definitivamente. Lembra-se de quando me aproximei de você e, logo em seguida, começamos a andar de mãos dadas?  Sabe, com exceção do dia em que me descobri grávida, nunca mais experimentei sensação tão profunda quanto aquela: era como se a emoção de todas aquelas pessoas, repentinamente, estivesse sendo gerada dentro de nós. Devemos lutar mais, incessantemente, por certas coisas. Nesse caso, qual foi nossa grande falha? Não termos protegido com mais cuidado a memória daquele momento contra tudo de ruim que nos tem acontecido? Nos esquecemos de que certos momentos são sagrados: devem sobreviver à ação devastadora do tempo e das mágoas.
        

                                                                                             
3


Naqueles idos, você era o meu Che Guevara, o baluarte da revolução impossível. Eu, mais do que em mim mesma, acreditava em você. E a minha felicidade era recolher, pela manhã, as migalhas de poemas que você espalhava pelo apartamento. O seu lema era escrever e rasgar. E eu, pacientemente, como se fizesse milagres, recompunha todo o poema. Aquilo era comovente, e só me vinha à mente o trabalho meticuloso de um restaurador de obra de arte: polindo ali, buscando aqui a cor original, remodelando as formas de um corpo. O que eu fazia era salvar a sua alma. Às vezes, ao faltar uma palavra, da qual nem você se lembrava mais, angustiava-me a idéia de que o poema ficaria incompleto para sempre. Era a sua vida, na verdade, que ficaria incompleta, mas você não estava nem aí. Você, uma vez escrito o poema, não se importava mais com o destino que ele teria; importava-lhe somente o ato em si. Eu até me extasiava vendo-o escrever freneticamente, como se expulsasse demônios de si mesmo. Com o passar dos anos, os demônios escassearam, você se purificou, e os poemas... ah, por onde andam os seus poemas?!



4


Eram onze horas, e, por um longo tempo, como se estivesse distante, você ficou acariciando o rosto, a barba crescida, enquanto lá fora, junto com o ronco dos motores, sumiam ao longe os ecos da passeata. Unidos/ Perderemos. Até quando você ficaria recitando poemetos de Cacaso para justificar a sua inércia? a nossa inépcia? o fim da nossa conversa? o juízo final da nossa era? Estávamos ilhados.  Você abriu uma cerveja, entornou o primeiro copo, só então notei que a angústia e, pior ainda, a impossibilidade de abrandá-la, ia nos arrastar para o abismo. Havíamos nos dispersado do rebanho e, como castigo, estávamos condenados ao silêncio, ao exílio. Seu olhar de criança assustada já não me fascinava, tampouco havia fragmentos de poemas espalhados pelo apartamento. De modo que, melancolicamente, minha função de salva-vidas perdera sua razão de ser — não havia mais os excessos de antes, na verdade, a vida minguara.

                                                                                             
5


Já era alta noite, porém aquela passeata ainda se movimentava em nossa cabeça: estava indo adiante, brandindo os punhos, cantando o hino da fraternidade, da igualdade, da liberdade, tingindo, com o vermelho, a paisagem urbana, e não pararia nunca, em frente, sempre! E nós, em silêncio, arrebatados pelo fogo daquelas vozes. Aparentemente sossegados, estávamos, no entanto, irrequietos: uma tempestade nos varria por dentro. Há quanto tempo estávamos desligados do inefável, presos à rotina de dia após dia? Dia maquinando dia, a razão de cada dia. A correnteza era muito forte, e nos agarrávamos apenas a um tronco podre: acomodados em meio às almofadas, ouvindo a música de Vinícius, temíamos o incêndio das palavras. O que estávamos evitando, também, era encurtar o caminho da sala ao quarto: forjamos tantas desculpas, demos corda ao tempo — fizemos de tudo para adiar aquele encontro. Você já sabia do início da solidão, da precariedade dos sentimentos. Se agora você já não mutilava seus poemas, tampouco os arrematava: seu hábito passara a ser o de abandoná-los sobre a escrivaninha, para nunca mais revê-los. De qualquer forma, era a sua maneira de ser: ir abandonando tudo pelo caminho — você, o inventor de escombros.


                                                                                                      
6


Duas horas da madrugada, e nós dois vindo trôpegos pela calçada, declamando versos incendiários a plenos pulmões. Queríamos acordar a cidade, mas uma cidade, quando dorme, é imperturbável. Fazia bastante frio naquela noite de julho, detalhe do qual jamais me esquecerei. Como que por ironia, eu haveria de chorar, desesperadamente, numa noite gelada como aquela: a noite logo após o enterro do nosso filho. Você, por todos os meios, tentava me consolar, mas como consolar uma mãe arrasada pela perda de um filho? Naquela noite friorenta, vínhamos abraçados, nos amparando mutuamente, parando no escuro, às vezes no claro, demorando num beijo que, não fosse o avançado da hora, provocaria olhares escandalizados. Queríamos chocar, nem que fosse a calada da noite. Íamos assim, plenos de vodka e cuba libre, e o céu estrelado era testemunha da nossa felicidade em 82.

                                                                                     
                                                      
7


O Sol abriu maravilhado/suas plumas douradas sobre nós,/o sol de janeiro,/minha bela grávida,/ minha ninfa gerando nosso fruto sagrado./ O Sol veio nos saudar/ nas areias desta praia:/pôs esse ouro no seu ventre/ e este dia claro em nós para sempre. Você se lembra desse poema? Tenho certeza que não. Eu consegui salvá-lo da tormenta: é a memória de nosso filho, o único retrato que restou dele. Os poetas — e não se esqueça disso — são os retratistas do que ainda há de existir.  O mar imenso, indomável, e era assim que imaginávamos nosso futuro. Mas veio a tragédia, a ruína, a descrença invadindo o paraíso. Desde então você se trancou num quarto escuro e emudeceu. Com quem eu haveria então de conversar, se você renegava as palavras? se nem poemas escrevia mais? Pus-me a andar sem rumo pelo deserto, suportando — nem sei com que forças —, todas as tempestades de areia. Talvez você nem acredite nisso, mas uma mulher demora muito a cair, ainda que o corpo esteja em chamas.  Nessa solidão absurda, pude então olhar para mim; foi aí que me vi gorda, deselegante, desprovida de atrativos. Quer saber de uma coisa? Fiquei profundamente chocada com aquela imagem, pensando que eu, como pessoa, não podia me acabar daquela forma. Foi por isso que retomei, tempos depois, o contato com os amigos e, noutra etapa, seguindo conselhos de amigas, fui me recompor na ginástica. Se estou tentando justificar esses meus atos, essa minha decisão? Não se trata de justificar: ainda que assim fosse, não recomporia nada.

                                                                                    
8


E agora, de que você me acusa? De ser a guardiã do passado? de viver atormentando-o com a imagem do nosso filho morto? Não há mais com que se preocupar: em breve você sairá por aquela porta e estará livre. Quer fugir do passado. Durante todos esses anos, não tem sido outro o seu exercício. Fugir, fugir para onde? Como fugir do que está cravado na nossa mente? Estamos lá, presos ainda ao instante daquela fatalidade. Antes, na festa, nem podíamos imaginar o que viria depois. Bastante animados pelo álcool, rimos, cantamos, dançamos. Respondíamos, cheios de convicção, às indagações sobre a vida futura do bebê, enquanto os amigos, carinhosamente, tocavam o meu ventre, tentando surpreender o feto num dos seus movimentos. Ouvíamos os conselhos, as experiências alheias. Sim, ia correr tudo bem.  Antes do final da festa, saímos, ouvindo, às nossas costas, um apreensivo tomem cuidado, não corram. Eu havia bebido demais... nós havíamos bebido demais! E aquela escada (aquela maldita escada!) estivera sempre lá à nossa espera.


(Este conto faz parte do livro A noite dos vagalumes, publicado em 1998. Foi publicado também no Correio das Artes, na Paraíba.)            

domingo, 11 de março de 2012

Brasa


Por Geraldo Lima

O homem que tocou o seu corpo à noite, o homem que esteve no seu corpo à noite, o homem que se apoderou do seu corpo à noite, tudo lhe parece tão provisório, esgotado após o gozo, quer algo que dure, que a faça adentrar o mundo acesa, abre a porta, é dia,o sol a faz arder.

(Microconto publicado, originalmente, no Facebook.)

sexta-feira, 24 de fevereiro de 2012

Festa no céu

 
Por Geraldo Lima

E lá se foi Mestre Teodoro ensinar o sotaque do seu bumba meu boi para anjos, arcanjos, querubins e serafins. Como disse São Pedro para Irene, no poema “Irene no céu”, de Manuel Bandeira, quando ela lhe pede licença para entrar,    – Entra, Irene, você não precisa pedir licença”, assim deve ter dito a Seu Teodoro, vendo-o chegar de chapéu branco de palha, roupa alinhada,  a elegância de sempre, porte de nobre e o ar sereno de quem  se sabe portador de uma ancestralidade e de uma cultura inabaláveis.

Seu Teodoro Freire, para quem não sabe, nasceu no Maranhão, na cidade interiorana de São Vicente de Férrea, onde teve contato, aos oito anos de idade, com as manifestações culturais do bumba meu boi. Em 1962 veio para Brasília e tornou-se funcionário da UnB, e, já em 1963, criou o Centro de Tradições Populares, em Sobradinho (cidade na qual viveu até o fim da sua vida), para divulgar a cultura nordestina. Até o dia da sua morte, que se deu em quinze de janeiro de 2012, esta foi a sua luta: fazer do Bumba meu boi uma festa maranhense no coração do Brasil.

Nunca conversei com Seu Teodoro.  Por timidez ou falta de oportunidade, nunca me aproximei dele para lhe perguntar de onde tirava tanta energia e tanta certeza para levar adiante o seu projeto de divulgar e manter vivo o Bumba meu boi no Planalto Central.  Vi-o sempre a distância. Admirava aquela figura esguia sob o sol, na maioria das vezes com uma pasta debaixo do braço, indo apressado em busca de ajuda para pôr o Boi para dançar.

Tive a oportunidade de ouvi-lo falar certa vez, no Teatro de Sobradinho, durante uma das apresentações do Bumba meu boi. Não queria falar, mas, por insistência da plateia, acabou falando. Sua fala foi uma aula de cidadania e amor à cultura popular. Lamentei, naquele momento, não ver o teatro cheio de jovens. Teria sido uma oportunidade única de lhes mostrar, através da prática de alguém ligado de fato às raízes da cultura brasileira, o quanto é importante conhecer e amar os valores que nos conferem uma identidade cultural própria. 

No mundo globalizado, onde as fronteiras nacionais se rompem para dar passagem, na maioria das vezes, à ação predatória da cultura do país dominante, pessoas como Seu Teodoro Freire (e outras tantas) cumprem o papel de nos manter conscientes da necessidade de se preservar e fazer circular toda a riqueza cultural que nosso país possui. Acima dos modismos, das produções artísticas de gosto duvidoso, feitas apenas para ganhar dinheiro e esvaziar a mente das pessoas, prevalece a força da verdadeira cultura popular. Essa que pulsa na dedicação sem titubeio de mestres como seu Teodoro.

E lá se foi Mestre Teodoro rufar os pandeirões e estalar as matracas na mansidão do céu. O céu, com certeza, depois dessa festa popular, nunca mais será o mesmo.

Evoé, Boi!  

(Texto publicado, originalmente, no Jornal de Sobradinho e no Jornal Opção.)

quinta-feira, 9 de fevereiro de 2012

Ao rés do chão, na urbe



“E quem vem de outro sonho feliz de cidade
Aprende depressa a chamar-te de realidade”
            (Sampa – Caetano Veloso)

Por Geraldo Lima

Uma cidade, vista do vigésimo quarto andar do hotel, é apenas uma maquete animada por mãos infantis ou insanas. Paisagem cinza de prédios e casas que coabitam o mesmo espaço de silêncio e solidão. Seres minúsculos que se movem em todas as direções, ágeis, quase uma mancha colorida que desliza no asfalto ou na calçada sob a ação de um joystick. É só isso e nada mais. Mas tudo muda de tamanho, alma e ritmo quando você desce para a rua e, partindo do cruzamento da Mário Prates com a Martins Fontes, passa em frente à Biblioteca Mário de Andrade, na Rua da Consolação, segue a orientação de um dos guardas que vigia o ir e vir dos transeuntes – Segue o fluxo, diz ele – que descem para a Estação Anhangabaú ou seguem no rumo da Praça Ramos de Azevedo, uma enchente de pessoas inundando as calçadas, e, depois de se extasiar com a arquitetura de estilo eclético do Teatro Municipal e quase vislumbrar ali a sombra dos participantes da Semana de Arte Moderna de 22 por entre os mendigos que transformam as escadarias do Teatro em cama ou banco, você se embrenha no universo amplo e barulhento do Viaduto do Chá, desviando-se de ciganas que caçam crédulos desesperados em pleno passeio, cartomantes e mães de santo à espera de clientes junto à mureta de proteção, de costas para a 9 de Julho, surdas aos ecos da Revolução Constitucionalista de 1932, entregadores de panfletos de propaganda, vendedores de chips da TIM, da Claro e da VIVO aos berros, e ao sair do outro lado, ileso, em frente ao cruzamento do Viaduto do Chá com a Rua Líbero Badaró, adentra sem cerimônia alguma a Praça do Patriarca, aqui ainda não há a concentração maciça de gente que você verá logo em seguida, em ruas de calçamento sem meio-fio,  um pouco mais abaixo da Praça da Sé, onde você se encontra, neste momento, tentando entender a beleza da arquitetura externa da Catedral da Sé (logo, logo você ficará  sabendo através do Google que se trata de um estilo eclético, mas predominando o neogótico, “inspirado nas grandes catedrais medievais europeias”, e que antes dela, da magnífica catedral que a lente da sua câmera digital enquadra tentando abarcar o todo, houve ali, naquele espaço, mais duas igrejas, sendo uma delas em estilo barroco), sim, tentando entender essa beleza arquitetônica em meio à pregação alucinada de evangélicos que tentam converter mendigos, drogados, passantes, malandros, trabalhadores, turistas... bem ali, em frente ao monumento católico, e depois de visitar o interior da Catedral, de se encantar  com a grandiosidade das colunas góticas, feixes de colunas que se alçam até a abóbada de ogivas!, a pompa do altar-mor em mármore carrara, com o colorido dos vitrais,  os nichos abrigando santos de toda ordem, a cúpula renascentista e o órgão de tubos ( o maior órgão de tubos do Brasil!), você descamba para os lados do Pateo do Collegio, onde tudo começou, onde os jesuítas, mais precisamente o Pe. Manuel da Nóbrega e o noviço José de Anchieta, começaram a catequização dos indígenas por estas bandas, enfiando-lhes na mente primitiva o latim clássico, o In nomine Patris, et Filii, et  Spiritus Sancti, Amen, e para provar o que se diz tem logo ali uma estátua de José de Anchieta convertendo a filha do cacique Tibiriçá  e, no interior da Igreja José de Anchieta, duas relíquias: um manto e um fêmur do jesuíta, mandados para Portugal por ordem do Marquês de Pombal e depois devolvidos ao Brasil, mas então você já não está mais aí, almoçou e tomou um cappuccino no Café do Pateo e, quase por descuido, caiu na Rua Barão de Paranapiacaba, mais conhecida como Rua do Ouro, em meio à sanha dos vendedores de joias, –  Aliança de ouro mais barata é aqui!, é o que você ouve enquanto tenta avançar em meio ao emaranhado de mãos que lhe estendem cartões de joalherias, ah, que sorte, você exclamará daqui a pouquinho ao se deparar com um sebo de livros, CD’s e DVD’s na Rua Benjamim Constant (e pensar que você tomou essa rua só para escapar da lábia dos vendedores da Rua do Ouro), satisfação plena e três exemplares raros de livros é o que você carrega ao  pegar a Rua 15 de Novembro bem na hora do almoço, agora o fluxo de pedestres é mais intenso, quase asfixiante, mas você se desvia por entre homens de terno que vêm da Bovespa ou da BM&F ou seguem para o Banco do Estado ou saíram do Palácio da Justiça ou do Primeiro Tribunal de Alçada Civil (você já fotografou todos eles, atraído pela sua arquitetura clássica, solene, eh, você talvez não saiba, mas num desses prédios aí, mais provável que seja no Fórum, trabalha um escritor que, nas horas vagas, escreve contos fantásticos) para almoçar nos restaurantes da redondeza, como este, no Largo do Café, perto duma engraxataria que parece não pertencer a este século, e você avançou até aqui deixando para trás mulheres que desfilam de botas logradouro acima/logradouro abaixo (percebeu como as mulheres desta cidade gostam de usar botas, hein?), artistas de rua que “se viram nos 30” tocando violino, fazendo mágica, cantando repente, fumantes que se exilam em recantos de paredes para satisfazer o vício (como fumam nesta metrópole! Parece que a campanha do Dráuzio Varella contra o tabagismo não sortiu nenhum efeito por aqui), tipos de feições variadas, o oriental, o negro, o branco caucasiano, o mestiço, – como você que tudo absorve numa fome  de coisas antigas (uma fome tão mais incisiva que esta que move as pessoas rumo aos restaurantes e às lanchonetes), formas arquitetônicas que emergem por entre construções modernas, prédios de fachada espelhada, criando um contraste inusitado, quase uma heresia urbana, um choque estético que o arrebata, imagens de séculos tão díspares colidindo ali, diante dos seus olhos de flâneur (um quase João do Rio), como esta edificação secular, no Largo de São Bento, onde a elite educa seus filhos para manter o Poder (essa é a regra do jogo, você já se esqueceu? Aqui era onde ficava a aldeia do cacique Tibiriçá!),  esta quase o faz perder o rumo tal a majestade do seu interior, o tom escuro dos seus móveis, a pintura impressionante que lhe cobre o teto, as imagens sacras que se postam logo acima da cabeça dos fiéis (para você basta a fruição estética?), e os que aqui estão orando, pedindo alguma graça, ou tirando um cochilo (aproveitam-se os bancos das igrejas também para a sesta ou para aliviar o cansaço das pernas) também o impressionam, e foi então que você se desviou de todo esse cenário de elegância clássica e harmonia espiritual para se misturar ao desconexo, ao frenesi, ao caminhar torto, truncado, entre esbarrões e gritaria de pregões na 25 de Março – Camisetas de marca por dez reais! –, mas você se livra desse fuzuê, desse ambiente asfixiante, passa batido pelas lojas de bijuterias e bugigangas made in China e chega, como por milagre, ao Mercado Municipal, de onde você não sairá sem comer um pastel e sem experimentar pelo menos uma das frutas exóticas que se oferecem irresistíveis nas bancas, e por sorte, de onde está sentado, pode ver o boneco de Adoniran Barbosa quieto à mesa, eternamente quieto, enquanto uma das músicas do compositor do Bexiga o faz se mexer na cadeira, ah, depois de tudo isso, desse perambular em êxtase, e depois de retomar o fluxo (ou contrafluxo) da 25 de Março, de fotografar a estátua viva de um Carlitos e a de um Surfista Prateado (eh, custa deixar umas moedas pros caras, meu?), de subir a Ladeira Porto Geral quase pedindo para ser rebocado, e chegar enfim à  Rua São Bento, você já pode dizer que sentiu de fato o pulso, a pulsação, os batimentos cardíacos, a respiração arfante e às vezes ritmada, os odores e as vozes da cidade. Agora sim, parte da alma dela está gravada em sua memória. E seus logradouros e seus habitantes e seus monumentos e suas casas e seus apartamentos e seus arranha-céus e seus automóveis e seus ônibus elétricos e seu metrô...  passam a fazer parte da geografia mais sensível que se desenhou no mais fundo do seu ser. 


Texto publicado, originalmente, no site O BULE.

domingo, 1 de janeiro de 2012

Amanhã acordaremos mais tarde

                               O Castelo dos Pirineus, de René Magritte

Por Geraldo Lima

21 de dezembro de 2012, tarde chuvosa, ressaca, um princípio de amnésia e melancolia.

Ao abrir os olhos num esforço imenso, percebi que o mundo ainda estava intacto. Pelo menos ali, no apartamento onde eu morava, na Asa Norte, até onde minhas vistas afetadas pela dor de cabeça alcançavam, tudo estava em ordem, e não havia sinal algum de hecatombe ou da fúria de Deus. Grunhi qualquer coisa como, putz, fodeu!, e rolei para o outro lado da cama, quase batendo a cara na parede. Lídia deveria estar ali, mas não estava. O lugar dela na cama estava frio, como se nunca tivesse sido usado.

Enquanto realizava esse movimento brusco, de rolar sobre o lençol amarfanhado e malcheiroso, uma imagem desfocada emergiu na memória, mas logo se apagou. Tentei trazê-la de volta, redesenhá-la com nítidos contornos, evitando as pinceladas impressionistas, de quase borrão, mas o esforço deu em nada. A imagem que pareceu querer me revelar algo meio sinistro imergira do limbo da minha mente como um flash. Depois do clarão, apagou-se, e nenhum esforço mental parecia capaz de acendê-la de novo.

Não consegui retomar o sono e nem resgatar a imagem.  Levantei-me então e, trôpego, avancei rumo ao banheiro. Nesse curto trajeto a imagem reapareceu como um fotograma deteriorado. Tentei reter o movimento ascendente do estômago rumo à garganta, temendo que, nessa desordem de substâncias estragadas, ela se precipitasse de novo no vazio. No fotograma deteriorado pelo mofo e pela umidade, apareceram os contornos delicados de um rosto de mulher. Lídia?

Voltei um pouco mais vazio do banheiro. E fraco também. Mal me aguentando sobre as pernas. Sentei na borda da cama e, amparando com uma das mãos a cabeça fustigada pela dor, tentei decifrar o mistério daquela imagem. O rosto ia se tornando mais nítido, como se uma mão invisível fosse, pouco a pouco, formatando-o em minha mente. 

A imagem ampliou-se. Do tamanho de um pôster agora. Um rosto de mulher, perfeito, como se corrigido no photoshop. Não, não era o rosto de Lídia.

21 de dezembro de 2012, a data fatídica. Agora me lembro de parte do que houve na antevéspera. Ou do que não houve. Do que esperávamos que houvesse logo após aquela despedida insana no sexto andar de um prédio na Asa Sul.  O fim do calendário maia marcando também o fim dos tempos. O fim da linha para a humanidade. O fim da minha vida de atritos com Lídia. Game over, my love! O trem descarrilando e se precipitando de vez no abismo. 
 
Brindamos, foi isso o que fizemos. Brindamos ao fim do mundo. Lídia ainda estava do meu lado, tenho quase certeza, ali, na sacada do apartamento. Alguém subiu numa cadeira e fez um discurso ébrio e sem sentido. Mesmo assim aplaudimos. No estado em que nos encontrávamos, lembro-me bem agora, qualquer asneira que alguém dissesse seria aplaudida com entusiasmo.

– Já é quase meia-noite, Lídia alertou. 

– O último drinque então antes que o mundo acabe!, alguém propôs.

A garrafa de uísque correu de mão em mão. E foi nesse passa e repassa a garrafa que a minha mão esbarrou numa mão de pele macia e quente. Lídia?! Uma corrente de energia e tesão fluiu para dentro do meu corpo, e só entendi o que aconteceu em seguida depois que a mulher, afastando a boca da minha, disse com voz desesperada:

–  Pra que perder tempo, benzinho, se o mundo acaba logo mais?, e senti de novo o gosto ácido de bebida e angústia vazando para dentro de mim.

Ouvi a voz de Lídia? Um quase gemido afastando-se em direção ao precipício? Não sei, não sei. Meus sentidos, avariados pelo álcool e pela cocaína, me traiam a todo instante. Tudo estava dilatado e acontecendo num ritmo alucinante. Ouvi de novo um gemido, um praguejar e vozes se chocando em quase delírio. De repente a imagem de Lídia foi sugada para dentro de um buraco imenso.  

Do que posso me lembrar agora, como se do interior de um redemoinho, a mulher me arrastou cada vez mais para longe de Lídia, enquanto os outros se engalfinhavam numa suruba louca. Embora muito do que aconteceu tenha se perdido na desmemória da embriaguez, o cheiro daquela mulher ainda está grudado na minha roupa. E tento associá-lo agora ao cheiro de Lídia, seu cheiro sempre adocicado, mas não encontro elo entre eles. Não sei como ela se chama, não houve tempo nem bom senso para lhe perguntar o nome. O liame entre um ser e outro havia se tornado bastante precário naquele momento. Se tudo ia se acabar logo mais, assim que o relógio marcasse meia-noite e o calendário maia chegasse ao término, que sentido havia em querer saber o nome do outro?    
          
Texto publicado, originalmente, no site O BULE, dentro da série 'Contos do fim do mundo'.