sexta-feira, 5 de dezembro de 2014

Um estranho mundo que nos atrai

Por Geraldo Lima

Tomei contato com os textos de Claudio Parreira no extinto O BULE, blog literário do qual fomos colunistas.  O humor, a narrativa ágil e envolvente, as frases curtas, sem floreios, a temática variada, criando vasto painel sobre as mazelas que afligem o ser humano, tudo isso me fez gostar da sua narrativa desde o princípio. Parreira explora, de modo bastante irreverente, a seara do fantástico e do absurdo, dando sutis estocadas no senso comum e no real insosso.

A sua biografia nos dá conta de que ele já foi colaborador da revista Bundas, do jornal O Pasquim 21, Caros Amigos on-line e da agência Carta Maior. Em 2012 lançou seu primeiro livro, o romance Gabriel (Editora Draco). Agora, mais recentemente, lançou o livro de contos Delirium (Editora Penalux), e é sobre ele que tecerei alguns comentários.

Delirium é composto por vinte e nove contos. Boa parte deles pode ser classificada como minicontos, como é o caso de Mariana, Camarim, O vendedor de datas e Ponto de vista. Os longos, no caso, não passam de sete ou oito páginas. A narrativa, em boa parte deles, é feita em primeira pessoa e, predominantemente, por um narrador masculino. Fantástico e absurdo se  alternam, atravessados pelo humor e pela ironia, elementos marcantes na obra de Claudio Parreira. Um tema parece predominar ao longo do livro: a solidão do indivíduo na urbe moderna.  

É bom que se diga que esse tipo solitário, retratado nos contos de Delirium, é sempre do sexo masculino (a mulher aparece aí, geralmente, como a femme fatale ou como a mulher misteriosa, quase impalpável). No conto Z, o protagonista, por exemplo, amarga sua solidão há séculos (eis a presença do fantástico) por ter violado o acordo feito com Ana, mulher misteriosa que lhe surgiu do meio da multidão (ou “desse hospício”, como diz o narrador-personagem). O acordo consistia em não abrir o livro que ela havia colocado diante dele, no chão. Ao se render à curiosidade, ele trai a confiança dela, levando-a a partir e se misturar de novo à multidão.  Nesse conto, aliás, o enredo é bastante complexo, pois o autor joga com a dualidade entre real (o que existiria de verdade, o palpável) e ficcional (o que é fruto da imaginação, no caso, do personagem Z). Diz Ana: “Eu tenho todos os vícios – continuou ela. – O pior deles é crer nos homens reais”. O que temos aí é a ficção dentro da ficção, o ilusionismo arrastando o leitor para as teias da dúvida.

Exemplo clássico de narrativa do absurdo, quase aos moldes de Kafka, Ausência de crime aparece como um dos melhores contos desse volume. O protagonista se vê, de repente, diante de uma situação que foge ao normal: um oficial entra em sua casa com o objetivo de prendê-lo. Mas que crime ele praticou? Assim como o personagem de O processo, de Kafka, não há, aparentemente, crime algum. O processo, no entanto, desencadeou-se e parece irreversível. Até que aparece o crime – e aqui entra a verve humorística, debochada, de Claudio Parreira: “– Ausência de crime – falou. – Sua ficha é a única no País que ainda permanece limpa, e isso, segundo o novo Código Penal, configura crime da mais alta hediondez”. Ironia fina, se pensarmos no que acontece hoje no Brasil com a corrupção contaminando todos os setores da sociedade. Parreira parece, no entanto, esquivar-se de imprimir um tom muito sério ou sisudo à sua narrativa, mesmo quando ela aponta para uma crítica mais contundente ao comportamento humano.

Sobre os personagens que povoam Delirium, disse Luiz Bras: “São homens e mulheres de natureza excêntrica. Comandados por outras leis físicas e espirituais. Sua companhia incomoda, dá medo. Por isso gostei tanto de conhecer essa gente”. O que Parreira faz é isto: apresentar-nos uma galeria de tipos estranhos, gente que habita o reino do fantástico, da mágica, do irreal e, às vezes, do real gasto e sufocante. Gente capaz de criar um sol dentro do quarto, que flutua, que tira um crocodilo da boca, que vomita mitos.  Gente que retrata, de certo modo, a fragilidade da nossa existência. Daí a importância desses contos de Claudio Parreira: apresentam a vida humana na sua complexidade, – ela que, muitas das vezes, é marcada pela solidão e pela dor.

(Resenha publicada, originalmente, no Jornal Opção,  em Goiânia)  

quinta-feira, 20 de novembro de 2014

Vizinhos incômodos

Por Geraldo Lima


Morar próximo à natureza tem seu preço. É romântico e saudável, mas tem seu preço. Normalmente esse “morar próximo” significa invadir o habitat natural de algumas espécies de animais. Somos nós, seres humanos, os invasores em todos os casos. Por mais que tenhamos boas intenções e ideias preservacionistas, ainda assim somos invasores. A natureza dispensa nossa presença. Ela basta a si mesma. E, quanto for preciso, ela vai nos cobrar por esse espaço que lhe foi subtraído. 

Agora mesmo, mal começou o mês de outubro, trazendo as primeiras chuvas, eis que uma horda de besouros Onthophagus taurus da ordem Coleoptera, conhecido vulgarmente como “besouro rola-bosta”, procura a todo custo invadir a nossa residência. Buscam, ansiosos e persistentes, gretas nas portas e janelas que lhes permitam ganhar o interior da casa. Vêm atraídos pela luz. O gesto é fanático e suicida. Amanhã estarão todos mortos, geralmente de pernas pro ar, numa demonstração trágica do quanto lutaram pela vida na frieza da cerâmica.

Embora saibamos que esses insetos não representam nenhum perigo à nossa saúde, nos sentimos incomodados com sua presença – eles, como kamikazes, chocam-se contra a parede, estatelam-se no chão, giram ruidosos em volta da lâmpada, tiram a nossa concentração, obrigam-nos a ficar de portas e janelas cerradas, e, vez ou outra, ouvimos o estalar de um deles sob a sola dos nossos calçados. Minha esposa, por pouco, não juntou um desses bichinhos frenéticos ao cozido de carne e batata. Para outros povos isso seria só um ingrediente a mais, mas não é o nosso caso.

Disse que nos sentimos incomodados com a presença desses insetos. Para eles, com certeza, a recíproca é verdadeira. Aqui estamos nós, na divisa com uma reserva ambiental, trazendo incômodo e sedução fatal para esses pequenos seres em busca de acasalamento. Esse é o momento em que as larvas saem da terra, já como besouros, para se reproduzirem. Poucos indivíduos da espécie alcançarão, no entanto, o seu objetivo. Dizem as pesquisas que setenta por cento deles morrem, ficando a cargo dos trinta por cento que sobrevivem a responsabilidade da procriação e preservação da espécie. 

Sabendo disso, tento fazer a minha parte para ajudá-los: procuro sempre devolver os invasores à escuridão da noite, onde a luz artificial não funcione como armadilha. Sei que o gesto é meio inútil, alguns já nem têm mais forças para voar. Jogo fora, na verdade, seres sem vida. Como não posso ir dormir assim, cercado de cadáveres, procuro alívio para minha consciência na teoria darwinista da “seleção natural das espécies”, dando-me conta de que a natureza acha, assim, seu modo de se manter em equilíbrio.

terça-feira, 28 de outubro de 2014

Seca eterna


Por Geraldo Lima

No momento em que escrevo esta crônica (e, ao lê-la, talvez já não esteja assim, caro leitor e cara leitora), a sensação é de que estou me derretendo  – um picolé humano em franco processo de decomposição. Já tomei uma ducha fria, mas nem assim o calor arrefece. Lá fora, o mundo virou um forno solar, e, andar por aí, a esta hora do dia, é passar pela mesma experiência trágica do frango ao ser assado. Sensação térmica de quarenta graus. Ou mais! O calor parece vir de dentro, através dos poros. Estou tentando raciocinar direito, de maneira linear, mas essa temperatura acima do tolerável faz minhas ideias ziguezaguearem no papel. Vai assim mesmo, aos atropelos. Meus neurônios já devem estar calcinados, e não me parece sensato tentar extrair algo consistente deles agora. Mas teimo em escrever, movido pelo espírito de que ao artista cabe dar testemunho da vida, seja no paraíso ou no inferno. 

Tenho a impressão de que nunca vivemos uma época do ano tão quente como esta. E olhem que é ainda primavera – sem chuva, o que é de se estranhar e temer. Segundo a NASA, este é o ano mais quente da história. Se houver quebra de recorde, podemos dar adeus a este mundo: a Terra vai virar, literalmente, uma bola de fogo. Digo isso porque, segundo as profecias bíblicas, a Terra será destruída pelo fogo. Procuro passar longe da superstição e da religiosidade extrema, mas, do jeito que as coisas estão acontecendo, começo a rever meus conceitos.

Pagamos um alto preço, nesta época, por vivermos no Distrito Federal: além do calor, enfrentamos a secura provocada pela baixa umidade. Somos seres talhados para os extremos, preparados para viver no deserto, beduínos-candangos – talvez isso nos console. Ou não. Para os que sofrem de alguma das “ites” da vida, isso não soa nem um pouco engraçado. Eu mesmo enfrento um perrengue com uma sinusite há anos e passo maus bocados neste período. Se a chuva não chegar logo, trazendo umidade e leveza para nossas vidas, não sei o que será de nós. Heroísmo tem limite. Voltemos aos rios, aos lagos, aos oceanos. A vida surgiu aí, foi o que disse o filósofo grego Anaximandro de Mileto (610-546 a.C). Sei que as ideias dele podem estar ultrapassadas, mas é o que de mais atraente e refrescante me vem à mente agora sob esse calor infernal.     

quarta-feira, 1 de outubro de 2014

A Lua Gigante brincando na fiação elétrica


                                         Por Geraldo Lima                                 


segunda-feira, 8 de setembro de 2014

A força inesgotável do teatro de Ariano Suassuna



Por Geraldo Lima

Ariano Suassuna, nascido na Paraíba em 1927, faleceu recentemente, aos 87 anos de idade, em Recife. Boa parte da sua vida foi dedicada ao teatro, à literatura e à defesa da cultura brasileira contra a massificação. Em 1947, então com 20 anos de idade, escreveu a tragédia Uma mulher vestida de sol, com a qual conquistou o primeiro lugar no concurso de âmbito nacional promovido pelo Teatro do Estudante de Pernambuco (TEP). À época, Hermilo Borba Filho, um dos fundadores do TEP, escreveu: “Tenho a impressão de que o Nordeste encontrou em Ariano Suassuna o seu poeta dramático mais capacitado para transformar em termos de teatro os seus conflitos e suas tragédias”. E não estava enganado. Porém, a comédia, mais do que a tragédia, é que lhe permitiria expor com sagacidade e irreverência a alma do povo nordestino, sempre às voltas com as complicações do meio ambiente e as desigualdades sociais. 

O teatro de Ariano Suassuna impressiona pela capacidade que o autor apresenta de mesclar o erudito e o popular, seguindo, de forma coerente, as linhas mestras do Movimento Armorial, cujo objetivo era “criar uma arte erudita a partir de elementos da cultura popular do Nordeste brasileiro” (Wikipédia).  Além disso, podemos perceber no seu texto dramatúrgico a rica herança da cultura ibérica e do cristianismo, mais precisamente aquele ligado à Igreja Católica. Suas raízes estão fincadas  na tradição cuja fonte encontra-se lá nos autos da Idade Média, no humanismo  do teatro de Gil Vicente e, no século XVII,  no teatro barroco de Calderón de La Barca. Tanto nos textos do autor português quanto nos do autor espanhol o elemento popular e o religioso têm uma presença muito forte.

Numa entrevista à Folha de São Paulo, em 1991, Suassuna diz o seguinte a respeito das suas influências literárias: “Recebi uma influência enorme de Cervantes e de vários autores espanhóis, inclusive de Calderón de La Barca. Talvez até maior que a de Cervantes foi a de Calderón”.  Esses autores são, na verdade, sua matriz estética, e com eles o autor de O santo e a porca mantém um diálogo constante. É, no entanto, na cultura popular nordestina que Ariano Suassuna sedimenta as bases da sua dramaturgia. Dos folhetos de cordel nascem algumas das suas peças, como é o caso d’O auto da Compadecida, que se originou, segundo o autor, “da fusão de três folhetos de cordel: O enterro do cachorro, O cavalo que defecava dinheiro (ambos de Leandro Gomes) e O castigo da soberba (de Anselmo Vieira)”. Ocorre, nesse caso, não a cópia, mas sim a recriação de textos da literatura popular nordestina, dando origem a um texto teatral em que o popular e o erudito fundem-se de modo brilhante.

A visada crítica sobre a realidade brasileira, mais especificamente a realidade nordestina, com seus costumes arraigados, frutos de uma sociedade oligárquica e de uma cultura popular marcada pela religiosidade profunda, também colabora para tornar o texto do mestre Ariano mais contundente. Caracterizados, essencialmente, pelo humor corrosivo e farsesco, seus textos, através dessa crítica aos costumes e aos desvios de conduta de indivíduos que ocupam uma posição hierárquica significativa na sociedade, conseguem reverberar para além do riso momentâneo. Embora tratem de questões locais, próximas ao ambiente em que o autor vive, a temática  abordada neles é de caráter universal: a avareza, a vaidade, a oposição vida/morte, a opressão, a corrupção, a esperteza como meio de se livrar da opressão do mais forte etc. Faz valer, desse modo, o que disse Tolstói: “Se queres ser universal, começa por pintar a tua aldeia”.

No universo dramatúrgico de Ariano Suassuna, a oposição entre Bem e Mal dá-se no embate entre o sertanejo nordestino desprovido de riqueza material, mas senhor de uma esperteza impressionante, beirando, às vezes, o picaresco (podemos citar como exemplos João Grilo e Caroba), e o rico que o explora ou o oprime. Nesse embate, leva sempre a melhor o tipo fraco, desprovido de riqueza material, mas esperto e que conta, geralmente, com uma ajuda do além – uma espécie de  deus ex machina. Pode-se dizer  que essa esperteza é, de certa forma, o único recurso que o pobre possui para sobreviver num mundo comandado por poderosos despidos de humanidade. Isso demonstra a opção ideológica clara do autor a favor dos menos favorecidos.

Na Farsa da boa preguiça, por exemplo, o preguiçoso poeta Joaquim Simão conta com a ajuda de um santo (Simão Pedro) para se contrapor ao poderio econômico de Aderaldo Catacão e à tentativa de Fedegoso e Quebrapedra (dois diabos) de levá-lo para o inferno.  Num primeiro momento, inclusive, o capitalista Aderaldo Catacão conta com a simpatia de um anjo (Miguel Arcanjo), mas vai perdê-la ao final quando este constata a extrema avareza do seu protegido: “Ah, é assim? Pois esse peste/vai perder quem ainda lutava por ele!”.  Junto também com os dois enviados dos céus encontra-se Jesus Cristo (Manuel Carpinteiro), que a tudo observa e avalia.  Essa relação direta dos seres celestiais com os seres terrenos, empenhando-se, no caso, para influenciar no seu destino, aproxima-se claramente do universo da mitologia grega, onde os deuses participavam diretamente do destino (Moira) dos mortais.  Na Ilíada e na Odisseia temos os deuses (Zeus, Hera, Afrodite, Poseidon etc) confrontando-se para proteger ou castigar heróis gregos ou troianos. Já nos textos de Ariano (e dos autos medievais), marcados pela presença da mitologia cristã, anjos e santos enfrentam demônios para evitar que os personagens sejam punidos com o fogo do inferno.  

Temos essa presença de seres celestiais e de seres demoníacos intervindo também no destino dum grupo de mortais  n’O auto da Compadecida. Nesse texto, porém, a ação se dá já no mundo dos mortos. João Grilo e os demais personagens estão mortos e precisam da ajuda de Nossa Senhora (A Compadecida) e de Jesus Cristo (Manuel) para que não sejam encaminhados ao inferno. Aqui, temos a aproximação com O auto da barca do inferno, de Gil Vicente, escrita em 1517. Diferentemente da peça de Gil Vicente, em que a maioria dos mortos não escapa ao fogo do inferno, na peça de Ariano, de 1955, com a argumentação precisa de Nossa Senhora e de Jesus Cristo, livram-se todos do castigo. É um final típico da comédia, como nos diz Renata Palllottini no seu livro Dramaturgia: a construção da personagem: “Seu desenlace é, via de regra, feliz, otimista. O público sente-se solidário com o desenrolar da trama, se descontrai com o desenlace, que lhe dá uma espécie de catarse que não é catarse porque não implica piedade e terror, mas uma empatia cuidadosa, onde o riso é às vezes de cumplicidade, outras vezes de superioridade”.

Na Farsa da boa preguiça, escrita em 1960, a intervenção celestial, para evitar a vitória do diabo, dá-se no mundo dos vivos. Então, faz-se necessária a descida desses seres celestiais ao mundo dos mortais. Nesse caso, os seres celestiais precisam assumir a condição de um  mortal e andar entre os homens como um deles. Nessa condição de mortal, pode ocorrer algum desvio ou conduta que fuja do que se espera de um anjo ou de um santo. É o que ocorre com Simão Pedro: ele encontra um queijo que pertenceria ao rico Aderaldo Catacão e decide ficar com ele. Ao final, temos os três seres celestiais (Manuel Carpinteiro, ou seja, Jesus Cristo, Simão Pedro e Miguel Arcanjo) disputando a posse do queijo num jogo. A proposta é feita desta maneira por Manuel Carpinteiro: “Então vamos fazer o seguinte:/enquanto a história do Rico e do Poeta continua,/a gente vai ali dormir um sono e sonhar!/Quem tiver o sonho mais bonito/fica com o queijo todo, está bem?”.  Depois, quando vão revelar os sonhos, Simão Pedro confessa: “Então, sonâmbulo, como sempre fui,/acho que me levantei,/porque quando acordei,/tinha comido o queijo:/só estas cascas encontrei!”. E essa sua esperteza é ainda exaltada por Manuel Carpinteiro: “quando escolhi este para Príncipe dos Apóstolos/e chefe da Igreja,/foi porque sabia que o cabra era esperto!”. Aqui, poderíamos dizer que o texto de Ariano se aproxima  da Sátira Menipeia, pois  ocorre o rebaixamento de um ser celestial, fazendo-o comportar-se como um simples mortal afeito aos desvios de conduta.  

Para Aristóteles, a comédia, em contraposição à tragédia, “é a imitação de homens de qualidade inferior”. O universo teatral criado por Ariano Suassuna, a partir de suas fontes populares e eruditas, é marcado por tipos que se encaixam nessa definição do filósofo grego. Seu olhar generoso, no entanto, faz com que seus personagens pertencentes à camada menos favorecida da sociedade ganhem a simpatia do público por investir-se de esperteza, graça e malícia – elementos capazes de fazê-los sobrepor-se ao outro, que se impõe, geralmente, pela força física ou  pelo poder econômico. É o caso das personagens Caroba e Pinhão na peça O santo e a porca, de 1957. O público pode até se opor ao modo interesseiro com que ambos agem inicialmente, mas não tem como não simpatizar com eles ao descobrir que são explorados vergonhosamente pelos patrões. É o que nos revela a fala de Pinhão no Terceiro Ato: “Mas onde está o salário de todos estes anos em que trabalhamos, eu, meu pai, meu avô, todos na terra de sua família, Seu Eudoro? Onde está o salário da família de Caroba, na mesma terra, Seu Eudoro? (...) Onde está o salário de Caroba durante o tempo em que trabalhou aqui, Seu Euricão?”.  

Caroba e Pinhão, assim como João Grilo, possuem linguagem e esperteza que lhes permitem negociar, argumentar e tramar em proveito próprio ou dos outros. E se podem fazer isso com tanta desenvoltura, em relação à linguagem, é porque, nas peças de Suassuna, não há distinção entre o nível de linguagem usado pelos patrões e o usado pelos empregados. Ou seja, a correção gramatical é um elemento presente tanto na fala dos menos favorecidos quanto na das elites econômicas. Menos que incorrer em inverossimilhança, o que Ariano faz é armar os representantes das camadas mais pobres da sociedade com o mesmo poder de comunicação dos que detêm o poder. Dá-lhes a mesma “competência lingüística” dos seus opressores.  Isso permite, então, que o embate verbal não penda só para um lado, ou seja, dos representantes das forças econômicas. Seus personagens, nesse caso, não sofrem da mesma angústia de um Fabiano, no romance Vidas Secas, do também nordestino Graciliano Ramos.  Por ser limitado em relação à linguagem, o personagem de Graciliano não pode exprimir-se da maneira que gostaria e que precisaria para se livrar da exploração e da opressão.    

 Por conta de toda essa riqueza estética e convicção ideológica, o teatro criado por Ariano Suassuna nos encanta, conscientiza, diverte e humaniza. Daí sua força inesgotável como obra de arte capaz de nos manter atentos às complexidades da alma humana e às riquezas culturais do nosso país.

(Este texto foi publicado, originalmente, na revista eletrônica Diversos Afins e no Jornal Opção.)


quarta-feira, 27 de agosto de 2014

Comedores de pipoca



Por Geraldo Lima

Ir ao cinema e não comprar um saco de pipocas parece não fazer sentido para muitas pessoas. Vai-se ao cinema, há de se supor, mais pela pipoca que pelo filme. Para as crianças e os adolescentes, então, nem se fala. Que pai ou mãe ousaria levar os filhos para assistir a um dos sucessos de bilheteria do momento (quase sempre um filme hollywoodiano) sem meter a mão no bolso para bancar a bendita pipoca? Pipoca e refrigerante, é bom que se diga.

Não sou nenhum sociólogo ou estudioso do comportamento humano, mas é possível deduzir que, durante a exibição de um filme de ação, desses marcados por pancadaria, à medida que a tensão vai aumentando,aumenta também a frequência com que o espectador saca pipocas do saco e as leva à boca. Puro reflexo. Creio que chega a ser aflitivo esse imergir e emergir da mão.  E como todos estarão fisgados pela movimentação incessante na tela, – explosões, tiros, socos etc. – ninguém se sentirá incomodado com o estalar generalizado da pipoca sendo mastigada. Não há necessidade de pausa para reflexão. Aliás, o que menos se faz num filme desse gênero é refletir. Mas, num filme que exige a leitura atenta de cada gesto ou de cada fala, a coisa muda de figura. Enfim, como suportar, durante a exibição de um filme de arte, a presença de alguém produzindo ruídos incômodos ao retirar pipocas do interior do saco de papel?

Dia desses, eu e minha esposa fomos ao cinema no Plano Piloto, – num desses onde se pode escolher ainda entre uma boa leva de filmes de arte.  Após analisar os cartazes e as sinopses, decidimos pelo “O último amor de Mr. Morgan”, que traz no elenco o ótimo ator Michael Caine.  Pareceu-nos interessante a história de um senhor que, após a morte da esposa, precisa encontrar motivação para continuar vivendo, e vai encontrá-la numa jovem professora de dança chamada Pauline. A história se passa em Paris, e isso nos pareceu também um bom motivo para escolher esse filme. Faltavam ainda vinte minutos para o início da exibição da película, mesmo assim resolvemos entrar e aguardar lá dentro, no conforto de uma poltrona.

Assim que sentamos, percebemos, do lado direito, um senhor gordinho acompanhado de uma senhora e de um gigantesco saco de pipocas. O saco estava apoiado no cume da sua barriga e toda a sua atividade físico-motora voltava-se para o ato de retirar as pipocas do seu interior e levá-las à boca. Fazia isso sem pausa alguma. E, para nosso desespero, com ruídos pra lá de incômodos. Faltavam ainda uns quinze minutos para o início do filme, e achamos que esse seria um tempo suficiente para o glutão devorar todas aquelas pipocas e deixar nossos ouvidos em paz. Com a rapidez com que ele as triturava, logo o saco estaria vazio.

Para aflição de todos, passados uns trinta minutos após o início da projeção, lá estava o senhor barrigudinho e insensível metendo ainda a mão no interior do saco e devorando pipocas com uma fome infinita. Não havia como não se distrair com a irritante trilha sonora produzida por ele. Sons intensos e exasperantes. Não havia como manter o foco no desenrolar da trama. A súbita alegria do senhor Morgan passa distante do nosso olhar.  A vontade era levantar-se, ir até a poltrona do energúmeno e sacar-lhe das mãos o seu objeto de prazer. Aquele infeliz não se tocava de jeito nenhum. Centenas de olhares o fuzilavam, e nada!E chegou ao absurdo de meter meio braço dentro do saco em busca das últimas pipocas. Não satisfeito  – e sem se dar conta do ridículo!  – pôs o saco diante dos olhos e vasculhou-lhe o interior em busca ainda de alguma pipoca. De algum fragmento de pipoca. De algum farelo. Mas não havia nem ar lá dentro mais. Frustrado, talvez, amassou o saco. E fez isso com extrema calma e maldade. Frio e metódico. Imaginem o sadismo desse gesto e a ira que tomou conta de todos nós.

Como não estava ali para assistir ao filme (deve ter ido de má vontade para acompanhar a esposa), acabou roncando durante algumas passagens da história. Não parecia nem um pouco interessado em se deixar envolver pela delicadeza e sensibilidade que Sandra Nettelbeck imprimiu ao seu filme.  É bem provável que tenha odiado o filme e amado incondicionalmente a pipoca. Creio que durante seu cochilo tenha sonhado com um mundo tomado por milhos de pipoca estourando em irresistíveis cascatas brancas.
 

segunda-feira, 4 de agosto de 2014

Três micronarrativas


Por Geraldo Lima

A dor é tão intensa, que ela tem de recuar até o passado. Ali, num dia de sol e praia, foi de fato feliz.

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Restou-lhe um espaço mínimo (quase uma greta!) para tentar escapar antes que o marido da amante adentrasse o quarto.

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Na noite de núpcias, descobriu a verdadeira natureza do marido. Tarde demais: na rota de fuga, teria que cruzar um oceano.