quinta-feira, 14 de janeiro de 2010






        Na minha infância, em Pernambuco, era muito comum ouvir expressões como "abecedário, ABC do Cangaço, etc.   Ao final da adolescência, morando em Brasília, foi a vez do contato com o ABC DA LITERATURA, de Ezra Pound, para quem a poesia está mais próxima da música e das artes visuais que da literatura. É nesse território  por onde transita Paulo Siqueira, que nos seus experimentos passa pelo desenho, a pintura, a fotografia e pela continuidade da velha tradição poética — os versos.                              .         
        Quando se pensa em abecedário, imagina-se uma leitura recortada de A a Z sobre um  ou vários temas.  No caso desta obra, embora isso também ocorra, o poeta convida  para que a palavra saia do dicionário e venha dançar no lago do olho, dentro da orelha,  na ponta da língua do leitor, ou, como diria  Décio Pignatari, “antes da poesia concreta: versos são versos. Com a poesia concreta: versos não são mais versos. Depois da poesia concreta: versos são versos. Só que a dois dedos da página, do olho e do ouvido. E da história".         
         Paulo Siqueira apanha os dados de Mallarmé para relançá-los na outra borda do grande sertão da linguagem, fazendo desta obra uma travessia feita com rigor. Caberá ao leitor-performer desvendar estas páginas-telas, dançar com os signos, jaguncear,  riobaldear-se, vicentir-se, errar, zerar-se,  diluir-se.  Aqui o leitor  encontrará momentos de sublime radicalidade do signo, como no poema “nuvem”, onde as dimensões semântica, sonora e gráfica irradiam ambiências sobre a brancura da página, numa sintaxe espaco-temporal, ou como quando o poeta nos presenteia com o poema zen-corisco: “isca: cai / n’água / inoc / ente / como / um peixe”.
         Haroldo de Campos já nos falava  sobre essa experiência necessária do "beco-sem-saída, (...) que é a única (experiência) fecunda para o poeta consciente de seu fazer, que sabe que só através desse momento de negatividade pode surgir, a cada extremo passo, a possibilidade de um novo lance”.         
O resto é silício.
E que os negros ocupem
os espaços  brancos.

Paulo Kauim é poeta e autor de demorô (Thesaurus Editora, 2009)  http://paulokauim.blogs.sapo.pt
Sobre Vicente de Paulo Siqueira:
É professor e escritor. Autor de O tao da coisa ( poesia, Da Anta Casa Editora, 1995), Lâmina (contos, LGE Editora, 2004) e abecedário (poesia, LGE Editora, 2009).  http://atelieleve.blogspot.com 

DOIS POEMAS DO LIVRO abecedário:

eclesiastes

vê as meninas sob o sol
o belo como é velho
o poema nascer entre
escombros e dor
a cidade como é vã
as vans como passam
de manhã e de tarde
que nada existe
como se pensa
e como é bom
o sol sobre todos
como voam as manhãs para o azul

o não

ele não tem  feição
é redondo e seco
uma fruta seca
uma tarde
agreste no nome
o não parece o escuro
face dos disfarces do sim
palavra
onde a palavra
se fecha em si para dizer

4 comentários:

  1. Achei você no Bule, um blog muito interessante.
    Ficaria muito grato se você me desse a sua opinião sobre os meus textos publicados em meu blog. Pode deixar em forma de comentário. Ficaria realmente lisonjeado.
    gabrielgape.blogspot.com
    desde já, obrigado.

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  2. É sempre um prazer ler seus textos, Geraldo, sempre cheios de lirismo e profundidade!
    Forte Abraço!
    Lobão

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  3. Olá, Gabriel, acessei o seu blog que, por sinal, é muito bom. Um abração.

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  4. Valeu, Alexandre, pelo seu comentário. Suas palavras são preciosas.
    Um abração.

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