sexta-feira, 29 de janeiro de 2010



UM, entre o sagrado e o profano.

                               Ronaldo Costa Fernandes

Há poucas personagens – o padre, Ana e Ariadne, a mãe – que vivem num espaço reduzido: o espaço discursivo do narrador. Neste pequeno romance, Geraldo Lima transfere um pouco – somente um pouco – do instrumento dramático com que está acostumado a trabalhar e instaura num espaço exíguo, a mente do personagem, a sua existência atormentada.
            Há algo de Bentinho nas relações religiosas e nos ciúmes, mas a lembrança de Bentinho de Dom Casmurro, de Machado de Assis, não é para mostrar influências. É  que mostra Geraldo Lima ligado às grandes linhas do romance brasileiro. E acredito que isso não é pouca coisa.
            Vejamos: reconhecemos em Dostoiévski o atormentado e religioso mundo russo, nos escritores alemães a tendência a discutir grandes conflitos e o drama entre corpo e alma, nos norte-americanos as frases curtas, a ação vertiginosa e o mundo buliçoso do progresso, mesmo em romances passados no interior (um dos personagens de Faulkner, nos anos 20, roceiro, aplica na Bolsa de Nova York, logo não é a mesma roça do nosso Vidas Secas). Incluir-se no rol da aventura estilística e temática do romance brasileiro, um feito louvável.
            O longo monólogo do narrador não tem uma linha reta nem uma história também linear – talvez não tenha nem mesmo uma grande história, porque o narrador está preocupado é com a própria emoção e repercussões de seus atos. E nisso Geraldo Lima, com sua escrita elegante, mas não fora de época, investe na psique do personagem e na sua angústia existencial.
            A epifania do início não pode ser comparada com a epifania de Clarice Lispector. Em Clarice, a epifania vem de momentos ordinários e inesperados como ver, do bonde, um cego na rua. A epifania de Geraldo mistura duas epifanias: a de Clarice e a de James Joyce, mais ortodoxa e religiosa. Durante todo o texto perpassa a ideia de Deus e de manifestações espirituais. A busca do narrador alterna ora o corpo da amada, ora a experiência mística. Contudo, o mais importante é a maneira como ele a digere e transmite ao leitor e o que é dito em relação a essas experiências.
            Geraldo Lima domina todos os meios de seu ofício e mostra aqui em Um – título por deveras singular – sua concepção de mundo e sua permanência num mundo de volubilidade e mecanicismo crescente. Mostra que a literatura brasiliense já tem sua cara e que pode se apresentar no cenário nacional sem ter vergonha ou ser julgada como provinciana.
            Geraldo Lima, em Um, também brinca com o sagrado e o profano. Místico, epifânico, erótico e mundano, o personagem se agita entre consciências contraditórias e multifacetadas. Esse narrar desgarrado e confessional – todo narrar parece ser uma procura de uma resposta que o próprio narrador nem mesmo conhece – leva a uma literatura de cunho inquisitivo, cujo inquirido é o próprio narrador. Outro traço característico é o olhar. Um é a narrativa da contemplação: de Deus, dos corpos femininos, da lua, da vida. Uma literatura menos de ação e mais de contemplação. Poderia dizer também reflexão, mas o correto talvez seja uma literatura de inação, em que o narrador-personagem se inquieta, narra o passado e seus conflitos e observa a vida, como a grande epifania a ser-lhe revelada.
            Este livro mostra que a literatura de Geraldo Lima vem crescendo em qualidade e tom. Do conto ao romance, o autor aprimora sua arte narrativa, seu repertório estilístico e aponta para uma construção de um percurso que não devemos perder de vista com o risco de não alcançar a trajetória de um bom autor.


            Ronaldo Costa Fernandes é autor de Concerto para flauta e martelo (romance, Ed. Raven; finalista do Jabuti de 98),  O Morto solidário (romance, Ed. Raven; Prêmio de Casa de las Américas), Terratreme (poesia; Prêmio Bolsa Brasília de Produção Literária da FCDF), Manual de tortura (contos, Ed. Esquina da Palavra),  A máquina das mãos (poesia, 7Letras), entre outros.

(Esta resenha foi publicada nas revistas eletrônicas Nós - fora dos eixos, Germina, Verdes Trigos, Verbo21, e no Jornal Opção, em Goiânia.)

2 comentários:

  1. Nossa PROF, chega deu saudades, de verdade...
    O Senhor é um ótimo escritor, espero que Deus abençoe a cada dia mais as suas obras, e te dê bastante reconhecimento, pq vc MERECE! Continue assim e vc crescerá muito. ADÓRO VOCÊ!
    UM ABRAÇO!

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  2. Oh, Thais, que bom vê-la por aqui. Obrigado por suas palavras.
    Um abração.

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