sábado, 28 de abril de 2012

Ambientes


    Por Geraldo Lima
 
                               “Ardo em desejo na tarde que arde”
                                              (Manuel Bandeira)


o elevador I

         uma voz vindo dalguma cavidade no elevador  nos informa: quinto andar! voz de mulher, suave,  sensual.
         saltamos: o corredor  se oferecendo aos nossos olhos, finito, breve. atrás, outra vez a voz do elevador: sobe!
         avançamos em linha reta.


o corredor

         já disse: o corredor se oferecendo às nossas vistas, finito, breve. dito está também: avançamos.
         narrando assim, dou até a impressão de estarmos engajados nalguma missão de resgate ou qualquer coisa parecida, bem ao estilo dos filmes norte-americanos. uma perseguição implacável por entre os corredores do shopping. coisa muito simples, porém, a que tínhamos por  objetivo: ir ao dentista somente.
         o corredor percorrido quase até o final: piso de cerâmica  20 X 30, cinza; do teto, o brilho  suave das lâmpadas fluorescentes espargido sobre nós; capachos junto às portas, e, porque abertas, passamos  bisbilhotando o interior das salas:  mogno e cerejeira escancarados; pernas, às vezes. pernas brancas, quase sempre. quase marfim.
         mulheres vindo e indo, chusma de calças justas, saia de pouco pano, mínimo algodão, microcetim, excesso de curvas e lombadas no entanto. olhos irrequietos nas órbitas, meu Deus!


o consultório I

         aqui também o mogno, mais escuro  no entanto nas cadeiras chinesas, contrastando com o branco do teto e das paredes. com o branco da maioria das pessoas aqui. portas  de vidro jateado por onde, no espaço mínimo das pétalas, os olhos penetram e perscrutam lá dentro: o dentista  aparece e logo some. ah, e o barulhinho do aparelho torturando um dente, e esse chiado do ventilador   girando lento dum lado pro outro, arejando o ambiente, brisa artificial solapando o calor, só assim suportável.
         somos seis aqui neste recinto. mínimo espaço. cada um evitando esbarrar com o olhar do outro, desviando os olhos para o teto, para a porta, para a revista, para o nada. seis pessoas e três cadeiras apenas.  

        
consultório II

         agora, o melhor de tudo, o que torna a vida plenamente suportável: a secretária de pernas remodeladas pela meia fina, sentadinha por trás da mesa, atenta, atenciosa, tentadora. a voz dela, quando diz para algum paciente, — Sua vez, senhora — é como a voz do elevador: sensual, delicada, com uma leve cobertura de manha, de dengo. 
         mas não estou olhando insistentemente para ela, como é de se imaginar, ainda que  seja esse o meu maior desejo:  o temor não permite, as boas maneiras também — tenho a impressão de que todos, agora, estão me vigiando.


o elevador II

outra vez a voz sensual — desce! elevador nº 2, torre B, lotado neste momento. dedos avançam rumo aos botões, programando o seu destino. a mulher à minha frente recolhe a bolsa, espreme-a contra a barriga. todos vigiando seus pertences. homens brancos, de terno e gravata, donos de tudo. então, estamos sozinhos nesta arena, descendo, descendo.


o térreo

         embaixo outra vez, e o movimento intenso de pernas e seios, lábios e nádegas, olhos e braços, sexo e idéias, vestes e pudor, transe, trânsito. completamente absorvido por  esse cancã, avanço.
         avançamos, mas você não vê o que vejo. e  é só o que vejo nesse caminhar, nesse escoar por entre objetos vários. se disser : maluco, aceito. se bradar: canalha! me curvo penitente.
         mínimas retas, excesso de curvas, quinas de lojas. quase saindo e vejo ainda as pernas da secretária, sua cor quase negra, como se lá estivesse, como se de lá não pudesse sair nunca mais.


o estacionamento

         levo o meu filho pela mão, ele, o paciente, impaciente também. ziguezagueamos  pardos por entre os automóveis, até onde, supomos, o nosso se encontra ainda  estacionado.
         se ele me perguntar, durante esse  trajeto, por que me acho tão  silencioso, mais a mudez  se entranhará em mim: coisas indizíveis às vezes se instalam em nós, varrendo da garganta o sentido das palavras.  peso moral ou cerco  das imagens, intransponível, quem pode revelar?
         pai e filho sob o sol intenso desse Saara urbano, dessa África miscigenada. unidos assim, avançamos, vigiados pelo  olhar quase atento do guardador de carros, pardo também.
         aqui estamos,  filho, no descampado, mas talvez  fosse melhor dizer  numa quase-confissão: por mais que me concentre, ainda não estou aqui cem por cento. 

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