Por Geraldo Lima
Meu primeiro contato com a obra
literária de Cuti deu-se através da poesia, mais precisamente com seus poemas
publicados nos Cadernos Negros, do coletivo
Quilombhoje-Literatura – do qual ele foi um dos fundadores –, e no livro de
Zilá Bernd, Introdução à Literatura Negra
(editora brasiliense). Nesse livro, no capítulo intitulado A literatura negra brasileira: suas leis fundamentais, a autora
cita a poesia de Cuti, assim como a de Oliveira Silveira, Ele Semog, Oswaldo de
Camargo, Paulo Colina, entre outros, como exemplo de poesia negra, ou seja, a
produção poética em que o negro busca assumir-se criticamente como sujeito da
enunciação. Não mais a poesia falando sobre o negro, ao modo de Castro Alves e
Jorge de Lima, mas, sim, “um-eu-que-se-quer-negro, evidenciando uma ruptura com
uma ordenação anterior que condenava o negro a ocupar a posição de objeto ou,
melhor, daquele de quem se fala”, nas palavras de Zilá Bernd.
Nesse mesmo livro, atendo-se à
realidade brasileira e à produção literária de autoria negra, Zilá aponta a
predominância da poesia sobre o conto e o romance até então. Há um discurso
poético dando conta do “processo de transformação da consciência negra”, mas
não há, ainda, uma narrativa nesse mesmo padrão. A causa, segunda a autora, é
que “para a maturação de um romance negro brasileiro, algumas etapas ainda
precisam ser vencidas, como o resgate da sua participação na História do
Brasil, sobre a qual tantas sombras se projetam, e a definição de sua própria
identidade. Para que exista um discurso ficcional do negro é preciso que o
negro defina a imagem que possui de si mesmo e que consolide o processo já
iniciado de construção de uma consciência de ser negro na América”. O livro de
Zilá Bernd é de 1988. De lá para cá, muita coisa mudou em relação a isso,
inclusive com o aumento no número de pessoas que, segundo as últimas pesquisas
realizadas pelo IBGE, têm se reconhecido como negras. Partindo então desse
raciocínio, podemos entender o crescente número de escritores negros
brasileiros que trazem a público narrativas em que homens negros e mulheres
negras são protagonistas. É o caso,
aqui, de Cuti, com seu livro Contos
escolhidos, publicado pela Editora Malê. A Malê, diga-se de passagem, veio
com a proposta de publicar e dar visibilidade aos autores negros.
A questão racial e seu enfoque ficcional
Cuti (pseudônimo de Luiz Silva),
doutor em Literatura Brasileira pela Unicamp, tem produção na área do ensaio,
da poesia, do teatro, do conto e da literatura juvenil. É um dos expoentes da
geração de autores negros que, no final dos anos 70, começou a publicar, de
forma independente, poemas marcados por uma voz descontente com a situação do
povo negro no Brasil. Nesse seu livro de contos publicado pela Editora Malê,
ele se revela um prosador hábil e conhecedor da alma humana. Nos dezesseis
contos reunidos no livro, o leitor vai se deparar com uma temática variada,
como violência urbana, inveja, desejo de vingança, marginalidade juvenil,
ciúme, racismo, questões de identidade racial, dificuldade financeira etc. E, o
mais importante, vivida por protagonistas negros.
Para se ter uma ideia de como o autor
trata a questão da identidade racial a partir da narrativa ficcional, vamos tomar
como exemplo o conto O batizado, que
abre o volume. Nesse conto narrado em
terceira pessoa, mas com o fluxo de consciência dando conta do desespero que
vai tomando conta de alguns personagens, o protagonista Paulino, jovem e
militante da causa negra, critica duramente o fato de terem colocado no
sobrinho um nome que não tem ligação alguma com a cultura africana. “Ouçam o
nome do meu adorado sobrinho: Luizinho... Já não chega o sobrenome Oliveira?
Luiz é nome de qual ancestral? Refere-se a qual matriz cultural? E, minha
gente, o nome é de origem francesa. Significa defensor do povo... que não é
nosso povo. O meu sobrinho é, pelo significado do nome, defensor do povo
francês. E o seu povo?” A sua atitude radical cria, como se pode imaginar, um
clima tenso e perigoso durante a comemoração do batizado. Naquele momento de
festa e alienação, sua postura é a do chato, do estraga-prazer que vem anunciar
uma verdade incômoda, a qual todos querem ignorar. É em meio a essa tensão
familiar, de confronto entre visões de mundo opostas, que a narrativa deixa
claro a fratura presente na formação da nossa identidade racial, que começa,
obviamente, no instante em que os africanos são trazidos à força para o Brasil
e, como estratégica de dominação imposta pelos brancos escravagistas, são
renomeados de acordo com a cultura dos seus senhores. Embora a atitude de
Paulino possa parecer exagerada e sem propósito, reivindicando que os negros
brasileiros passem a adotar nomes de origem africana, ela nos faz refletir
sobre essa perda de identidade cultural que propicia a dominação de um povo por
outro. A sua atitude nos lembra, de certa maneira, a de Policarpo Quaresma, que,
no seu nacionalismo exacerbado, propõe o tupi-guarani como língua oficial.
O tema do racismo está presente, de
modo mais explícito, em dois contos: Preto
no branco e Conluio das perdas,
ambos narrados em primeira pessoa. No primeiro, temos aquela famosa situação do
negro que começa a namorar uma mulher branca e tem que enfrentar a resistência
da família dela, neste caso, a resistência maior, com efeitos trágicos, vem do
cunhado. No segundo, a situação de racismo é bem corriqueira, aquela em que o
indivíduo negro é sempre visto como bandido. Neste caso, ao ser confundido com
bandidos que assaltam um banco, o jovem Malcolm fica traumatizado e decide
tomar outro rumo na vida quando já estava na iminência de prestar vestibular
para Engenharia. Essa sua decisão afeta sobremaneira a vida do seu pai,
narrador dessa história e cuja existência é marcada pela perda e pela vivência
também de situações de racismo.
Outras questões raciais marcam a vida
dos personagens dessas histórias de Cuti, como a do protagonista do conto Lembranças das lições. A história é
narrada no tempo presente pelo protagonista que, ainda criança, vê-se
massacrado psicológica e moralmente na aula de História, cujo tema é a
escravidão. Além do riso e dos olhares sacanas dos colegas brancos, o que afeta
mais ainda o protagonista, aumentando-lhe a angústia e o incômodo, é o modo
como a professora desenvolve o tema da aula, sempre realçando algumas palavras,
como negro e escravo. “Parece ter um
martelo na língua e um pé-de-cabra abrindo-lhe um sarcasmo de canto de boca”,
ele observa. Esse tipo de tormento e vergonha tem afetado, com certeza, muitas
crianças negras em sala de aula, levando-as, como o narrador dessa história, à
tentativa de evasão escolar.
Domínio da técnica narrativa e criação de tensão psicológica
Alguns aspectos de carácter literário
e estilístico devem ser destacados nos contos que formam esse volume, pois são
eles que revelam, aos nossos olhos de leitores, o escritor em pleno domínio da
técnica narrativa. Em dois contos, Dupla
culpa e Não era um vez, Cuti
mostra-se um hábil criador de tensão psicológica, dessas em que o personagem, à
deriva, vai nos arrastando junto para dentro do seu desespero e do seu
torvelinho mental. Com frases curtas, torna ainda mais acelerada e asfixiante a
situação do protagonista. A tensão é sempre grande e a expectativa do que vai
acontecer não nos deixa abandonar a leitura. Nesse caso, Cuti pode ser
colocado, sem receio algum, ao lado de Machado de Assis, Dostoiévski,
Graciliano Ramos e Dyonélio Machado. É preciso ressaltar ainda o sentido poético
que o autor imprime à linguagem de alguns textos, nos surpreendendo às vezes
com belas imagens como estas: “Apenas o silêncio empedrado deu indícios de que
ele não estava bem” (Não era uma vez, pág. 61). “A crueldade coloca-lhe o
revólver suavemente na mão” (Não era uma vez, pág. 65). “Júlio foi povoado de
pensamentos violentos, relâmpagos desatados riscando o céu de dentro” (Ponto
riscado no espelho, pág. 67). “Olhava apenas aquele inferno vivo, nele
procurando, talvez, alguma faísca de bondade” (Limite máximo, pág. 123).
Noutros casos, é a ironia e o sarcasmo que atravessam suas narrativas,
acrescentando-lhes um sabor ácido e cortante.
Os contos de Cuti, presentes no livro
Contos escolhidos, são, sem dúvida
alguma, um convite para mergulharmos nas questões étnicas e nas contradições
sociais que marcam a formação do nosso povo. Mas, acima de tudo, são um convite
à leitura de textos ficcionais que nos remetem à reflexão e nos arrancam da
cômoda posição de enxergarmos a nossa realidade apenas de um ponto de vista, o
dos prosadores brancos e, geralmente, de classe média.
[Resenha publicada, originalmente, no caderno de cultura do Jornal Opção-GO e no suplemento literário Correio das Artes-PB]
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