Por Geraldo Lima
Cristiane
Sobral [poeta, escritora, atriz, diretora e professora de teatro, nascida no
Rio de Janeiro e radicada em Brasília] é uma das vozes mais contundentes da
literatura negra brasileira. E, ao falar de literatura negra, falo do texto
literário (poesia ou prosa) que, segundo Zilá Bernd, no seu livro Introdução à literatura negra (Editora
Brasiliense, 1988, pág. 95), “configura-se como uma forma privilegiada de
autoconhecimento e de reconstrução de uma imagem positiva do negro”. É, também,
literatura que tem o compromisso de denunciar a discriminação racial e o quadro
de exclusão em que vive a maior parte da população negra no Brasil. É, em suma,
uma literatura que se propõe como militante, engajada, com todos os riscos que
isso acarreta. E é assim nos dezoito contos que compõem o livro O tapete voador (Editora Malê, 2016), de
Cristiane Sobral.
Nesse
seu livro, Cristiane Sobral nos dá mostra de como esse tipo de narrativa se
propõe como objeto estético e, ao mesmo tempo, como instrumento de
conscientização do indivíduo negro sobre a importância de assumir a sua
verdadeira identidade racial e cultural. O confronto, aí, é contra a ideologia do embranquecimento. A estratégia, nesse caso, é tomar uma situação
cotidiana que exponha o problema da discriminação racial ou do conflito
identitário do negro brasileiro, de modo objetivo, quase didático, de maneira
que o leitor saia da leitura do texto com sua consciência mudada, ou, na linha
do que alguns dos contos de O tapete
voador sugerem, renasça com nova identidade cultural ou resista sem abrir
mão das suas convicções raciais.
De
imediato, ficamos tentados a ver nesse tipo de procedimento literário um
defeito ou uma pobreza estética, ao qual faltaria sutileza na construção da
narrativa e na representação psicológica das personagens. Sobre isso, nos
alerta Zilá Bernd (ibid., pág. 98): “Assim, em literatura negra, a questão de
avaliação do nível estético atingido não deve se pôr como elemento exclusivo de
análise, ou como preocupação única da crítica. Jack Corzani, autor da
importante obra La Littérature des Antilles-Guyane Françaises (1978), (...)
recoloca o problema de privilegiar o estético no estudo de obras que se querem
essencialmente funcionais, concluindo que esse critério corresponderia a
condenar a pesquisa, a priori, à esterilidade”. Assim, devemos ver, em primeiro
plano, o caráter de funcionalidade desse tipo de procedimento narrativo para
explicitar, no caso, os problemas raciais e sociais que afetam o negro
brasileiro.
E é
de modo consciente e corajoso que Cristiane se equilibra entre estes dois polos
(o estético e o ideológico) na construção dos dezoito contos que compõem esse
seu livro. A sua habilidade na construção da narrativa que privilegia o
elemento estético e a fabulação fica visível no conto Bife com batatas fritas. Nesse conto, a questão estética e a temática social são bem articuladas, de
modo que o leitor não tem como não se comover com o quadro de miséria e
orfandade de uma criança de periferia. Esse é, aliás, um dos melhores contos do
volume e poderia figurar em qualquer antologia dos melhores contos brasileiros.
No conto O limpador de janelas, o que
chama a atenção é o modo como a narrativa se constrói a partir de frases muito
curtas, fragmentadas, o que torna o ritmo acelerado e surpreendente, dando
conta das várias peripécias amorosas do protagonista. Ao final, o personagem Samuel, um quase
pícaro, um “pegador” nato, verá que a sua condição de negro em terras
tupiniquins vai sempre lhe reservar surpresas desagradáveis. Por falar em
final, é de se observar que há, propositalmente, um elevado tom de idealização
em alguns casos, beirando o inverossímil, como o que acontece no conto Metamorfose, em que tudo acaba
exageradamente bem.
Ainda
que predomine o realismo, algumas histórias flertam com o fantástico, como nos
contos O galo preto e A samambaia. O tom de sarcasmo, de deboche e de ironia
molda algumas dessas narrativas, tornando ainda mais agudo e crítico o olhar da
autora sobre os episódios de discriminação racial e de negação da própria
negritude, como é o caso dos contos Lélio
e Afrodisíaco (neste, ironiza-se o
propalado vigor sexual dos negros). Ora narradas em terceira pessoa, ora em
primeira – nesse caso, majoritariamente narradas por mulheres –, as histórias
compõem um painel de situações variadas em que o indivíduo negro se vê frente a
frente com a questão do preconceito racial, da miséria ou da crise de
identidade. A subjetividade feminina é também ponto de destaque nessas
histórias de enfrentamento e reconstrução da imagem, como nos contos Vox mulher, em que a protagonista
expressa, numa linguagem marcadamente poética e intensa, seus desejos e seu
orgulho de ser mulher negra, e Pixaim,
no qual uma mulher rememora, de modo comovente, sua infância passada no Rio de
Janeiro e marcada pelo sofrimento de se ver obrigada a mudar sua imagem, com o
alisamento desastroso do cabelo, e reafirma, já residindo em Brasília, seu
orgulho e sua alegria de se ver no espelho como ela realmente é: uma mulher
negra e madura. “A gente só pode ser aquilo que é”, afirma ao final, num claro
recado aos que procuram negar a sua origem.
Nem
sempre os personagens são pessoas que negam a sua negritude. Algumas, pelo
contrário, assumem a sua ancestralidade e suas características negras e as
defendem com convicção. Tomemos, como exemplo, o conto O tapete voador, que abre o volume, e o conto Renascença, que o fecha. No primeiro conto, narrado em terceira
pessoa, a personagem Bárbara, de origem humilde e orgulhosa da sua cor, é
funcionária de uma grande empresa e tem o reconhecimento pelo seu trabalho. No
momento, ela pretende se aperfeiçoar mais ainda e pede o apoio da empresa para
fazer uma pós-graduação. Mas qual não será o seu espanto e a sua decepção ao
ser levada à presença do presidente, que deve autorizar esse apoio, e encontrar
lá, no posto mais alto, um homem negro? A decepção ficará por conta do que ele,
partindo da sua estratégia de ascensão profissional e social, vai lhe
aconselhar a fazer em relação à sua aparência. No segundo conto, também narrado
em terceira pessoa, encontramos a personagem Teresa prestes a romper com a sua
orientação religiosa. Negra, charmosa e orgulhosa da sua cor, sente-se preterida
pelos homens negros da igreja evangélica que ela frequenta. “Teresa gostava
muito da sua igreja, mas seu corpo negro também sentia naquele ambiente o peso
do preconceito, da discriminação. Isso gerava muitos questionamentos. Por que
não despertava o interesse dos rapazes da congregação? (...) O fato é que,
naquela comunidade, os homens negros normalmente costumavam casar com mulheres
brancas...” O fato de ser independente e
ter um estilo próprio (“não alisava os cabelos”), chocava os outros fiéis, e
sempre era aconselhada a mudar a sua aparência. Assim como Bárbara, só lhe
resta resistir e ir em busca de um convívio em que seja valorizada sem precisar
negar a sua identidade racial.
Num
país em que a representativa da população negra é baixíssima nos circuitos
literários, nos quais circulam com maior desenvoltura as obras dos autores
brancos e das autoras brancas, é de se celebrar o trabalho de escritores e
escritoras como Cristiane Sobral, que dão voz e vez em suas narrativas e poemas
à nossa gente tão excluída.
[Resenha publicada, originalmente, na revista eletrônica Diversos Afins e no jornal Correio Braziliense]
[Resenha publicada, originalmente, na revista eletrônica Diversos Afins e no jornal Correio Braziliense]
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